São Paulo, domingo, 25 de março de 2001 |
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O ser digital e a virada cibernética
por Laymert Garcia dos Santos
Desde então, o casal virtual tem inspirado milhares de sites e se apresentado, nos mais diversos suportes tecnológicos, em exposições e galerias, interessando não só à comunidade médica, mas também a artistas, militares, projetistas de automóveis, estudantes, produtores de cinema etc. (3). Aparentemente o VHP limitava-se a ser o último capítulo da história da anatomia, inaugurada pelas dissecações no século 17, pois visava a montar um dispositivo de técnicas computadorizadas de produção de imagem para tornar o corpo humano visível ao olhar clínico e solucionar de uma vez por todas um velho problema médico: a opacidade corporal. Entretanto o que Waldby quer ressaltar é a diferença específica que caracteriza o tratamento dado a este novo "ecorché", que faz de Jernigan um estranho e paradoxal morto-vivo condenado a habitar eternamente o outro lado das telas dos monitores. Jernigan e a desconhecida são considerados o Adão e a Eva do ciberespaço, mas sua gênese é bem diversa da versão bíblica. Para transformar seus corpos em dados digitais foi preciso todo um processamento: primeiro, foram totalmente escaneados por ressonância magnética; uma vez "duplicados" numa matriz, foram congelados em gelatina; os blocos petrificados foram seccionados em quatro partes e cada uma delas foi submetida à tomografia e à ressonância magnética; finalmente as partes seccionadas foram sistematicamente fatiadas em lâminas finíssimas e fotografadas digitalmente, cada fotografia convertendo-se então num arquivo visual. Tal procedimento anulou literalmente a massa dos corpos, uma vez que cada secção plana se dissolvia em serragem após a operação, devido à dissecação extrema. Desse modo, os cadáveres transfiguraram-se numa série de imagens planas acessadas uma a uma para visualização, mas também manipuladas de modo ilimitado -os corpos virtuais podem ser inteiramente desmontados e remontados, animados, programados para interagirem com simulações e até navegados por dentro, por meio de hipermídia, como se fossem um território percorrido por uma pequena nave espacial. Formas de vida marginais A transformação dos corpos em imagens virtuais obedece a uma tecnologia cibernética que Waldby examina com extremo rigor, para mostrar como ela passa a calibrar os seres vivos. Num primeiro movimento, trata-se de extrair das formas de vida marginais (o feto, o cadáver, os fragmentos de tecidos de seres socialmente excluídos) um "biovalor", um excedente de vitalidade e de conhecimento instrumental que vai alimentar as tecnologias destinadas a intensificar a vitalidade de outros seres vivos (no caso do VHP o biovalor específico deriva da instrumentalização do cadáver e de sua transformação em arquivos de um humano utilizado como norma padrão para a medicina computadorizada). Tal extração, porém, pressupõe que se conceba o próprio humano como um sistema de técnicas, uma ordem de dados visuais, e isso só é possível graças a um deslizamento operado pela biotecnologia, que institui um corte entre o sujeito humano e a espécie humana e coloca esta à disposição do primeiro como um recurso a ser explorado.
Waldby analisa então como, ao escolher Jernigan, o VHP por um lado reata com as lições de anatomia porque a matéria-prima continua sendo fornecida por extratos malditos da sociedade; mas, por outro, como rompe com ela ao deixar para trás o "Livro do Homem", o atlas anatômico, e criar o Homem Visível. Em suma: como na dissecação anatômica, o VHP exige o sacrifício de um corpo como modelo tecnológico que é redimido porque vai servir a outros; mas, se a produção da imagem anatômica pode ser pensada como uma série de práticas de espacialização que transformam sucessivamente o volume do corpo tridimensional em traços iterativos, vale dizer, como uma cartografia que repensa o corpo humano em relação ao corpo do livro, o mesmo não se dá com a produção da imagem virtual. Na passagem do livro à tela, a imagem deixa de ser uma representação para se tornar uma imagem operacional, passível de ser desdobrada como um substituto dos órgãos atuais, em cirurgias e endoscopias virtuais. Waldby mostra que dentro do universo tecnocientífico a atração exercida por Adão e Eva do ciberespaço deriva das equações vida = informação e organismo = código, que tratam as figuras como entidades vitais, corpos mortos ressurretos por meio da capacidade tecnogênica de criar uma segunda natureza informacional. Ora, o paradoxo é que essa criação de vida se funda num referente incômodo e inapagável -o cadáver, a morte que torna a gênese uma operação macabra e transforma a medicina pós-humana numa medicina gótica. Com efeito, como esquecer que o homem e a mulher visíveis são cadáveres reanimados, fantasmas digitais que retornam ao mundo atual? Espectro que assombra o humano "Acima de tudo", escreve Waldby, "minha intenção é usar o VHP como um espectro que assombra o humano com a fragilidade de seu estatuto de sujeito num mundo de objetos. Lido de um modo, o VHP parece um testamento do domínio humano sobre o mundo natural, domínio demonstrado pela habilidade de sintetizar tecnicamente um corpo homólogo, de substituir a natureza. Lido de outro modo, ele deixa o humano aberto a múltiplas incursões, demonstrando as possibilidades que o corpo tem de ser transformado em mercadoria, de ser instrumentalizado, e demonstrando também seu valor de uso dentro de ordens de racionalidade tecnicamente orientadas. Em vez do humano como a origem da tecnologia, o VHP sugere uma tecnogênese para o humano, a abertura da categoria "humano" para a produção e a reprodução técnicas". Laymert Garcia dos Santos é professor livre-docente do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas e autor de "Tempo de Ensaio" (Cia. das Letras), entre outros. Notas 1. Fredric Jameson, ""End of Art" or "End of History'", in "The Cultural Turn", Londres/Nova York, Verso, 1998, pág. 73; 2. "The Post-Human Theory", in "Tempòs - Uno Sguardo in Divenire", nš 1, ano 1999. http://www.mediaevo.com/tempos/Welcome.html 3. http://www.nlm.nih.gov/research/visible/ Onde encomendar "The Visible Human Project", de Catherine Waldby, pode ser encomendado, em SP, à livraria Cultura (tel. 0/xx/ 11/ 285-4033) e, no Rio, à livraria Marcabru (tel. 0/ xx/21/ 294-5994). Texto Anterior: Maria Rita Kehl: A anatomia e seu destino Próximo Texto: Stella Senra: O homem nu Índice |
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