São Paulo, domingo, 25 de março de 2001

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+ sociedade

Guerras em torno da língua

Carlos Alberto Faraco
especial para Folha

Talvez não seja exagero dizer que para boa parte das pessoas soa estranha a afirmação de que as línguas humanas são objeto de ciência. Normalmente acredita-se que os velhos compêndios gramaticais contêm tudo o que há para dizer sobre uma língua. Há, inclusive, uma reverência quase religiosa ao texto das gramáticas. Ao mesmo tempo, o senso comum recobre a língua com um conjunto de enunciados categóricos (não demonstrados) que constituem um poderoso discurso mítico de ampla circulação social.
No entanto, desde o fim do século 18, vem-se construindo um saber científico sobre as línguas humanas. Essa ciência, a linguística, já está solidamente estabelecida nas universidades do mundo todo e vem acumulando um saldo apreciável de observações e análises que corroem até o cerne tanto a reverência quase religiosa às velhas gramáticas quanto o discurso mítico do senso comum.
A mesma aventura científica moderna que redesenhou radicalmente nossa compreensão dos fenômenos físicos, biológicos e sociais também reorganizou nosso modo de apreensão dos fenômenos linguísticos. Apesar disso, a linguística (e aqui nos interessa discutir só o caso brasileiro), de modo diferente de outras ciências, não conseguiu ainda ultrapassar minimamente as paredes dos centros de pesquisa e se difundir socialmente para fazer ressoar o discurso científico em contraposição aos outros discursos que dizem a língua no Brasil.
O claro antagonismo que há entre esses dois conjuntos discursivos ainda não se transformou numa "agonística", isto é, os discursos conflitantes ainda não se confrontam de fato no espaço público. Em consequência, as pessoas em geral não têm acesso a uma crítica ao dizer mítico sobre a língua e este, então, continua a reinar soberano. Em termos de língua, ainda vivemos culturalmente numa fase pré-científica e, portanto, dogmática e obscurantista.
Se pensarmos que a questão da língua no Brasil não é uma questão apenas linguística, mas, antes de tudo, uma questão política, uma questão que interessa à "pólis" como um todo, na medida em que ela atravessa diretamente e afeta profundamente inúmeras situações sociais (bastaria lembrar aqui os efeitos deletérios dos preconceitos linguísticos nas nossas relações sociais; e, em particular, na educação linguística que oferecemos a nossas crianças e jovens), fica evidente que está mais do que na hora de instaurar, no espaço público, um indispensável embate entre os múltiplos discursos que dizem a língua no Brasil.
Contudo parece que estamos ainda longe de alcançar esse ideal democrático. Depois de 40 anos de sua introdução oficial nas universidades brasileiras, a linguística permanece invisível e inaudível para a sociedade em geral. E isso apesar dos seus expressivos resultados, que incluem, por exemplo, um impressionante acervo de descrições do português que aqui se fala e um quadro relativamente bem delineado da complexa realidade linguística de um país em que se falam perto de 180 línguas, somando-se ao português as línguas dos outros grupos europeus e asiáticos que participaram da colonização, e, é claro, as línguas indígenas.
Os linguistas brasileiros têm produzido também uma substanciosa crítica dos dizeres míticos que enredam a questão da língua no Brasil e das suas trágicas consequências: temos mostrado quão esquizofrênica é a sociedade brasileira quanto à questão da língua; temos combatido os arraigados preconceitos linguísticos que afetam tão insidiosamente as nossas relações sociais; temos denunciado a miséria da educação linguística que se oferece na escola brasileira.
Mesmo assim, continuamos invisíveis e inaudíveis. Alguns exemplos podem ilustrar bem essa discussão. Durante o período em que assinalamos os 500 anos da chegada dos portugueses às terras que são hoje costas brasileiras, chamou a atenção o fato de que, dentre os vários eventos multidisciplinares com certa repercussão nacional que buscaram refletir sobre nossas muitas questões, nenhum tratou da questão linguística. Falou-se das artes, da literatura, da comida, da questão indígena, da questão africana, da construção do Estado e da identidade nacional, mas nada sobre a língua.
Pode-se concluir daí que, para a sociedade brasileira, não há propriamente uma questão linguística. Pode-se concluir mais: que o modo científico de dizer a realidade linguística nacional não conseguiu ainda se fazer ouvir a ponto de colocá-la como uma questão concreta sobre a mesa. Apesar de todos os problemas linguísticos que nos afetam, os discursos tradicionais, e apenas eles, parecem bastar à sociedade.
É visível, por outro lado, que nossa intelectualidade, pelo menos aquela que circula pela mídia, desconhece o discurso científico sobre a linguagem verbal. O linguista Sírio Possenti, da Universidade Estadual de Campinas, em seu recente livro "Mal Comportadas Línguas" (Criar Edições), dá alguns exemplos bem interessantes desse desconhecimento. Em geral, um intelectual da área de ciências humanas e sociais no Brasil não inclui a questão da língua como uma de suas questões críticas e, paradoxalmente, quando fala da língua, apenas se faz porta-voz das matrizes discursivas do senso comum.
O mesmo se pode dizer da mídia impressa e televisiva. Tanto figuras destacadas como Jô Soares, Elio Gaspari ou Marilene Felinto quanto a grande massa dos profissionais da área (lembremos que se trata de profissionais de nível universitário) desconhecem os princípios básicos, comezinhos, da abordagem científica das línguas e caem sempre no lamentável equívoco de apenas reiterar preconceitos e mitos, o que limita consideravelmente a possibilidade de realizar uma saudável peleja em torno da questão da língua no Brasil.
De Jô Soares, Sírio Possenti, no livro citado, colecionou uma pérola sobre as línguas africanas, que, segundo ele, seriam fáceis de aprender porque têm poucas palavras e porque essas poucas palavras costumam ter muitos significados. Aparentemente uma asneira na boca de um barão douto (afinal, Jô Soares estudou na Suíça, fala fluentemente várias línguas e, portanto, não pode ser listado entre os excluídos dos bens culturais). Uma asneira, porque todas as línguas humanas têm léxico suficientemente rico e em todas elas as palavras sempre têm muitos significados. Contudo, como bem destaca Possenti, antes de uma asneira, é um grosseiro preconceito linguístico e cultural que, em outras circunstâncias, atingiria, sem maiores cerimônias, alguns modos brasileiros de falar o português, com todas as trágicas consequências disso.
De Elio Gaspari, pode-se citar sua defesa, pela voz de Madame Natasha, do projeto do deputado federal Aldo Rebelo (PC do B-SP) contra os estrangeirismos (Folha, 17/10/99). Nela, apenas repisam-se os velhos argumentos que desvelam um desconhecimento (novamente em um profissional de não poucas qualidades) de como as línguas funcionam e de como as comunidades de falantes administram a dinâmica de suas práticas de linguagem. Marilene Felinto, em artigo publicado na Folha (4/1/ 2000), ao constatar a qualidade ruim de alguns textos da imprensa, em especial da redação de algumas notícias, conclui que a razão disso está no fato de que "o português aqui (no Brasil) se transformou num vernáculo sem lógica nem regras".
Ora, essa afirmação não passa de rematado absurdo, já que nenhuma língua humana existe nessas condições, isto é, sem uma lógica própria e sem regras. A jornalista aponta com precisão um fato que pede, sem dúvida, uma boa discussão. Contudo atribui a ele uma causa de todo impossível, já que absurda. No fundo, revela-se aqui o velho equívoco de achar que, se certos modos de falar a língua não manifestam as mesmas regras que estão em rançosos compêndios gramaticais, segue que eles não têm regra ou lógica.
Deixando a esfera da imprensa, podemos encontrar outro exemplo interessante para nossa discussão no próprio projeto do deputado Aldo Rebelo. Todos conhecemos sua proposta de legislar sobre o uso de palavras estrangeiras. A justificativa de seu projeto de lei reúne em apenas três páginas uma das coleções mais impressionantes de alguns dos mais arraigados preconceitos e mitos sobre a questão da língua no Brasil. Não obstante seu projeto caminha pelo Congresso Nacional sem encontrar obstáculo, o que é claro sinal de que a questão linguística não é ainda uma questão da sociedade. Se o fosse, certamente o projeto não avançaria assim sem maiores percalços, porque, de uma forma ou outra, o Congresso é (desculpado o cansado lugar-comum) uma caixa de ressonância da sociedade.
O projeto de Aldo Rebelo poderia ser visto apenas pelo seu lado grotesco; ou como um oportunismo devido aos seus evidentes efeitos midiáticos. Machado de Assis, aliás, se vivo fosse, estaria se deliciando em ironizar as "boas intenções" do deputado, como o fez em suas belas crônicas contra a cruzada antiestrangeirismos do médico Castro Lopes nos fins do século 19.
A situação, contudo, é mais complexa do que aparenta. Além de se alimentar de equívocos e preconceitos linguísticos e, pior, de alimentá-los, o projeto revela um indisfarçável desejo de controle social da pior espécie, daquele que, ignorando a heterogeneidade e a dinâmica da vida cultural, quer impor o homogêneo e o único. Todo gesto de legislar sobre a língua tem, aliás, essa triste característica.
Sobre isso, vale lembrar não só de casos históricos clássicos como a legislação linguística de Franco e Mussolini; mas também vale incluir nesse mesmo balaio as colunas semanais de vários jornais brasileiros em que se condenam raivosamente vários fenômenos perfeitamente normais do nosso português.
Sem muita exceção, esses conselheiros gramaticais deixam transparecer sua espantosa ignorância da realidade linguística nacional; operam em confusão ao não distinguirem adequadamente a língua falada da língua escrita e a língua falada formal da informal. Pior: tentam impingir, sem o menor fundamento, um absurdo modelo único e anacrônico de língua. Sustentam-se no danoso equívoco de que a língua padrão é uma camisa-de-força que não admite variação nem se altera no tempo.
Essas colunas semanais, embora inócuas para o que se propõem, têm um efeito lastimável sobre nossa auto-estima linguística (fica sempre a imagem de que não sabemos falar e isso tem resultados negativos de grande monta para o cidadão em geral e para a educação linguística em particular). Elas têm também um efeito desastroso sobre nossa compreensão cultural do que deve ser o cultivo de um desejável padrão de língua. Diante disso, o mínimo que se poderia esperar é que o espaço da imprensa se abrisse também para a divulgação do pensamento científico. O país merece esse contraponto.
Já o projeto do deputado Aldo Rebelo teve um mérito interessante: pôs os linguistas brasileiros em pé de guerra. Entendeu-se que era uma excelente oportunidade de avançarmos em direção a um rico confronto, no espaço público, sobre a questão linguística brasileira. Contudo nossa grita generalizada não tem tido nenhuma ressonância: o deputado continua nos ignorando e, fechado em copas, apenas repete sua preconceituosa e equivocada ladainha. A imprensa, por seu lado, não enxerga os linguistas como contendedores dessa batalha e, portanto, não busca ouvir sua voz. Nesse sentido, é interessante fazer referência aos editoriais da grande imprensa sobre o tal projeto: a maior parte fez críticas a ele, mas com base apenas num genérico bom senso. Em nenhum momento o discurso científico mereceu espaço.
Esse complexo quadro tem, obviamente, múltiplas determinações e alterá-lo não é, portanto, tarefa simples. Sua alteração exige o envolvimento de vários parceiros. Nesse sentido, é indispensável a participação da imprensa, que terá de se abrir para uma compreensão mais honesta aos leitores dos temas linguísticos.
Aos linguistas, coloca-se o desafio de trabalharem essas questões todas como questões fundamentalmente políticas e de buscarem meios para projetar sua voz, contribuindo, assim, para a instauração de uma necessária guerra cultural entre os discursos que dizem a língua no Brasil.
Um passo institucional importante já foi dado pela Associação Brasileira de Linguística, quando da gestão da professora Leonor Scliar-Cabral, da Universidade Federal de Santa Catarina. Naquela ocasião, provocou-se um debate interno que culminou num documento que arrola considerações pertinentes com vista à definição de políticas linguísticas para o Brasil.
Trata-se de um documento preliminar e, por isso, insuficiente, mas não pode ser esquecido. Ele sintetiza, mesmo que ainda de forma genérica (mas com bastante propriedade), as principais características do rosto linguístico do Brasil; introduz o importante conceito de direitos linguísticos do cidadão; comenta pontos de resistência à elaboração de uma política linguística; e, por fim, arrola algumas iniciativas para que a voz da linguística se torne audível.
Acima de tudo, porém, podemos todos começar por discutir e enfrentar as razões que historicamente têm gerado o profundo distanciamento entre universidade e sociedade no Brasil, uma das causas da calamitosa forma de tratar as questões de linguagem por aqui.


Carlos Alberto Faraco é professor de linguística da Universidade Federal do Paraná e autor de "Gramática Nova" (Ed. Ática).



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