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+ sociedade
Guerras em torno da língua
Carlos Alberto Faraco
especial para Folha
Talvez não seja exagero dizer que para boa parte
das pessoas soa estranha a afirmação de que as
línguas humanas são objeto de ciência. Normalmente acredita-se que os velhos compêndios
gramaticais contêm tudo o que há para dizer sobre uma
língua. Há, inclusive, uma reverência quase religiosa ao
texto das gramáticas. Ao mesmo tempo, o senso comum recobre a língua com um conjunto de enunciados
categóricos (não demonstrados) que constituem um
poderoso discurso mítico de ampla circulação social.
No entanto, desde o fim do século 18, vem-se construindo um saber científico sobre as línguas humanas.
Essa ciência, a linguística, já está solidamente estabelecida nas universidades do mundo todo e vem acumulando um saldo apreciável de observações e análises que
corroem até o cerne tanto a reverência quase religiosa às
velhas gramáticas quanto o discurso mítico do senso
comum.
A mesma aventura científica moderna que redesenhou radicalmente nossa compreensão dos fenômenos
físicos, biológicos e sociais também reorganizou nosso
modo de apreensão dos fenômenos linguísticos. Apesar
disso, a linguística (e aqui nos interessa discutir só o caso brasileiro), de modo diferente de outras ciências, não
conseguiu ainda ultrapassar minimamente as paredes
dos centros de pesquisa e se difundir socialmente para
fazer ressoar o discurso científico em contraposição aos
outros discursos que dizem a língua no Brasil.
O claro antagonismo que há entre esses dois conjuntos discursivos ainda não se transformou numa "agonística", isto é, os discursos conflitantes ainda não se
confrontam de fato no espaço público. Em consequência, as pessoas em geral não têm acesso a uma crítica ao
dizer mítico sobre a língua e este, então, continua a reinar soberano. Em termos de língua, ainda vivemos culturalmente numa fase pré-científica e, portanto, dogmática e obscurantista.
Se pensarmos que a questão da língua no Brasil não é
uma questão apenas linguística, mas, antes de tudo,
uma questão política, uma questão que interessa à "pólis" como um todo, na medida em que ela atravessa diretamente e afeta profundamente inúmeras situações
sociais (bastaria lembrar aqui os efeitos deletérios dos
preconceitos linguísticos nas nossas relações sociais; e,
em particular, na educação linguística que oferecemos a
nossas crianças e jovens), fica evidente que está mais do
que na hora de instaurar, no espaço público, um indispensável embate entre os múltiplos discursos que dizem a língua no Brasil.
Contudo parece que estamos ainda longe de alcançar
esse ideal democrático. Depois de 40 anos de sua introdução oficial nas universidades brasileiras, a linguística
permanece invisível e inaudível para a sociedade em geral. E isso apesar dos seus expressivos resultados, que
incluem, por exemplo, um impressionante acervo de
descrições do português que aqui se fala e um quadro
relativamente bem delineado da complexa realidade
linguística de um país em que se falam perto de 180 línguas, somando-se ao português as línguas dos outros
grupos europeus e asiáticos que participaram da colonização, e, é claro, as línguas indígenas.
Os linguistas brasileiros têm produzido também uma
substanciosa crítica dos dizeres míticos que enredam a
questão da língua no Brasil e das suas trágicas consequências: temos mostrado quão esquizofrênica é a sociedade brasileira quanto à questão da língua; temos
combatido os arraigados preconceitos linguísticos que
afetam tão insidiosamente as nossas relações sociais; temos denunciado a miséria da educação linguística que
se oferece na escola brasileira.
Mesmo assim, continuamos invisíveis e inaudíveis.
Alguns exemplos podem ilustrar bem essa discussão.
Durante o período em que assinalamos os 500 anos da
chegada dos portugueses às terras que são hoje costas
brasileiras, chamou a atenção o fato de que, dentre os
vários eventos multidisciplinares com certa repercussão nacional que buscaram refletir sobre nossas muitas
questões, nenhum tratou da questão linguística. Falou-se das artes, da literatura, da comida, da questão indígena, da questão africana, da construção do Estado e da
identidade nacional, mas nada sobre a língua.
Pode-se concluir daí que, para a sociedade brasileira,
não há propriamente uma questão linguística. Pode-se
concluir mais: que o modo científico de dizer a realidade linguística nacional não conseguiu ainda se fazer ouvir a ponto de colocá-la como uma questão concreta sobre a mesa. Apesar de todos os problemas linguísticos
que nos afetam, os discursos tradicionais, e apenas eles,
parecem bastar à sociedade.
É visível, por outro lado, que nossa intelectualidade,
pelo menos aquela que circula pela mídia, desconhece o
discurso científico sobre a linguagem verbal. O linguista
Sírio Possenti, da Universidade Estadual de Campinas,
em seu recente livro "Mal Comportadas Línguas"
(Criar Edições), dá alguns exemplos bem interessantes
desse desconhecimento. Em geral, um intelectual da
área de ciências humanas e sociais no Brasil não inclui a
questão da língua como uma de suas questões críticas e,
paradoxalmente, quando fala da língua, apenas se faz
porta-voz das matrizes discursivas do senso comum.
O mesmo se pode dizer da mídia impressa e televisiva.
Tanto figuras destacadas como Jô Soares, Elio Gaspari
ou Marilene Felinto quanto a grande massa dos profissionais da área (lembremos que se trata de profissionais
de nível universitário) desconhecem os princípios básicos, comezinhos, da abordagem científica das línguas e
caem sempre no lamentável equívoco de apenas reiterar preconceitos e mitos, o que limita consideravelmente a possibilidade de realizar uma saudável peleja em
torno da questão da língua no Brasil.
De Jô Soares, Sírio Possenti, no livro citado, colecionou uma pérola sobre as línguas africanas, que, segundo ele, seriam fáceis de aprender porque têm poucas palavras e porque essas poucas palavras costumam ter
muitos significados. Aparentemente uma asneira na
boca de um barão douto (afinal, Jô Soares estudou na
Suíça, fala fluentemente várias línguas e, portanto, não
pode ser listado entre os excluídos dos bens culturais).
Uma asneira, porque todas as línguas humanas têm léxico suficientemente rico e em todas elas as palavras
sempre têm muitos significados. Contudo, como bem
destaca Possenti, antes de uma asneira, é um grosseiro
preconceito linguístico e cultural que, em outras circunstâncias, atingiria, sem maiores cerimônias, alguns
modos brasileiros de falar o português, com todas as
trágicas consequências disso.
De Elio Gaspari, pode-se citar sua defesa, pela voz de
Madame Natasha, do projeto do deputado federal Aldo
Rebelo (PC do B-SP) contra os estrangeirismos (Folha,
17/10/99). Nela, apenas repisam-se os velhos argumentos que desvelam um desconhecimento (novamente
em um profissional de não poucas qualidades) de como
as línguas funcionam e de como as comunidades de falantes administram a dinâmica de suas práticas de linguagem. Marilene Felinto, em artigo publicado na Folha (4/1/ 2000), ao constatar a qualidade ruim de alguns
textos da imprensa, em especial da redação de algumas
notícias, conclui que a razão disso está no fato de que "o
português aqui (no Brasil) se transformou num vernáculo sem lógica nem regras".
Ora, essa afirmação não passa de rematado absurdo,
já que nenhuma língua humana existe nessas condições, isto é, sem uma lógica própria e sem regras. A jornalista aponta com precisão um fato que pede, sem dúvida, uma boa discussão. Contudo atribui a ele uma
causa de todo impossível, já que absurda. No fundo, revela-se aqui o velho equívoco de achar que, se certos
modos de falar a língua não manifestam as mesmas regras que estão em rançosos compêndios gramaticais,
segue que eles não têm regra ou lógica.
Deixando a esfera da imprensa, podemos encontrar
outro exemplo interessante para nossa discussão no
próprio projeto do deputado Aldo Rebelo. Todos conhecemos sua proposta de legislar sobre o uso de palavras estrangeiras. A justificativa de seu projeto de lei
reúne em apenas três páginas uma das coleções mais
impressionantes de alguns dos mais arraigados preconceitos e mitos sobre a questão da língua no Brasil. Não
obstante seu projeto caminha pelo Congresso Nacional
sem encontrar obstáculo, o que é claro sinal de que a
questão linguística não é ainda uma questão da sociedade. Se o fosse, certamente o projeto não avançaria assim
sem maiores percalços, porque, de uma forma ou outra,
o Congresso é (desculpado o cansado lugar-comum)
uma caixa de ressonância da sociedade.
O projeto de Aldo Rebelo poderia ser visto apenas pelo seu lado grotesco; ou como um oportunismo devido
aos seus evidentes efeitos midiáticos. Machado de Assis,
aliás, se vivo fosse, estaria se deliciando em ironizar as
"boas intenções" do deputado, como o fez em suas belas crônicas contra a cruzada antiestrangeirismos do
médico Castro Lopes nos fins do século 19.
A situação, contudo, é mais complexa do que aparenta. Além de se alimentar de equívocos e preconceitos
linguísticos e, pior, de alimentá-los, o projeto revela um
indisfarçável desejo de controle social da pior espécie,
daquele que, ignorando a heterogeneidade e a dinâmica
da vida cultural, quer impor o homogêneo e o único.
Todo gesto de legislar sobre a língua tem, aliás, essa triste característica.
Sobre isso, vale lembrar não só de casos históricos
clássicos como a legislação linguística de Franco e Mussolini; mas também vale incluir nesse mesmo balaio as
colunas semanais de vários jornais brasileiros em que se
condenam raivosamente vários fenômenos perfeitamente normais do nosso português.
Sem muita exceção, esses conselheiros gramaticais
deixam transparecer sua espantosa ignorância da realidade linguística nacional; operam em confusão ao não
distinguirem adequadamente a língua falada da língua
escrita e a língua falada formal da informal. Pior: tentam
impingir, sem o menor fundamento, um absurdo modelo único e anacrônico de língua. Sustentam-se no danoso equívoco de que a língua padrão é uma camisa-de-força que não admite variação nem se altera no tempo.
Essas colunas semanais, embora inócuas para o que se
propõem, têm um efeito lastimável sobre nossa auto-estima linguística (fica sempre a imagem de que não sabemos falar e isso tem resultados negativos de grande
monta para o cidadão em geral e para a educação linguística em particular). Elas têm também um efeito desastroso sobre nossa compreensão cultural do que deve
ser o cultivo de um desejável padrão de língua. Diante
disso, o mínimo que se poderia esperar é que o espaço
da imprensa se abrisse também para a divulgação do
pensamento científico. O país merece esse contraponto.
Já o projeto do deputado Aldo Rebelo teve um mérito
interessante: pôs os linguistas brasileiros em pé de guerra. Entendeu-se que era uma excelente oportunidade de
avançarmos em direção a um rico confronto, no espaço
público, sobre a questão linguística brasileira. Contudo
nossa grita generalizada não tem tido nenhuma ressonância: o deputado continua nos ignorando e, fechado
em copas, apenas repete sua preconceituosa e equivocada ladainha. A imprensa, por seu lado, não enxerga os
linguistas como contendedores dessa batalha e, portanto, não busca ouvir sua voz. Nesse sentido, é interessante fazer referência aos editoriais da grande imprensa sobre o tal projeto: a maior parte fez críticas a ele, mas com
base apenas num genérico bom senso. Em nenhum
momento o discurso científico mereceu espaço.
Esse complexo quadro tem, obviamente, múltiplas
determinações e alterá-lo não é, portanto, tarefa simples. Sua alteração exige o envolvimento de vários parceiros. Nesse sentido, é indispensável a participação da
imprensa, que terá de se abrir para uma compreensão
mais honesta aos leitores dos temas linguísticos.
Aos linguistas, coloca-se o desafio de trabalharem essas questões todas como questões fundamentalmente
políticas e de buscarem meios para projetar sua voz,
contribuindo, assim, para a instauração de uma necessária guerra cultural entre os discursos que dizem a língua no Brasil.
Um passo institucional importante já foi dado pela
Associação Brasileira de Linguística, quando da gestão
da professora Leonor Scliar-Cabral, da Universidade
Federal de Santa Catarina. Naquela ocasião, provocou-se um debate interno que culminou num documento
que arrola considerações pertinentes com vista à definição de políticas linguísticas para o Brasil.
Trata-se de um documento preliminar e, por isso, insuficiente, mas não pode ser esquecido. Ele sintetiza,
mesmo que ainda de forma genérica (mas com bastante
propriedade), as principais características do rosto linguístico do Brasil; introduz o importante conceito de direitos linguísticos do cidadão; comenta pontos de resistência à elaboração de uma política linguística; e, por
fim, arrola algumas iniciativas para que a voz da linguística se torne audível.
Acima de tudo, porém, podemos todos começar por
discutir e enfrentar as razões que historicamente têm
gerado o profundo distanciamento entre universidade
e sociedade no Brasil, uma das causas da calamitosa forma de tratar as questões de linguagem por aqui.
Carlos Alberto Faraco é professor de linguística da Universidade Federal do Paraná e autor de "Gramática Nova" (Ed. Ática).
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