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Páginas viradas
Fuga do real e resistência à diversidade evidenciam crise da dramaturgia na rede
Globo
BEATRIZ RESENDE
ESPECIAL PARA A FOLHA
É mote sempre repetido
que o imaginário popular,
no Brasil, é moldado pela
indústria cultural de massa.
Leia-se, entre nós, a televisão.
A medida dos índices de audiência pratica classificações
socioeconômicas buscando
identificar os espectadores,
ainda, em classes, atualizadas
por possibilidades de consumo.
Só que, como disse Brecht, os
tempos mudam, a realidade
pode ultrapassar aqueles que
precisam adivinhar o que passa
pela cabeça do público, mesmo
quando se trata de especialistas
em audiência.
De repente, nos damos conta
de que mudanças que já vinham acontecendo havia algum tempo surpreendem ao
público e aos especialistas.
De todos os produtos da televisão brasileira é a telenovela o
que se apresenta como peculiar: exportável, de sucesso, sofrendo pouquíssimas modificações desde que se instalou em
sua programação horizontal de
tal modo forte que a "novela
das oito" continua assim identificada, seja qual for o horário
em que é exibida.
Falar em novela, tradicionalmente, é falar em TV Globo.
Subitamente, porém, novela de
outra emissora (neste caso a
Record) abala esse reinado incontestável. Termina uma, outra se inicia e "Vidas Opostas"
continua ofuscando o brilho do
lançamento.
Cabe pensarmos nesse fenômeno específico para entender
um pouco o que anda se passando na relação entre os supostos formadores do imaginário nacional e o público, não tão
passivo como se poderia crer.
Sem dúvida, a Globo, desde a
criação do gênero telenovela,
das séries e minisséries, dispõe
de invejável elenco de dramaturgos. Desde os tempos de
Vianninha e Paulo Ponte, autores da maior competência são
abduzidos, sugados pelos valores, visibilidade, prestígio e outras possíveis vantagens oferecidas pela "Vênus Prateada",
como diria Walter Clark.
O teatro brasileiro sofre com
isso, sem condições de concorrência com o espetáculo que
está ao alcance da mão, dentro
da própria casa, em rede aberta, sem custos maiores que a
compra do televisor.
Se o elenco de roteiristas da
emissora hegemônica continua
exibindo talentos indiscutíveis,
o gênero, porém, vem sofrendo
de envelhecimento.
Qual realidade?
Mais do que isso, o formato
indiscutível, o horário permanente exigem para a sobrevivência da telenovela a maior diversidade possível. E aí surge o
primeiro problema, que, a meu
ver, a nossa velha companheira
"novela das oito" vem apresentando: a perda do grupo de Dias
Gomes (1922-1999).
A Gomes, responsável por
criações originais e peculiares,
pelo uso do cômico, do absurdo,
da sátira social e da crítica política, levou um acidente.
A seus parceiros mais constantes, seguidores de uma proposta tributária do "Organon"
de Brecht, a emissora se encarregou de eliminar: Ferreira Gullar e Marcílio Moraes.
Perdeu-se, então, significativa parte da diversidade possível. Sofreram os espectadores,
sofreu o gênero. Ganhou a poesia, no caso de Gullar, a literatura de ficção e a Record, no caso
de Moraes.
Segunda novela que este cria
para a emissora, "Vidas Opostas" e o sucesso que obtém
apontam para a segunda questão: que realidade, que personagens, que trama desperta o
interesse do espectador neste
momento? Os conflitos pessoais dos elegantes e suas belas
casas, os vestidos e corpos bem
cortados?
Os dentes absolutamente reluzentes, seja qual for a idade
ou situação social dos personagens? As regravações (todas excelentes) dos melhores momentos da Bossa Nova?
Tudo isso é apresentado enquanto o pau está comendo do
lado de fora e o som toca alto
funk e rap, da "comunidade"
aos condomínios de luxo? É isso que não se sustenta mais.
O autor de "Vidas Opostas"
declarou que sua novela se inspirou "em fonte clássica,
"Fuenteovejuna", de Lope de
Vega, primeira obra da dramaturgia ocidental a ter o povo como protagonista".
O núcleo pobre deixa então
de ser coadjuvante, ocasião de
lançar um novo cantor popular
ao agrado dos subúrbios ou recurso para preencher a quota
de negros indispensável. Fala
forte, toma conta da trama. O
uísque é substituído pela cachaça, a violência rola solta, os
dentes, decididamente, não
brilham artificialmente.
Longe estou de defender o
realismo como forma de arte a
ser privilegiada.
Porém, se é para fazer televisão, não dá para ignorar a realidade e, mais do que isso, recusar-se a conhecer a cidade real,
aquela em que a periferia já deixou de ser espaço distante que a
câmara apresenta depois de
cruzar montanhas e viadutos,
numa bela visão de uma cidade
de cartão-postal.
Para construir ficção e arte,
hoje, é prudente que o criador
se deixe impregnar pelo que
anda acontecendo além do Projac. E ainda nem chegamos à
TV interativa!
BEATRIZ RESENDE é professora da Escola de
Teatro da Unirio e autora de "Apontamentos de
Crítica Cultural" (ed. Aeroplano).
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