São Paulo, domingo, 25 de março de 2007

Texto Anterior | Índice

+ Sociedade

RAP and roll

De música de guetos negros a trilha sonora das classes médias brancas, gênero é tema de quatro novos estudos no Reino Unido e nos EUA

JOHN SUTHERLAND

Nas últimas semanas de fevereiro passado, a mídia britânica agitou-se em pânico moral por causa de uma série de tiroteios entre jovens negros nos encraves pobres de Londres.
"O que tornou nossos jovens violentos? Foram os filmes, a música rap, a cultura de rua?", perguntou-se um líder no jornal "Daily Telegraph".
Os políticos britânicos -apesar da retórica eleitoreira sobre "ser duro com o crime e duro com as causas do crime"- pareciam singularmente despreparados para responder a essa pergunta.
Nem o "nossos" do "Telegraph" soa totalmente verdadeiro. O principal público leitor do jornal não vive nos prédios da prefeitura em Peckham [subúrbio de baixa renda de Londres].
Uma reação construtiva seria avaliar o crescente número de livros sobre a erudição do rap, por assim dizer. Os estudos de mídia não recebem boa divulgação, considerados antitemas para preguiçosos.
Mas, nos últimos 20 anos, os teóricos da disciplina fizeram análises perspicazes das formas culturais e práticas sociais reunidas em torno do que, em resumo, se pode chamar de rap.
Os políticos poderiam aprender com ele. E deveriam, na minha opinião. Para começar, os ingredientes contraditórios nessa mutação da "música do diabo" desafiam uma análise fácil.
O rap em si é o que Jacques Derrida (santo patrono dos estudos da mídia) chama, em seu ensaio "A Farmácia de Platão" [ed. Iluminuras], de "phármakon": isto é, uma palavra radicalmente de duplo sentido (pense em "droga" como em "drogaria" e em "traficante de drogas"; ou "coca" como bebida ou pó para cheirar).

Esquizofrenia
"Rap" implica, em inglês, "bater" com raiva (como em portas fechadas) e dor física (um cascudo). Implica também, na gíria das ruas, "rapport", relacionamento, como em "Can"t we all just get along?", de Rodney King [A gente não pode simplesmente se dar bem?, declaração do taxista negro que fora espancado pela polícia de Los Angeles em 1992].
Nelson George [autor de "Hip Hop America", Penguin, 238 págs., US$ 15, R$ 31], um crítico negro que fala corretamente e despreza a gíria, chama o termo de "esquizofrênico".
A maior de todas as contradições é o público do rap, dentro do público maior do hip-hop.
É uma música que, como o jazz, tem sua origem e (cada vez mais) seus meios de produção na comunidade negra e seu maior público na comunidade branca (segundo uma estatística amplamente citada na mídia dos EUA, cerca de 70% do hip-hop é vendido para brancos).
Citando Nelson George: "Em certos momentos, quando o hip-hop é mais tragicamente cômico, posso imaginá-lo como uma batalha, em que jovens afro-americanos entram na arena para se injuriar verbalmente, emocionalmente e, sim, fisicamente uns aos outros para o prazer de espectadores predominantemente brancos em todo o mundo".
Não é puro prazer. Como na era do jazz de F. Scott Fitzgerald, a "jungle music" (como era chamada nos anos 1920 não-esclarecidos) provoca nos brancos reações gêmeas de medo e fascínio.
Rap significa o coração das sombras. Com brilho.
"Eles me vêem -e eles correm", como disse o finado Tupac Shakur em sua faixa "homicida" "Hit 'Em Up". E Leonardo DiCaprio, no filme "Diamante de Sangue", corre pela selva.
O hip-hop é o tema de "Other People"s Property" [Propriedade Alheia, Bloomsbury, 254 págs., US$ 24,95, R$ 52], de Jason Tanz. Essa música negra "crua" é "expropriada" (roubada, para ser direto) por seus fãs brancos?
Ou é um canal de comunicação étnica potencialmente vital e mutuamente enriquecedor?
Tanz (branco, classe média e totalmente fascinado) olha-se no espelho. Seu consumo viciado de hip-hop, enquanto não se expõe a nenhum dos riscos e privações que geram a música, é vampirismo cultural ou voyeurismo?

Rapper s reais
Posso citar exatamente quando tomei plena consciência da música rap -em 1992, com o furor em torno da música "Cop Killer" [Matador de Tiras], de Ice-T e sua banda Body Count, e da campanha da Associação Nacional de Rifles e Charlton Heston contra a Warner por comercializá-la.
Este é um trecho mais publicável da letra: "Serrei minha calibre 12/ Desliguei o farol/ Vou dar uns tiros/Vou acabar com uns tiras".
A resposta de Ice-T foi gelada: "Se você acredita que sou um matador de policiais, você acredita que David Bowie é um astronauta".
Em uma virada típica, Ice-T uniu forças com a lei no filme de 1991 "New Jack City" [DVD Warner] e tem feito o detetive Tutuola na série de TV "Law and Order" desde 2000.
Essa capacidade de iludir o preconceito, embaralhar imagens e fazer os branquelos parecerem imbecis é uma das características mais interessantes do rap. Isso e os aspectos histriônicos da música.
O produtor Quincy Jones (cuja filha Kadida estava noiva de Tupac Shakur quando ele foi assassinado, em 1996) explica que, como "gangstas", Shakur, seu adversário Biggy Smalls e seus respectivos grupos eram "piadas".
Jones sugere que eles estavam para os verdadeiros "Gs" [gânsteres] como Sylvester Stallone para Rocky Marciano.
Os gangsta-rappers são, para usar uma de suas palavras preferidas (outra "phármakon"), "atores" no sentido de "atores de palco", e não os "mais reais", como se gabam de ser e os "tolos" acreditam que sejam.
Mas os tolos e seu dinheiro logo se separam. "Nós somos milionários. Nossos discos são platina quádrupla", grasnou Shakur. Dinheiro branco, na maior parte.
Há duas abordagens (ou "binarismos") para entender o rap: diacrônica e sincrônica.
A primeira examina suas origens históricas, sociais e musicológicas. Ela se encaixa facilmente na tese exposta por LeRoi Jones (o poeta beat pioneiro, depois rebatizado de Amiri Baraka) em seu livro "Blues People - Negro Music in White America" [Gente do Blues - Música Negra na América Branca], de 1963.
Jones afirmou que a escravidão deixou os afro-americanos oprimidos e analfabetos com apenas três instrumentos: a voz, um dialeto inglês alienígena (em que se podia habilmente inserir africanismos) e o tambor.
Some-se a esses o banjo de caixa de charuto e o resultado foi o blues. A guerra civil americana -e o enorme estoque de instrumentos de sopro militares abandonados em Nova Orleans depois da guerra- resultou na "jazz band".
Dezenas de milhares de negros morreram em Gettysburg para que Louis Armstrong nos desse "Potato Head Blues".
Eithne Quinn, uma professora de estudos ingleses e americanos na Universidade de Manchester, observa em "Nuthin" But a ‘G" Thang" [Nada além da Bandidagem, Columbia University Press, 251 págs. US$ 24, R$ 50] que as condições no início da década de 1980 na região South Central de Los Angeles eram notavelmente semelhantes às que, segundo LeRoi Jones, fertilizaram a cultura do blues no sul do país cem anos antes.
Um garoto do bairro de Compton (onde o analfabetismo funcional entre adolescentes chega a 50%) podia, com equipamentos baratos (ou roubados) de "sampling", seqüenciamento e bateria, dominar a tecnologia e produzir uma faixa vendável.
Mas essa análise historicizada das "raízes do rap", como indica Quinn, pode ser conveniente demais. Como o blues, e o jazz de Nova Orleans antes dele, a música rap passa a ser promovida (geralmente por gente que não faz a música) a "voz do povo", exageradamente investida de significado político e social.

O outro lado do hambúrguer
De modo mais nocivo, conceber o rap como "a autêntica música de uma minoria oprimida" fecha a música em si mesma, como um hino nacional. "Eles sempre querem que eu toque como os velhos de Nova Orleans", queixava-se Louis Armstrong enquanto, graças a Deus, seguia seu próprio caminho.
Quinn combina astutamente seus binarismos. Historicamente, ela vê o gangsta rap como gestado no cadinho de South Central nos anos 1980.
A indústria fabril havia se mudado do sul da Califórnia, levando consigo os empregos -um fato social vividamente narrado nos romances sobre Easy Rawlins, de Walter Mosley.
O trabalho que restou era degradante: "virar hambúrgueres", como se dizia com desprezo.
Como afirmou Snoop Dogg, com sua habitual mordacidade: "Era o que eles chamam de 'cargo em nível inicial", sem jamais lhe dizer que só existe um nível".
A economia de Ronald Reagan enriqueceu as classes médias e altas. O dinheiro não se distribuiu naturalmente, como prometido.
O chefe de polícia Daryl ("Gravata") Gates, da polícia de Los Angeles [responsável pelo controle dos protestos que se seguiram à absolvição dos policiais que espancaram Rodney King], foi selvagemente repressivo.
Assim como as sentenças dos tribunais. Era uma "cultura de penitenciária".
Para os jovens negros, a vida lá fora só oferecia desemprego, falta de moradia, a onipresente câmera de segurança (daí os abrigos com capuz, totalmente desnecessários na aprazível Costa Oeste) e, o mais prejudicial, a cocaína em forma de crack.
O principal interesse de Quinn está, sincronicamente, na "estrutura de poder discursivo" do rap -os significados sociais e políticos inseridos na forma artística. Seu próprio discurso é carregado de teorias -muitas vezes desconcertantes.
A seguinte sentença é típica: "O termo central no estudo de Omi e Winant, apropriado de Gramsci, é rearticulação (também um favorito de Hall)".
Mas, permeando a discussão de Quinn, está o paradoxo das "flores do mal" de Baudelaire. Como é que uma forma artística tão rica poderia surgir de um solo tão pobre e de pessoas tão sem esperança?
"O nome da minha garota começa com 'b"" [de "bitch", cadela, prostituta] é um dos slogans definitivos do rap.
Há pouco mistério nessa estrutura de poder discursivo. É notoriamente uma forma de música misógina. O rap é predominantemente macho cafetão, como a Motown era fêmea diva.
"Deconstructing Tyrone" [Desconstruindo Tyrone, de Natalie Hopkinson e Natalie Y. Moore, Cleis Press, 247 págs., US$ 14,95, R$ 31] é o trabalho de duas jovens e espevitadas jornalistas afro-americanas (Hopkinson no "Washington Post", Moore em Chicago).
Derrida faz uma aparição na primeira página, juntamente com seu "macho negro mítico", Tyrone -um nome que se tornou, nos últimos anos, tão emblemático etnicamente quanto Jock, Paddy, Taffy ou Fritz [formas ofensivas de tratar, respectivamente, escoceses, irlandeses, galeses e alemães].
Como seu título indica, as duas Natalies são ligadas à última moda em teoria -desconstrução.
Seu discurso é anedotal, até mexeriqueiro. Seu tom é incansavelmente cáustico.

Morte do hip-hop
O capítulo mais esclarecedor de "Desconstruindo Tyrone" é o último -uma "sessão de rap" (segundo significado) com um grupo de garotas adolescentes.
Suas opiniões sobre o que os estudos de mídia chamam de "olhar masculino" são revigorantemente insubmissas: "Eles dizem 'coisa no porta-mala". Eles dizem que tenho bunda grande. Depois dizem que é como grandes balões. Eu fico chateada".
Escrevendo sobre o assunto no "Washington Post", Adam Bradley chamou a atenção para o título do último disco da lenda do rap Nas, "Hip Hop is Dead".
Suspeita-se de que ele esteja morto da mesma maneira que o jazz tradicional e o swing morreram nos anos 1940, quando surgiu o bop, ou como o bop ficou nos 60, quando surgiram o freeform, o funk e o fusion. Isto é, não morto, mas modificado. Que o rap possa por muito tempo se modificar, assustar, fascinar e causar perplexidade.


ONDE ENCOMENDAR - Livros em inglês podem ser encomendados no site www.amazon.com
JOHN SUTHERLAND leciona literatura inglesa moderna no University College (Londres). Este texto foi publicado no " Financial Times". Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves



Texto Anterior: + Lançamentos
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.