São Paulo, domingo, 25 de abril de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

EXCLUSIVO E FICTÍCIO

Uma forma recortada do mundo

O POETA PORTUGUÊS HERBERTO HELDER AFIRMA QUE SUAS METÁFORAS NÃO REPRESENTAM NADA E REVELA SUA MÁGOA COM OS JORNALISTAS

João Almino
especial para a Folha

Aos 73 anos, o português Herberto Helder é autor de mais de 20 livros de poesia, entre os quais: "O Amor em Visita" (1958), "A Colher na Boca" (1961), "Lugar" (1962), "Electronicolírica" (1964), "Retrato em Movimento" (1967), "Antropofagias" (1971), "Photomaton & Vox" (1979), "Os Selos" (1989), "Os Selos, Outros, Últimos" (1990) e "Do Mundo" (1994). A edição mais recente de "Poesia Toda" é de 1996. Dedicou-se também à ficção, havendo publicado o livro de contos "Os Passos em Volta", considerado uma revelação de vanguarda, por sua renovação da técnica e da linguagem, quando apareceu em 1963. Existe uma harmonia na produção poética de Herberto Helder, de "A Colher na Boca", de 1961, a "Do Mundo", de 1994, harmonia cujo território é o do caos e da desarmonia. Herberto Helder exerce notável influência sobre as novas gerações literárias em Portugal. Como em outra época Sá-Caneiro e Fernando Pessoa, ele inovou a lírica portuguesa.
De passagem por Lisboa e incumbido pelo Mais! de fazer esta entrevista impossível, liguei para Herberto Helder no dia 17 de março, uma quarta-feira. Havia-me encontrado com ele uma vez antes, no Bar da Estrela, próximo ao Chiado, no Bairro Alto, apresentado por um amigo comum, o brasileiro Antônio Jorge, há muitos anos radicado em Portugal.
Já sabia da relutância do poeta em conceder entrevistas. Depois de muita insistência, ele concordou não em me dar a entrevista, mas em me trazer, para possível publicação na Folha, alguns de seus poemas recentes ao mesmo bar em que nos encontráramos antes. Chamaria também o Antônio Jorge [intervenções em itálico].
Desculpou-se pelos poucos minutos de atraso. Viera de trem desde Cascais, onde mora. Calvo, de barba, seu rosto mantinha-se fiel à foto reproduzida no marcador de livros impresso pela editora Assírio & Alvim, apesar dos olhos avermelhados por uma noite mal dormida. Ficou-me a imagem de um homem afável, de hábitos simples, uma simplicidade que se revelava na fala e no olhar.
 
E os poemas, você não trouxe?
Não, não estavam bons. Destruí-os.

Antônio Jorge - Mas você me tinha dito, Herberto, que estava trabalhando nesses poemas há quase um ano.
É certo. Mas não pude aproveitá-los. Passei a noite em claro, a relê-los. Senti-me um bocado mal. Muito mal mesmo. Agora pela manhã, deitei-os ao lixo.

Espero que não tenha sido por causa de meu pedido.
Mas o meu amigo não se sinta culpado. Fez-me um grande favor. Eu mesmo precisava tomar essa decisão. Foi melhor destruí-los. Nada ali se podia aproveitar.

Você está me dizendo que não sobrou nada, Herberto?
Não, nada mesmo. Melhor o silêncio, não é? [Pedimos cervejas. Stella Artois, que o garçom nos serviu em canecas grandes.]
Em compensação, trouxe-lhe este livro. Dedica-me "Ou o Poema Contínuo; Súmula", de 2001. [Agradeço-lhe a dedicatória e folheio o livro. Noto que se trata de uma compilação sintética de sua obra publicada, à qual se acrescenta algo inédito. Depois pergunto:]

Por que você não gosta de dar entrevistas?
Até que teria muito gosto. Quando era jovem, tentei acercar-me da imprensa. Mas os jornalistas não tinham interesse algum por minha pessoa ou por meus poemas. Não divulgavam nada do que eu fazia. Isso deixou-me um bocado aborrecido, percebes? Decidi não perder tempo com esses gajos. Depois vieram todos, muito insistentes, a querer entrevistar-me. Mas agora sou eu que não quero, sabe? O que tenho a dizer está no que escrevo. E cada vez tenho menos a dizer.

Antônio Jorge - Herberto, seus livros diminuem a cada revisão, não é? Soube também que você tem recusado prêmios importantes.
Essa coisa de prêmios, homenagens, de encontros literários, não é comigo.

Antônio Jorge - O Prêmio Pessoa teria lhe dado um bom dinheiro, nada desprezível para uma pessoa como você, que vive só do que a editora lhe paga na expectativa de que produza.
Enquanto me paguem, não preciso de mais.


"Não creio em estéticas ou escolas; um poema se faz de energia e do sentido dos seus ritmos"


Herberto, isso de você não dar entrevista, não participar de encontros, acho uma pena em relação ao Brasil. Porque precisamos divulgar sua obra lá. Tirando o livro pioneiro da Maria Lúcia dal Farra...
Até hoje acho que está entre o que melhor já se escreveu sobre meu trabalho.

Mas olha, o caderno Mais! quer fazer um número especial com foto sua na capa, a edição de alguns de seus poemas inéditos e, se possível, também uma entrevista, algo simples, não mais que um bate-papo...
Antônio Jorge - Não assuste o Herberto. Com essa coisa de foto na capa, aí mesmo é que ele não vai jamais querer dar a entrevista.

Tenho imenso carinho pelo Brasil. Como sabes, venho de Funchal, na ilha da Madeira. Cheguei a Lisboa aos 16 anos e aqueles foram tempos difíceis. Pensei em partir. E, aos 20 e poucos anos, preparei-me para seguir minhas duas irmãs que haviam se mudado para o Brasil. Apenas por um acidente não pude tomar o navio. Então, segui viagem pela Europa e depois estive em África.

E se interessa pela poesia brasileira?
Absolutamente. Li muito Bandeira, Drummond, Murilo Mendes, Jorge de Lima, João Cabral...

Algum contato com os concretistas? Pergunto porque você foi um dos responsáveis pela publicação "Poesia Experimental 1", de 1964.
Aquilo para mim foi coisa passageira que... [inaudível]

Herberto, você teve problemas com a censura em 1968, não foi?
Era uma gente muito parva. Proibiram a "Apresentação do Rosto" [uma prosa poética fragmentada]. E no mesmo ano condenaram-me num processo judicial, nomeadamente porque apoiei a publicação de um livro do marquês de Sade. Mas, com a repercussão do episódio, obtive a suspensão da pena.

Há uma faceta de seu trabalho que me lembra um poeta radicado em San Diego, o...
Sim, Jerome Rothenberg. Conheço seu trabalho. Sua poesia é muito diferente da dele, mas... Percebo o que queres dizer. Sim, de fato ele também fez tradução de poemas de indígenas americanos e de outros povos.

Antônio Jorge - No caso do Herberto, há uma verdadeira recriação nesse processo de tradução. Penso no "Bebedor Noturno" e em "As Magias".
De fato, me interessei em mudar para o português alguns poemas do Antigo Egito, do Velho Testamento, árabes, africanos, japoneses e de outras regiões do Oriente, dos indígenas de diferentes partes da América...

Queria lhe fazer outra pergunta. Há muita gente que considera sua poesia difícil. O que você acha? Isso tem algum fundamento?
Não é fácil nem difícil. Talvez seja difícil para quem vê as coisas de um só ângulo, com esquemas pré-concebidos, não é? Isso obviamente dificulta a leitura, pois tudo está em todas as coisas, um vaso de água é apenas um vaso de água, mas nele está o mundo.

Herberto, uma curiosidade, que tem a ver com essa sua concepção da poesia. Como pode uma garrafa aqui à nossa frente se transformar num poema? Nela também está o mundo?
Ela é esse conjunto: Deus, a química, a sombra da igreja de São Roque sobre o largo da Trindade aqui em frente, esta luz que entra do alto e se reflete através do vidro da garrafa, este dia em que me desfaço de poemas, nossa amizade; mais um pouco e ela pode se transformar em poesia, não é? Nisso estou com Pound e seus punti luminosi... A poesia não quer dizer. Ela é uma forma recortada do mundo.

Isso me lembra também Creeley. Você conhece a poesia dele? Embora sua poesia seja metafórica e, a dele, não, até pensei em traçar um paralelo entre vocês dois, por causa da ousadia de criar uma sintaxe própria e de juntar matérias aparentemente díspares.
Não, não o conheço. Agora, se uso metáforas, elas não querem representar coisa alguma, sabe? São a própria realidade do poema.

Há quem diga que você é herdeiro da tradição surrealista...
Não creio em estéticas ou escolas. Um poema se faz de energia e do sentido dos seus ritmos.

Você foi um leitor de Blake e de Nietzsche...
Ainda sou.

Antônio Jorge - Herberto, não vá ficar chateado comigo. Mas gravei esta sua conversa com o João Almino. Será que você não deixaria que ele a transformasse numa entrevista?
Claro que você pode rever o texto à vontade.

Não devias ter feito isso, Antônio Jorge. Se não fosses tu quem és e não fosses um velho amigo, cortaria relações contigo. Perdôo-te, mas apague a fita imediatamente. Não gostava de ouvir falar mais em entrevistas, percebes? (1)

Nota
1. Há poucos dias Antônio Jorge obteve a autorização do poeta português para ceder-me gentilmente a fita da gravação aqui reproduzida, no entendimento de que a entrevista seria apresentada como ficção.

João Almino é escritor e diplomata, autor, entre outros livros, dos romances "Idéias para Onde Passar o Fim do Mundo" (Record), "Samba-Enredo" (Marco Zero) e "As Cinco Estações do Amor" (Record).


Texto Anterior: + o que ler
Próximo Texto: + o que ler
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.