|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Reinações de
Kirchner
Em prefácio à edição em espanhol de "Reinações de Narizinho", a presidente da Argentina relembra a leitura
e a influência da obra mais célebre do autor brasileiro
Narizinho
e Pedrinho,
duas crianças fantasiosas, aventureiras, inquietas e sempre desejosas de saber mais, podiam
ser um de nós
|
CRISTINA FERNÁNDEZ DE
KIRCHNER
Mamãe ou meu
avô costumavam atender
quando o vendedor de livros
tocava a campainha em nossa
casa. Era época de vendas em
prestações intermináveis.
Dicionários em três volumes,
imensos e pesados, que apenas
aos seis ou sete anos eu conseguia tirar da estante para ler,
coleções completas de todo tipo de enciclopédia, revistas e
fascículos da Bíblia e outros relatos que minha mãe logo mandava encadernar.
A lista seria infinita, dado o
tamanho da biblioteca que se
foi formando naqueles anos de
infância. Mesmo assim, minha
memória registra, com absoluta nitidez, a chegada em minha
casa da coleção completa daquilo que recordo como "Las
Travesuras de Naricita e Perucho" [as reinações de Narizinho e Pedrinho], de Monteiro
Lobato.
Eram livros de capa dura, coloridos, com os perfis dos rostos de Narizinho e Pedrinho
desenhados na capa em dourado, e constituem um registro
visual inesquecível.
Mais do que lê-los, literalmente devorei esses textos que
iam das mais aloucadas fantasias ao ensino de história, geografia, geologia e todo tipo de
conhecimento.
Emília, a boneca de pano, teimosa e cheia de caprichos, intrigante e resmungona, mas
adorável como poucas, convivia com o Visconde -um sabugo de milho que usava cartola e
monóculo-, sempre sensato,
sério e responsável.
Narizinho e Pedrinho, duas
crianças fantasiosas, aventureiras, inquietas e sempre desejosas de saber mais, podiam
ser um de nós. A avó Dona Benta, com seus óculos e cabelos
grisalhos, e a ajuda da negra
Nastácia, a inefável "tia" criadora da boneca Emília, fazia do
Sítio do Pica-pau Amarelo um
lugar em que todos nós desejaríamos viver.
Reencontro
Passada a infância, imaginei
que todos esses personagens
passariam a ser parte de distantes recordações sobre uma meninice feliz cercada por bonecas e livros, brincadeiras e conhecimento. No entanto, a vida, o destino pessoal ou o do
país, ou ainda ambos em intensa combinação, fizeram com
que eu voltasse a encontrá-los
em outras duas oportunidades.
Uma delas foi no ano de 1976.
Muito tempo havia passado
desde minhas leituras infantis.
Nossa biblioteca familiar, sob
minha influência e depois a de
minha irmã Gisele, havia incorporado outros textos. Junto a
Monteiro Lobato havia Hernández Arregui, Rodolfo Puiggrós, Arturo Jauretche, Scalabrini Ortiz, Marechal, Cooke,
Frantz Fanon, Walsh, Perón,
Galeano, Benedetti, Darcy Ribeiro, Paulo Freire, Sartre, Camus e muitos outros.
As fantasias haviam dado lugar às utopias, as aventuras, à
militância, o conhecimento puro e quase asséptico, a outro conhecimento: o da estrutura cultural que, sob o efeito das ditaduras militares recorrentes,
desaparecia em meio à desinformação e à espoliação de nosso país e da América Latina.
Certa tarde de fevereiro de
1976, um dia irrespirável não
apenas pelo calor, mas por
aquilo que estava acontecendo
[naquele ano, começou a ditatura militar na Argentina, que
se prolongou até 1983], cheguei
à casa de mamãe. Já não morava lá; no ano anterior, havia me
casado com um colega de faculdade.
Ao entrar, encontrei minha
irmã encapando livros cuja
simples posse, em caso de revistas domiciliares -muito frequentes naquela época-, era
passaporte direto para o cárcere, na melhor das hipóteses.
Gisele, ao mesmo tempo, estava cortando as primeiras páginas dos livros de Narizinho e
Pedrinho e colando-as nos livros de Puiggrós, Fanon, Walsh
ou Cooke.
"O que você está fazendo, sua
louca?", perguntei, sempre
amável e diplomática. Ela me
olhou e disse: "Eu, louca? Louca está a mamãe, que quer queimar todos os livros; aliás, ela já
jogou no esgoto todos os "desca"
e os "militancia'" ("El Descamisado" e "Militancia" eram dois
semanários obrigatórios daquela época).
Minha irmã continuou encapando os livros "perigosos" e
retirando páginas dos livros de
Monteiro Lobato, enquanto eu
a contemplava, absorta, sem
saber se devia rir ou chorar.
Não fiz nenhuma das duas coisas e parti para minha casa em
City Bell, nos arredores de La
Plata, onde vivia com Néstor
Kirchner, que havia deixado de
ser meu colega de faculdade para se transformar em meu companheiro de vida.
A casa de minha mãe nunca
foi revistada, e nunca voltei a
perguntar a minha irmã se Narizinho e Pedrinho continuam
misturados àqueles livros da
minha juventude. A mente humana sempre dá um jeito de esconder em algum canto aquilo
que não desejamos recordar.
Passaram-se os anos e a ditadura. Néstor foi eleito prefeito
de sua cidade natal [Río Gallegos, capital da Província de
Santa Cruz, no sul da Argentina], em 1987, e eu, deputada
provincial em Santa Cruz, em
1989; ele foi eleito governador
da Província em 1991, cargo para o qual se reelegeu em 1995 e
1999. No ano de 2003, foi eleito
presidente da Argentina. Passados exatos 30 anos daquelas
leituras, daqueles fogos.
Começou seu mandato em
um país à beira da dissolução
econômica e social, depois da
moratória. Sem esquecer as
Malvinas [arquilélago sob dependência do Reino Unido e
pretendido pela Argentina, cuja disputa ocasionou uma guerra em 1982] e uma geração desaparecida que havia bebido
daqueles textos para tentar escrever uma história distinta.
A partir de 1995, fui eleita,
consecutivamente, deputada e
senadora nacional. Era esse último posto que eu detinha
quando ele assumiu a Presidência.
Sonhos e utopias
Foi no ano de 2008 que tive
meu terceiro encontro com Narizinho e Pedrinho. Desta vez
-coisas da vida- aconteceu no
Brasil. O Brasil de Monteiro
Lobato.
Eu já não era uma menina
que lia incansavelmente, ou
tampouco a jovem militante
peronista com o cigarro constantemente na mão que lia e
discutia o tempo todo. Tinha 55
anos e era presidente da República Argentina em visita oficial
aos irmãos da República Federativa do Brasil.
Dividia a mesa, entre outros,
com o presidente Luiz Inácio
Lula da Silva e com o chanceler
Celso Amorim quando, de repente, -jamais vou recordar o
motivo- Narizinho e Pedrinho
apareceram uma vez mais na
conversa.
Celso disse algo sobre Monteiro Lobato e eu lhe contei sobre minhas leituras infantis.
Ele não conseguia acreditar.
Também eram seus livros preferidos.
Surgiu ali a ideia de patrocinar, por parte do governo do
Brasil, uma nova edição das
aventuras de Narizinho e Pedrinho, dessa vez com um prefácio da presidente da Argentina. E cá estamos.
Não sei se este será meu último encontro com aquelas
crianças de quem me sinto tão
íntima. Se os filhos de meus filhos lerão livros ou serão aprisionados definitivamente pela
web. Não sei. Espero que não.
Por eles.
Perderiam o prazer indescritível de abrir um livro sem saber o que vão encontrar, imaginar, fantasiar. Perderiam as
sensações que significam atravessar essa vida construindo
utopias e abrindo caminhos
que pareciam definitivamente
fechados para o nosso país e o
nosso continente. Por isso,
continuo a esperar por novos
encontros. Por eles e por nós.
Em resumo, por todos.
A Narizinho e Pedrinho, a
Emília e ao Visconde, a Nastácia e Dona Benta, e a todos os
que contribuíram para alimentar meus sonhos e criar minhas
utopias.
CRISTINA FERNÁNDEZ DE KIRCHNER é presidente da Argentina. Este texto foi originalmente publicado como prefácio de "Las Travesuras
de Naricita".
Tradução de Paulo Migliacci.
Texto Anterior: "Hermano" Lobato Próximo Texto: +(L)ivros: Outrora agora Índice
|