São Paulo, Domingo, 25 de Abril de 1999
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Poeta lança livro o 'Canto 2' do épico de Homero e planeja concluir a tradução literal até o fim do ano
A Ilíada de Haroldo

Fabiano Accorsi/Folha Imagem
O poeta Haroldo de Campos, 69 anos, em sua casa, em São Paulo, ao lado do busto de Homero esculpido pelo artista plástico Sergio Romagnolo a convite da Folha


da Redação

O poeta inglês Matthew Arnold escreveu sobre o estilo homérico: "É eminentemente rápido, eminentemente simples e direto... e eminentemente nobre". A rapidez de Homero dá-lhe o aspecto cinematográfico, "a vivacidade de fotogramas", diz Haroldo de Campos.
O estilo direto não nos alcança sem dificuldade, dada a complexidade da métrica, do vocabulário e das articulações de som e sentido propiciadas pelo grego clássico, sem falar nas inúmeras referências míticas e nas descrições sem fim de instrumentos, objetos e acontecimentos. A nobreza, por sua vez, exige a reconstituição de uma percepção pré-cristã do mundo, demasiado distante de todos.
Para realizar esse difícil trabalho, Haroldo de Campos mobilizou também toda a instrumentação poética colocada à disposição pelas vanguardas literárias deste século. Desse modo, a sua versão, repleta de palavras compostas e neologismos, resulta numa veloz, vibrante e enérgica transposição, que recupera "os diversos planos formais do poema", segundo Trajano Vieira, e torna a "Ilíada" uma impressionante leitura contemporânea.
Leia a seguir a entrevista em que Haroldo de Campos -que recebeu há um mês o prêmio Octavio Paz de poesia e ensaio, no México- fala sobre sua tradução.

Folha - Em seu poema "Meninos Eu Vi" (no livro "Crisantempo"), o sr. escreve: "... E já que tudo afinal é névoa-nada/ e o meu tempo (consideremos) pode ser pouco/ e só consegui traduzir até agora uns duzentos e setenta versos/ do primeiro canto da Ilíada...". Em "Mênis - A Ira de Aquiles", livro de 94 que traz a sua tradução do primeiro canto da "Ilíada", o sr. escreve: "Longe de mim a intenção, excessiva para meus propósitos, de uma tradução integral do poema...". O que o fez mudar de idéia?
Haroldo de Campos
- De fato. Minha preocupação inicial era constituir um "modelo" de como traduzir criativamente -"transcriar"- a poesia homérica, com os recursos do arsenal poético da modernidade. A transposição do "Canto 1" foi levada a efeito de maneira progressiva e lenta (de maio de 90 a dezembro de 93, com interrupções no tempo). Foi fruto de uma retomada dos estudos de grego clássico, iniciados por mim, na década de 60, com Francisco Achcar. Dessa vez, trabalhei com Trajano Vieira, seguindo o método de Clyde Pharr, um manual muito instigante, que, a partir da lição 15, usa o "Canto 1" da "Ilíada" como texto de aplicação. Só em agosto de 97 retomei o poema, estimulado pelo fato de o Trajano estar desenvolvendo um seminário de pós-graduação na Unicamp em torno da tradução de Odorico Mendes.
Como eu já havia montado um dispositivo tradutório ao transpor o "Canto 1", a partir da Rapsódia 2 o poema começou a fluir em português, como se brotasse de um vertedouro. A um certo momento, em função de problemas de saúde que tive, traduzi-lo funcionou como uma verdadeira terapia, uma "homeroterapia", que muito me auxiliou na superação dessa fase.
Em fevereiro deste ano, comecei a trabalhar no "Canto 15". Para quem, como eu, se havia dedicado por cerca de seis anos, na década de 80, ao estudo do hebraico e à poesia bíblica, enfrentar o poema homérico era uma rara oportunidade de cotejar, na prática da tradução, as duas matrizes da literatura do Ocidente, assim proclamadas por Auerbach. Nada mais estimulante.
Folha - O concretismo brasileiro, do qual o sr. é um dos criadores, realizou um amplo trabalho de tradução e divulgação da poesia internacional ao longo de mais de quatro décadas. Para esse movimento, a tradução é um elemento-chave, sintetizado na idéia de "transcriação" do original. No entanto, os comentaristas adversos ao movimento argumentam que, por um lado, os concretistas teriam oferecido raríssimas versões completas de grandes obras, por outro lado, eles só estariam interessados em traduzir o que lhes servisse como demonstração de seus próprios princípios poéticos. Sem que se discuta aqui a importância histórica do movimento, já bastante definida, gostaria, no entanto, que o sr. apontasse brevemente quais foram os méritos, mas também quais as lacunas -se o sr. as reconhece- do trabalho de tradução feito pelos concretistas.
Campos -
A argumentação, a meu ver, como tal, não procede. Augusto [de Campos", por exemplo, traduziu criativamente os dificílimos 18 poemas de Arnaut Daniel, o "miglior fabbro" de Provença. Nem Pound chegou a tanto. Eu verti na íntegra outro texto desafiador: o "Lance de Dados", de Mallarmé, comentando minuciosamente esse poema-chave da modernidade; também verti integralmente os 12 capítulos do "Qohélet" ("Eclesiastes") e os oito do "Cântico dos Cânticos" (a publicar), além do poema culminante de Octavio Paz, "Blanco", e do poema-dança do Teatro Clássico Nô, "Hagoromo" ("O Manto de Plumas").
Por outro lado, nosso trabalho de tradução nunca foi eclético, nem acrítico. Só nos dedicamos a "transcriar" (uma operação de alta fidelidade, pois leva em consideração as mínimas articulações fono-semânticas do original) aqueles poetas e poemas que consideramos imprescindíveis ao enriquecimento do patrimônio literário de nossa língua.
O fato de procedermos, em determinados casos, segundo o método ideogrâmico da exibição de "modelos" (como fez Stefan George com suas personalíssimas traduções de Dante, insuperadas em alemão) não foi obstáculo a esse enriquecimento, que abrangeu a poesia russa, vanguardistas alemães, a poesia chinesa, os metafísicos ingleses, Hopkins, Dante, Cavalcanti, os "Cantos" de Pound, cummings, fragmentos do "Finnegans Wake", Goethe, Rilke, Hoelderlin, Píndaro. Dessa prática decorreu, ademais, uma didática: as belas traduções de poesia húngara por Nelson Ascher são um exemplo eficaz de como isso tem operado junto às novas gerações.
Folha - O sr. realizou traduções que representam enorme desafio, entre as quais a da "Divina Comédia", em "Seis Cantos do Paraíso", a do Gênesis, em "Bere'shith", a do "Eclesiastes", em "Qohélet", a de parte do romance "Finnegans Wake", em "Panaroma de Finnegans Wake". Qual é a diferença entre empreender a tradução "selecionada" de uma obra e a de realizar a sua versão integral?
Campos -
Não se pode fazer tudo. Lacunas fazem parte do processo (e alimentam o desejo). Renunciei a estudar ioruba e árabe quando me defrontei com as excelentes traduções de Antônio Risério ("Oriki Orixá") e Michel Sleiman (poesia árabe-andaluza). Assumi o papel de editor, abrindo-lhes a coleção Signos (Perspectiva). A diferença entre a tradução seletivo-modelar e a integral não se põe no plano da qualidade, mas no da intensidade quantificável em número de versos (sempre que, ao longo do projeto integral, se conserve o mesmo teor criativo concentrado no fragmento ou excerto paradigmal). Num poema longo, note-se, sustentar duradouramente a pulsão qualitativa, não se deixar ir por altos e baixos, é o maior e mais premente desafio.
Folha - Quais as maiores dificuldades que um poema como esse, em grego clássico, traz para a tradução em português?
Campos -
A maior dificuldade, como já disse, é sustentar a pulsão, por milhares de versos, sem queda de qualidade. Outra (não enfrentada em geral pelos tradutores, a não ser de maneira esporádica e não inteiramente consciente) é refazer a orquestração -a "melopéia"- do poema homérico, não só quanto à métrica e ao ritmo, mas também no plano microestrutural, das sutis articulações de som e sentido, disseminadas em partitura, efeitos que a poética de Roman Jakobson nos ensinou a detectar e a escutar.
Folha - Quais são as maiores traduções já realizadas da "Ilíada" e da "Odisséia"?
Campos -
Acho o português do Brasil uma língua extremamente plástica e ainda não submetida à tirania ferrenha dos dicionários e das gramáticas acadêmicas (como o espanhol, o francês e, mesmo, o português de Portugal), uma língua metamórfica, ideal para a tradução criativa. Outra língua extraordinariamente dúctil para a tradução de poesia clássica é o inglês, embora, segundo Pound, as traduções nessa língua, mesmo as melhores, não consigam recapturar a singularíssima dimensão melopaica do original grego.
Das traduções homéricas, tenho um especial interesse pelas de J. Heinrich Voss (1751-1826) para o alemão e pelas do brasileiro Odorico Mendes. Ambas foram tachadas de aberrantes quanto à norma dos respectivos idiomas; ambas tentaram grecizar (o alemão) ou greco-latinizar (o português). Voss, para seus fins, inventou um hexâmetro teutônico e levou ao extremo a aptidão de sua língua para a criação de compósitos; Odorico tomou o molde ressonante do decassílabo camoniano e compactou ao máximo os poemas homéricos, fazendo, para tal fim, verdadeiras acrobacias sintáticas. Seus epítetos aglutinados (dedirrósea Aurora, criniazul Netuno) desnortearam a crítica da época. Em ambos os casos -para falar com Derrida- o futuro se anunciou sob a espécie subversiva do "monstruoso".
Folha - Como o sr. sintetizaria, para o leitor que não as conhece, as principais qualidades, mas também os principais problemas, de duas das traduções existentes para o português, a de Odorico Mendes e a de Carlos Alberto Nunes?
Campos -
O maranhense Odorico Mendes (1799-1864), tenho dito mais de uma vez, é o patriarca da tradução criativa em português. Seu projeto é fascinante, dada a radicalidade com que submete o nosso idioma à estranheza sintática e lexical do grego e do latim. Os problemas que oferece são dois. Primeiro, o metro decassilábico, eficaz no plano sonoro e na tradição épica da língua, mas que o obriga a contorções e compressões, tornando a leitura do Homero brasileiro mais dificultosa do que a do original grego (para repetir uma "boutade" do filólogo João Ribeiro, aliás receptivo às inovações odoricanas). O vocabulário extremamente culto, muitas vezes arcaizante, é a segunda dificuldade. Odorico Mendes é capaz, repetidamente, de altíssimos acertos e também de grandes descaídas ocasionais, mas acima de tudo seu arrojado projeto tradutório é o que mais releva.
Quanto a Carlos Alberto Nunes, nascido em 1897, falecido na década de 70, outro maranhense, suas traduções homéricas vêm sendo injustamente passadas em silêncio. Mário Faustino, com razão, apreciava a maneira como Nunes resolve o problema métrico, introduzindo um hexâmetro vernáculo e sustentando-o com rigor ao longo da "Ilíada" e da "Odisséia". O resultado tende mais para uma prosa ritmada, mas não deixa de ser interessante. A linguagem, sem a radicalidade inventiva própria de Odorico, é de padrão neoclássico, recorrendo por vezes a arcaísmos, mas de fluente desenvoltura. Trabalho respeitável e meritório.
Folha - Que recursos o sr. tem utilizado para contornar os problemas que o sr. aponta nas traduções anteriores?
Campos -
Uso de todos os recursos da poética moderna, buscando reconfigurar em português tanto a forma da "expressão" (nível sonoro) como a forma do "conteúdo" (poesia da gramática) do original grego. Adotei o dodecassílabo, que me põe a salvo dos perigos inerentes aos projetos de Odorico (extrema compressão) e C.A. Nunes (prosaísmo).
Folha - Como o sr. contrastaria, do ponto de vista da escrita e também da construção mítica, o Velho Testamento e o épico de Homero -segundo Werner Jaeger, "o educador de toda a Grécia"-, considerando que ambas são obras que exerceram papel dominante na fundação da Europa e, portanto, do Ocidente?
Campos -
É de Auerbach a famosa distinção entre "estilo homérico" (descrição "exteriorizadora" dos eventos, sem descontinuidade e sem ambiguidade) e "estilo bíblico" (abrupto e enigmático). Mas essa oposição tem sido relativizada por outros críticos, como, por exemplo, Norman Austin, que, estudando a função da "digressão" no texto homérico, refere uma segunda vertente, alusiva e elíptica, oblíqua, discernível nos primeiros livros da "Ilíada", que contradiz a tese da "exteriorização" dominante.
As línguas -uma da família indo-européia, outra semítica- são, por outro lado, muito diversas. Basta comparar os respectivos sistemas de verbos ou o aparato complexo das partículas gramaticais no grego e a enxutez anafórica do "vav" ("e") conjuncional no hebraico. Mas, com todas as suas diferenças, a Bíblia hebraica e Homero são, ambos, altíssimos monumentos da poesia, basilares para a literatura do Ocidente.
Folha - Matthew Arnold, em "On Translating Homer", aponta como características do estilo homérico: "É eminentemente rápido, eminentemente simples e direto... e eminentemente nobre". Jasper Griffin diz, por sua vez, que é um estilo que não possui a "pomposidade isenta de humor que é, talvez, o defeito característico do estilo de poetas como Virgílio, Milton e Racine". Quais seriam, na sua opinião, os traços característicos da poesia de Homero?
Campos -
A rapidez, o movimento da dicção homérica, é um traço que também impressiona a Pound. Parece que estamos diante de um desenrolar cinematográfico quando acompanhamos a sucessão das cenas de combate, na "Ilíada", que têm como que a vivacidade de fotogramas. Mas Homero, nos numerosos trechos descritivos, nos símiles com que os articula, nas "vinhetas" onde exibe a ornamentação de um escudo, o primor das armaduras, o lavor das copas e a riqueza das alfaias nas tendas e palácios reais, é de uma sofisticação artesanal que maravilha. É evidente, para mim, sua superioridade sobre Virgílio, Milton ou Racine. Só Shakespeare e Dante ombreiam com ele.
Opô-lo a Virgílio -como um poeta "natural", espontâneo, e outro "artificial", derivado, refinadamente culto-, se, por um lado, salienta o caráter epigonal da "Eneida" (no sentido não pejorativo da "imitatio"), por outro obscurece o inexcedível virtuosismo do verso homérico (o caráter oral de uma poesia, para Jakobson, nada tem a ver com seu grau de sofisticação); ademais, o "estilo formular" de Homero não se reduz a uma simples mnemotécnica; como indica Trajano Vieira ("Homero e Tradição Oral", em "A Ira de Aquiles"), esse estilo foi com pertinência comparado por Havelock "ao jazz, no qual a linha temática "memorizada" pelo solista se presta a improvisações durante a performance...".
Folha - Que procedimento de leitura o sr. aconselharia àqueles que queiram encarar a aventura homérica? E, para os jovens poetas, o que destacaria como sendo as lições literárias permanentes da "Ilíada"?
Campos -
Temos a fortuna, no Brasil, de possuirmos duas apreciáveis traduções integrais, em verso, das rapsódias homéricas. Convém lê-las a ambas, bem como ter à disposição um dicionário mitológico, para esclarecimento de referências. A atualidade da "Ilíada" é, desde logo, uma atualidade inquietante. O poema exemplar do Ocidente começa pela palavra "ira" ("mênis"). Desde Aquiles e Héctor, os homens, ao longo da história, nunca deixaram de guerrear-se...
Folha - Para nosso mundo, bastante afastado dos heróis, mas ainda muito próximo das guerras, qual seria, na sua opinião, o significado de um épico como a "Ilíada"?
Campos -
Simone Weil, melhor do que ninguém, abordou a tragicidade da "Ilíada" num ensaio de 1940 (escrito em plena Segunda Guerra, portanto). Ao mesmo tempo em que viu na "Ilíada" o "poema da força", a pensadora francesa de origem judia, estudiosa da cultura grega, soube discernir, por sob o "acúmulo de violências", o traço de "amargura insanável" que se fazia continuamente sentir ao longo do texto e que conferia ao "epos" homérico um caráter único. Nele "o desvalimento e a miséria de todos os homens é mostrado sem dissimulação nem desdém (...), tudo que é destruído é lamentado". O divino, invencível Aquiles está, não obstante, fadado a morrer jovem, para conquistar a glória. O perene (a fama) é um efeito da efemeridade (o truncamento da vida). Se não me engano, foi Fernando Pessoa quem disse que todo poema deve pôr de manifesto que Homero existiu (um tema para a reflexão do poeta jovem...).


Colaborou Nelson Ascher.



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