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Para Trajano Vieira, agonia da personagem homérica vem da sua connsciência do caráter transitório da vida
A vida efêmera
da Redação
"Homero inventou dois modelos fundamentais de heróis: o viril
(Aquiles e Ájax) e o astuto (Ulisses)", explica na entrevista a seguir o helenista Trajano Vieira.
Folha - A épica homérica é considerada a obra fundadora da civilização e do "espírito" gregos. Para
um leitor que jamais leu a "Ilíada"
e a "Odisséia", o sr. poderia explicar de que maneira esses poemas
épicos, que hoje são um item da
biblioteca clássica, puderam exercer influência tão forte na formação de um povo e de uma cultura?
Trajano Vieira - Um dos méritos dos estudos sobre a oralidade
foi o de apontar a função social da
"Ilíada" e "Odisséia", durante
séculos, na Grécia antiga. Para repetir a expressão feliz de Eric Havelock, os poemas de Homero foram uma espécie de "enciclopédia
tribal", de onde os helênicos tiravam informações fundamentais
sobre procedimentos ritualísticos,
técnicas de guerra, regras de hospitalidade, estrutura olímpica etc.
Pelo menos desde o século 8 a.C.,
época em que viveu Homero, até o
século 5 a.C., quando o discurso filosófico elabora de modo mais articulado os fundamentos da linguagem abstrata, a sua obra foi a
referência principal para segmentos importantes da população.
Chamo a atenção para o fato de
que o próprio Sócrates, que pretendeu, segundo a "República"
platônica, excluir Homero e os
poetas de sua cidade ideal, pouco
antes de tomar cicuta, revelou aos
amigos seu desejo de encontrar,
depois da morte, Homero, para
poder continuar a discutir, dessa
vez com o poeta magno, questões
referentes à representação e ao conhecimento. No que se refere à recepção da épica homérica, houve,
na Grécia antiga, uma feliz e rara
conjunção entre função estética e
propedêutica.
Folha - O que distingue os dois
épicos de Homero de outros "relatos de fundação", tais como o "Gilgamesh" e o "Velho Testamento"?
Vieira - A "Ilíada" e a "Odisséia" são a expressão do caráter
dialógico da cultura grega. Os referenciais mitológicos presentes nos
dois poemas não traduzem dogmas religiosos, mas refletem uma
incrível diversidade cultural. Nunca houve uma unidade religiosa na
Grécia que chegasse a anular as diferentes manifestações regionais.
Isso é o resultado da organização e
autonomia política das cidades-Estado. Cada uma dessas cidades valorizava diferentemente, por
meio de práticas ritualísticas específicas, determinadas figuras divinas, estabelecendo uma hierarquia
particular entre os deuses.
A uniformidade cultural grega
foi um mito criado no século 19,
atualmente insustentável. Essa capacidade de avaliar e colocar em
xeque, muitas vezes de maneira
dramática, seus próprios valores, é
uma marca importante da tradição helênica. O conflito, o enfrentamento de situações contraditórias, define não só os poemas homéricos, mas as produções gregas
de um modo geral. Nesse sentido,
cabe mencionar Aristófanes, que
retratou com enorme sarcasmo,
entre outros, seus contemporâneos Sócrates e Eurípides.
Folha - No legado literário grego,
a Guerra de Tróia e os personagens nela envolvidos aparecem
não apenas na "Ilíada", mas em um
conjunto de poemas anteriores à
obra de Homero (muitos deles
apenas parcialmente conhecidos),
bem como em uma série de tragédias. Por que essa guerra ocupa
tanto o imaginário grego? O que a
"Ilíada" tem a nos dizer sobre o
que seja uma guerra?
Vieira - A guerra é apenas um
aspecto de uma cultura que, como
a grega, funda seus alicerces na
disputa ou, para usar um termo
helênico, na situação agonística.
Creio que o que está por trás dessa
situação é uma relação problemática com a própria linguagem, é o
fato de os gregos, desde os seus
primórdios, acreditarem que a
verdade resulta de um processo
conflituoso e não de uma revelação pacífica ou mística.
O primeiro autor que nos vem à
mente, nesse sentido, é Heráclito,
para quem, como se sabe, a harmonia decorreria do conflito dos
opostos. Mas é preciso lembrar
também a própria maneira de revelação divina, presente na consulta oracular: o paradoxo, a informação cifrada era o modo de comunicação utilizado pelos sacerdotes, que evitavam a linguagem
direta e transparente. A dúvida talvez seja a principal fonte geradora
de conflitos até hoje, e os gregos
levaram às últimas consequências
o ato de interrogar, o que explica o
fim trágico de Sócrates e, no âmbito literário, o de Édipo e Prometeu.
Folha - Northrop Frye comenta
que a visão de Homero da vida humana é objetiva e desinteressada.
Ou seja, o poeta teria um olhar
"imparcial" dos personagens da
"Ilíada", obra que por isso não teria "vilões" nem "mocinhos". O que
significa, então, o "herói" e o "ato
heróico" na obra homérica?
Vieira - Prefiro pensar que a visão de Homero, mais do que "objetiva" ou "desinteressada", é
fundamentalmente dramática. A
agonia do herói grego decorre de
sua consciência do caráter transitório da vida. Não à toa, os deuses
despertavam admiração sobretudo por sua perenidade. Como tornar sublime a natureza efêmera, a
não ser pela realização de proezas,
admiradas pela comunidade e perpetuadas pelos poetas? Penso ser
essa uma questão importante que
motiva os atos heróicos.
Homero inventou os dois modelos fundamentais de heróis: o viril,
que, por meio da luta, comprova
sua supremacia (Aquiles e Ájax,
por exemplo), e o astuto, que derrota seu antagonista por meio de
estratégias imprevisíveis (Ulisses).
Mas há também o herói humano,
que, mesmo em plena guerra, recorda o aspecto afetivo e menos
idealizado da vida (Héctor).
Quanto à inexistência, em Homero, de uma visão maniqueísta
"vilão" versus "mocinho", isso
se deve ao fato de prevalecer um
rigoroso código de conduta aristocrática, controlado por uma ética
não menos rigorosa. Na guerra, vigora a posição de quem comprova
a supremacia de sua força, e não de
quem, por temor, revela-se desfibrado. Páris é uma bela imagem,
mas inconsistente.
Folha - Sabemos que os gregos
não concebiam o sujeito de maneira abstrata, tal como o entendemos talvez desde a Idade Moderna, não sendo a "Ilíada", pois, um
épico que narra o conflito entre
várias "individualidades" livres.
Como interpretar, então, emoções
que hoje tomaríamos por "pessoais" na obra, tal como o extraordinário e central episódio da "Ilíada" em que Aquiles é informado
da morte de seu amigo Pátroclo?
Vieira - O helenista alemão
Bruno Snell foi quem escreveu que
não haveria uma unidade subjetiva nos personagens épicos. Em lugar dessa unidade, encontraríamos o herói submetido a toda sorte de motivações, muitas vezes resultantes de intervenção divina.
Nesse sentido, Herman Fraenkel
caracterizou a subjetividade homérica com a expressão "campo
aberto de forças". Logo no primeiro canto da "Ilíada", por
exemplo, Aquiles se enfurece com
Agamêmnon e pretende matá-lo.
Em lugar de retratar a tensão psíquica do herói, Homero faz intervir Palas Atena, e o que para nós
seria um estado emocional acaba
se transferindo para o âmbito de
um diálogo.
Esse tipo de interpretação vem
sofrendo, contudo, muitas críticas
nos últimos anos. Indico, aos interessados, a discussão minuciosa
sobre o assunto apresentada por
Paula da Cunha Corrêa em "Armas e Varões" (Ed. da Unesp,
1999). Tendo a imaginar que Homero representou o universo subjetivo de maneira objetiva (por
meio da intervenção divina, do
diálogo com órgãos de percepção)
por opção estética. Respondendo,
assim, à sua questão, eu diria que a
introspecção, a representação
subjetiva do sofrimento estão presentes no poema, ao contrário do
que afirmaram os helenistas no
início do século. Como observou
recentemente -e não sem ironia- um estudioso inglês, a prova
disso estaria no próprio uso, por
parte de Homero, do pronome de
primeira pessoa: "egó" ("eu").
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