São Paulo, Domingo, 25 de Abril de 1999
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Para Trajano Vieira, agonia da personagem homérica vem da sua connsciência do caráter transitório da vida
A vida efêmera

da Redação

"Homero inventou dois modelos fundamentais de heróis: o viril (Aquiles e Ájax) e o astuto (Ulisses)", explica na entrevista a seguir o helenista Trajano Vieira.

Folha - A épica homérica é considerada a obra fundadora da civilização e do "espírito" gregos. Para um leitor que jamais leu a "Ilíada" e a "Odisséia", o sr. poderia explicar de que maneira esses poemas épicos, que hoje são um item da biblioteca clássica, puderam exercer influência tão forte na formação de um povo e de uma cultura?
Trajano Vieira -
Um dos méritos dos estudos sobre a oralidade foi o de apontar a função social da "Ilíada" e "Odisséia", durante séculos, na Grécia antiga. Para repetir a expressão feliz de Eric Havelock, os poemas de Homero foram uma espécie de "enciclopédia tribal", de onde os helênicos tiravam informações fundamentais sobre procedimentos ritualísticos, técnicas de guerra, regras de hospitalidade, estrutura olímpica etc.
Pelo menos desde o século 8 a.C., época em que viveu Homero, até o século 5 a.C., quando o discurso filosófico elabora de modo mais articulado os fundamentos da linguagem abstrata, a sua obra foi a referência principal para segmentos importantes da população.
Chamo a atenção para o fato de que o próprio Sócrates, que pretendeu, segundo a "República" platônica, excluir Homero e os poetas de sua cidade ideal, pouco antes de tomar cicuta, revelou aos amigos seu desejo de encontrar, depois da morte, Homero, para poder continuar a discutir, dessa vez com o poeta magno, questões referentes à representação e ao conhecimento. No que se refere à recepção da épica homérica, houve, na Grécia antiga, uma feliz e rara conjunção entre função estética e propedêutica.
Folha - O que distingue os dois épicos de Homero de outros "relatos de fundação", tais como o "Gilgamesh" e o "Velho Testamento"?
Vieira -
A "Ilíada" e a "Odisséia" são a expressão do caráter dialógico da cultura grega. Os referenciais mitológicos presentes nos dois poemas não traduzem dogmas religiosos, mas refletem uma incrível diversidade cultural. Nunca houve uma unidade religiosa na Grécia que chegasse a anular as diferentes manifestações regionais. Isso é o resultado da organização e autonomia política das cidades-Estado. Cada uma dessas cidades valorizava diferentemente, por meio de práticas ritualísticas específicas, determinadas figuras divinas, estabelecendo uma hierarquia particular entre os deuses.
A uniformidade cultural grega foi um mito criado no século 19, atualmente insustentável. Essa capacidade de avaliar e colocar em xeque, muitas vezes de maneira dramática, seus próprios valores, é uma marca importante da tradição helênica. O conflito, o enfrentamento de situações contraditórias, define não só os poemas homéricos, mas as produções gregas de um modo geral. Nesse sentido, cabe mencionar Aristófanes, que retratou com enorme sarcasmo, entre outros, seus contemporâneos Sócrates e Eurípides.
Folha - No legado literário grego, a Guerra de Tróia e os personagens nela envolvidos aparecem não apenas na "Ilíada", mas em um conjunto de poemas anteriores à obra de Homero (muitos deles apenas parcialmente conhecidos), bem como em uma série de tragédias. Por que essa guerra ocupa tanto o imaginário grego? O que a "Ilíada" tem a nos dizer sobre o que seja uma guerra?
Vieira -
A guerra é apenas um aspecto de uma cultura que, como a grega, funda seus alicerces na disputa ou, para usar um termo helênico, na situação agonística. Creio que o que está por trás dessa situação é uma relação problemática com a própria linguagem, é o fato de os gregos, desde os seus primórdios, acreditarem que a verdade resulta de um processo conflituoso e não de uma revelação pacífica ou mística.
O primeiro autor que nos vem à mente, nesse sentido, é Heráclito, para quem, como se sabe, a harmonia decorreria do conflito dos opostos. Mas é preciso lembrar também a própria maneira de revelação divina, presente na consulta oracular: o paradoxo, a informação cifrada era o modo de comunicação utilizado pelos sacerdotes, que evitavam a linguagem direta e transparente. A dúvida talvez seja a principal fonte geradora de conflitos até hoje, e os gregos levaram às últimas consequências o ato de interrogar, o que explica o fim trágico de Sócrates e, no âmbito literário, o de Édipo e Prometeu.
Folha - Northrop Frye comenta que a visão de Homero da vida humana é objetiva e desinteressada. Ou seja, o poeta teria um olhar "imparcial" dos personagens da "Ilíada", obra que por isso não teria "vilões" nem "mocinhos". O que significa, então, o "herói" e o "ato heróico" na obra homérica?
Vieira -
Prefiro pensar que a visão de Homero, mais do que "objetiva" ou "desinteressada", é fundamentalmente dramática. A agonia do herói grego decorre de sua consciência do caráter transitório da vida. Não à toa, os deuses despertavam admiração sobretudo por sua perenidade. Como tornar sublime a natureza efêmera, a não ser pela realização de proezas, admiradas pela comunidade e perpetuadas pelos poetas? Penso ser essa uma questão importante que motiva os atos heróicos.
Homero inventou os dois modelos fundamentais de heróis: o viril, que, por meio da luta, comprova sua supremacia (Aquiles e Ájax, por exemplo), e o astuto, que derrota seu antagonista por meio de estratégias imprevisíveis (Ulisses). Mas há também o herói humano, que, mesmo em plena guerra, recorda o aspecto afetivo e menos idealizado da vida (Héctor).
Quanto à inexistência, em Homero, de uma visão maniqueísta "vilão" versus "mocinho", isso se deve ao fato de prevalecer um rigoroso código de conduta aristocrática, controlado por uma ética não menos rigorosa. Na guerra, vigora a posição de quem comprova a supremacia de sua força, e não de quem, por temor, revela-se desfibrado. Páris é uma bela imagem, mas inconsistente.
Folha - Sabemos que os gregos não concebiam o sujeito de maneira abstrata, tal como o entendemos talvez desde a Idade Moderna, não sendo a "Ilíada", pois, um épico que narra o conflito entre várias "individualidades" livres. Como interpretar, então, emoções que hoje tomaríamos por "pessoais" na obra, tal como o extraordinário e central episódio da "Ilíada" em que Aquiles é informado da morte de seu amigo Pátroclo?
Vieira -
O helenista alemão Bruno Snell foi quem escreveu que não haveria uma unidade subjetiva nos personagens épicos. Em lugar dessa unidade, encontraríamos o herói submetido a toda sorte de motivações, muitas vezes resultantes de intervenção divina.
Nesse sentido, Herman Fraenkel caracterizou a subjetividade homérica com a expressão "campo aberto de forças". Logo no primeiro canto da "Ilíada", por exemplo, Aquiles se enfurece com Agamêmnon e pretende matá-lo. Em lugar de retratar a tensão psíquica do herói, Homero faz intervir Palas Atena, e o que para nós seria um estado emocional acaba se transferindo para o âmbito de um diálogo.
Esse tipo de interpretação vem sofrendo, contudo, muitas críticas nos últimos anos. Indico, aos interessados, a discussão minuciosa sobre o assunto apresentada por Paula da Cunha Corrêa em "Armas e Varões" (Ed. da Unesp, 1999). Tendo a imaginar que Homero representou o universo subjetivo de maneira objetiva (por meio da intervenção divina, do diálogo com órgãos de percepção) por opção estética. Respondendo, assim, à sua questão, eu diria que a introspecção, a representação subjetiva do sofrimento estão presentes no poema, ao contrário do que afirmaram os helenistas no início do século. Como observou recentemente -e não sem ironia- um estudioso inglês, a prova disso estaria no próprio uso, por parte de Homero, do pronome de primeira pessoa: "egó" ("eu").


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