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Frank Kermode mostra a importância da linguagem para entender as peças do autor
Shakespeare, um artista da palavra
Barbara Heliodora
especial para a Folha
Depois de cerca de duas décadas
dominadas pela crítica daquilo
que Harold Bloom rotula de "a
escola dos ressentidos", é um
prazer ver sair, tão logo depois do personalíssimo livro do mesmo Bloom, a notável e mais do que objetiva "Shakespeare's Language" (A Linguagem de Shakespeare), análise da obra de William Shakespeare (1564-1616) por Frank Kermode, um dos mais notáveis estudiosos da
poesia em nosso tempo. Kermode começa sua obra explicando que a dedica a um
público não-profissional, por acreditar
que este tem sido muito mal servido pela
crítica moderna. Esta tem dado pouca
atenção justamente a seu tema principal,
a linguagem de Shakespeare, pela qual,
considera ele, ou passam quase sem lhe
notar a existência ou a ela se referem em
termos recônditos, que levam os leitores
a vê-la como relíquia complicadora e não
como elemento vivo.
Pois é essa linguagem que Kermode,
que foi professor "Lord Northcliffe" de
inglês moderno no University College,
em Londres, professor "Edward 7º" de literatura inglesa em Cambridge e professor "Charles Eliot Norton" de poesia em
Harvard, analisa com imenso conhecimento de teoria literária -voltado,
igualmente, para o grande processo evolutivo graças ao qual, para usar seus termos precisos, Shakespeare passa da poesia da página para a poesia da cena.
As grandes mudanças nos meios de expressão, para Kermode, levam seu livro a
uma divisão em duas partes: na primeira
são englobadas todas as peças escritas
até 1599, analisadas de modo mais sucinto em um só conjunto, enquanto a segunda, mais longa, examina separadamente "Julio Cesar", "Hamlet", "Troilus
e Cressida", "Medida por Medida",
"Otelo", "Rei Lear", "Macbeth", "Antônio e Cleópatra", "Tímon de Atenas",
"Coriolano", "Péricles", "Cymbeline",
"Conto de Inverno", "A Tempestade" e,
finalmente, "Henrique 8º" com "The
Two Noble Kinsmen", do mesmo modo
que já havia incluído peças com linguagem semelhante junto a um ou outro título.
"Shakespeare's Language" se propõe
básica e essencialmente como um estudo
da poesia na obra dramática do bardo de
Stratford; mas ao longo do caminho encontramos repetidas referências aos sonetos e, principalmente, ao poema "The
Phoenix and Turtle", sempre citados como ilustrações do domínio de Shakespeare sobre a expressividade da linguagem poética. O que distingue a posição
de Kermode é a lucidez de sua imensa
admiração por Shakespeare como supremo artista da palavra, que permanece
em todos os momentos aquém da "bardolatria". Aos puristas delirantes, que
não aceitam nenhuma possibilidade de
interferência de colaboradores nos textos dramáticos, ele lembra o quanto
eram estes vulneráveis em razão da precariedade dos métodos e meios de publicação, alterações em remontagens devidas à transmissão oral etc. (afora os casos
de verdadeira colaboração).
Ouvido treinado
Na introdução que
antecede as duas partes de análise das
obras, Kermode é magistralmente esclarecedor. Além de referir-se às reconhecidas dificuldades de compreensão devidas a mudanças semânticas ocorridas
desde a época em que Shakespeare viveu,
lembra o autor ao shakespeariano não-profissional a maior facilidade que tinha
o público original do poeta de entender
trechos que hoje nos pedem mais de uma
leitura, simplesmente porque aquele tinha o ouvido muito mais
treinado do que o nosso
para a apreciação da literatura oral, enquanto a
nossa época é muito mais
visual. Não é à toa que o
elisabetano ia ao teatro
"ouvir" uma peça.
Outro aspecto pouco
lembrado que aqui merece sua devida atenção é o
fato de William Shakespeare ter vivido em uma época em que
era regra aprender a ser poeta, primordialmente, pela obediência às regras da
retórica; e em toda a primeira parte do livro o que Kermode destaca é justamente
o caminho traçado por Shakespeare desde sua fase inicial, de grande uso da retórica.
Fica a poesia, nas primeiras aventuras
dramáticas, estritamente voltada para o
uso das regras e dos recursos segundo os
quais o poeta seria bom ou mau, e o processo de libertação, de individualização,
pode ser apreciado também pelo uso inicial, como em "A Comédia dos Erros",
da permanente equivalência da frase
com o verso, com cada dez sílabas (ou
pentâmetros iâmbicos) contendo um
pensamento completo. O pensamento
expressado em vários versos, como o uso
de versos quebrados em dois ou três pequenas frases ditas por personagens diversos, é produto do amadurecimento
no domínio da forma essencialmente
dramática.
Mas talvez a contribuição mais significativa da análise de Kermode seja a que
concerne ao crescente uso da hendíadis,
que o autor explica como "um modo de
tornar estranha uma única idéia por partir a expressão em dois, de modo que ela
passa a exigir uma explicação, como
uma metáfora pequenina e muitas vezes
um tanto sinistra", e que aqui usamos segundo a definição do "Aurélio": "Figura
de retórica que consiste em exprimir por
dois substantivos ligados por coordenação uma idéia que normalmente se representaria subordinando um deles ao
outro".
Muito embora Kermode já encontre
alguns exemplos desse uso em peças anteriores, é no "Hamlet"
que ele se assevera como
recurso de imenso potencial para a evocação de
idéias e climas: "Things
rank and gross", "the
book and volume", "oppressed and fear-surprised eye" etc. Depois do altíssimo número de exemplos dessa figura de retórica em sua primeira
grande tragédia, quando tanto pesa para
a criação do clima de ambiguidades, incertezas e hesitações, ela continua presente, mas reduzida a um dentre muitos
recursos retóricos, mesmo que sempre
um pouco favorita.
Nas análises específicas da segunda
parte, o trabalho de Kermode é sempre
revelador: mesmo contestando as interpretações redutoras recentes que vêem
Shakespeare apenas como um produto
sociopolítico de seu tempo, ele escreve
sobre a alta qualidade da linguagem do
"Julio César", a primeira peça escrita para o novo teatro da companhia para a
qual Shakespeare escrevia, o Globe, notando que, ao mesmo tempo em que ele
usa sua imensa inventividade para compactar, omitir, dar mais foco e alterar relacionamentos tais como os encontrou
em Plutarco, a peça é "intensamente política, fato que tem influência determinante sobre a sua linguagem", mas nada
a faz político-partidária como querem
alguns críticos das últimas décadas.
O longo capítulo sobre "Hamlet" enfoca em particular a total novidade da
obra, impossível de ser enquadrada em
qualquer fórmula e, em termos de amplitude dramática, efetivamente nova, incomparavelmente mais abrangente do
que tudo o que existe de anterior a ela. A
tragédia exibe uma variedade de situações, condições e personagens que só
puderam existir porque, àquela altura,
em 1601, Shakespeare dominava a tal
ponto o seu uso da língua inglesa, já conquistara uma tal flexibilidade de formas,
que foi capaz de criar esse universo dramático inteiramente novo.
Isso não significa que o poeta esquecesse de qualquer de seus estágios anteriores, pois nada o impede de recorrer a
eles quando conveniente ou necessário,
como nos antiquados versos da "comédia-dentro-da-comédia".
A ênfase sobre a justiça e os valores éticos nas chamadas "problem plays"
("Troilus e Cressida", "All's Well That
Ends Well" e "Medida por Medida") é
interessante em particular quando Kermode as vê como experiências com a linguagem nem sempre bem-sucedidas,
mais interessante nos grandes debates da
primeira, em boa parte da última, e dura
e contorcida na segunda, com determinados versos de tal modo compactos que
simplesmente descobrir o que está na
verdade sendo dito é muitas vezes mais
difícil do que qualquer interpretação
posterior do pensamento.
Já em "Otelo", o nível do vocabulário
de Iago é usado para a caracterização da
sordidez e mesquinhez de sua verdadeira
personalidade, quando ele está só ou no
ambiente de caserna que as atividades
militares da tragédia sugerem; o nível é
alterado, no entanto, quando interessa a
ele apresentar sua aparência de "honest
Iago". Essa espécie de quase dupla personalidade é parte integrante da importância do tema verdade/aparência que domina a peça, expressado pela frequência
dos verbos "to think", "to seem" ou, a
fim de determinar o que pensar, "to see"
e "to observe".
A linguagem vai ficando cada vez mais
densa e oblíqua, mas é ocioso continuar
a tentar resumir os comentários de
Frank Kermode sobre todas as obras
pós-1599, porque o realmente significativo em "Shakespeare's Language" não é
este ou aquele comentário ou esclarecimento, mas o conjunto. Não é possível,
no entanto, deixar de chamar a atenção
para o fato de o crítico considerar, com
grande justeza, que nas obras da maturidade o leitor, se quiser realmente apreciar as peças de Shakespeare, terá de se
dar ao trabalho de prestar muita atenção
aos detalhes, pois estes são profundamente reveladores.
O aspecto mais interessante do notável
trabalho de Kermode, no entanto, me
parece ser sua consciência da importância da linguagem na obra dramática de
Shakespeare, mas também sua clara
consciência de que as peças, justamente
enquanto obras dramáticas, são muito
mais do que isso, e que a importância da
linguagem só se faz notar por ser ela um
dos instrumentos para a expressão da
imaginação, da capacidade criativa com
que o poeta cria aqueles textos que foram
concebidos para tomar vida no palco.
O puro e simples conhecimento, a total
intimidade que Frank Kermode tem tanto com as obras de Shakespeare quanto
com os idiomas da poesia, a acuidade
com que ele analisa as obras sem jamais
permitir que a perfeita objetividade diminua em qualquer mínima medida sua
inesgotável admiração por Shakespeare
fazem de "Shakespeare's Language"
uma contribuição à exegese das peças
que tem tudo para vir a se juntar ao pequeno e precioso núcleo de obras críticas
de interesse permanente, que se destaca
do dilúvio do que podemos chamar de
"shakespearianices" de momento.
Shakespeare's Language
324 págs., 20 libras
de Frank Kermode. Allen Lane/
The Penguin Press (Inglaterra).
Onde encomendar
Em SP, na FNAC (tel. 0/xx/11/
867-0022), e, no RJ, na livraria
Marcabru (tel. 0/xx/ 21/294-5994).
Barbara Heliodora é tradutora shakespeariana e
crítica de teatro, autora, entre outros, de "Falando
de Shakespeare" (Perspectiva).
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