São Paulo, domingo, 25 de junho de 2000


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Em "A Invenção do Humano" Harold Bloom faz original guia de leitura do escritor
Pessoal e indispensável

Lorin Stein
especial para "Salon"

No início de "Shakespeare - A Invenção do Humano", Harold Bloom relega "As Alegres Comadres de Windsor" a "uma bobagem, em que um impostor se finge de sir John Falstaff. Falstaff sem a sagacidade titânica e a inteligência metamórfica não é Falstaff... e "As Alegres Comadres de Windsor" é um exercício escabroso de sadomasoquismo, que terá enorme popularidade para sempre exatamente devido a essa base".
Assim como muitas declarações de Bloom, essa tem certo patos confessional. O Bloom que agradou à galeria dos guerreiros de amendoim da cultura com seus grandes sucessos do cânone ocidental e que recheou seus livros com críticas ruidosas à "Escola do Ressentimento" não é o verdadeiro Bloom -o que nos ensinou a ler Wordsworth, Emerson, Dickinson, Whitman, Stevens, Bishop e Ashbery-, assim como o rei gordo na cesta de roupa suja não é o mentor do Príncipe Hal.
O Bloom verdadeiro e indispensável está em toda parte em "Shakespeare - A Invenção do Humano" e é evidente demais para não ser notado. Em uma recente resenha do livro para a "The New Yorker", Anthony Lane escreveu: "Se é crítica prática o que você procura, esqueça; esse livro é quase tão prático -e tão perturbador- quanto um unicórnio". Perturbador, talvez. Mas, se essa coletânea de ensaios curtos (um sobre cada peça) não é crítica prática -uma ajuda para estudantes, professores, público de teatro, leitores na cama, qualquer pessoa que deseje um relato esteticamente plausível das peças, então não sei o que é.
Na verdade, "Shakespeare" é provavelmente o primeiro livro de utilidade geral escrito por Bloom, ainda mais útil para os não-acadêmicos que os velhos manuais colegiais. Talvez sua maior utilidade seja para os diretores teatrais, que (suspeito) são o público ideal secreto de Bloom.
Não que ele prescreva produções, como os ortodoxos engajados que dominaram as apresentações de Shakespeare na América nas últimas décadas. A leitura das peças por Bloom simplesmente ajuda mais um diretor -admite maior complexidade, motivos-chave para elevar o tom- que qualquer outra. São modelos de originalidade quando a originalidade é mais necessária. Entre as leituras, Bloom gosta de afirmar, em formulações diversas, que Shakespeare "inventou o humano".
Vários leitores antes dele (entre os quais Lane) confundiram essa afirmação com um argumento. Não é nada disso. É uma postura -devida (como muitas outras coisas nas críticas recentes de Bloom) a Oscar Wilde, que declarou que a arte não imita a vida; a vida imita Shakespeare, o melhor que pode. Depois de anos lendo e ouvindo as variações de Bloom sobre o tema, não tenho certeza se ele o tornou mais claro ou mais respeitável intelectualmente do que Oscar Wilde pretendia.
Dito isso, Bloom fez ótimo uso de sua postura wildiana. Insistindo que Shakespeare nos inventou (seja qual for o significado disso), Bloom evita buscar cansativamente nas peças a "importância" que popularizou Shakespeare, tornando-o um comentarista desinformado das políticas atuais.
Vivemos, estranhamente, uma era dourada de crítica shakespeariana. No ano passado Helen Vendler publicou o que deveria ser a edição definitiva dos sonetos; agora Bloom nos dá uma obra que vem coroar sua carreira, um livro que, em suas particularidades, deve cativar igualmente bloomianos e não-bloomianos. Se alguma peça de crítica literária pode ter consequências práticas -no palco e na imaginação-, essa é peça.



Shakespeare - A Invenção do Humano
896 págs., R$ 64,90 de Harold Bloom. Trad. de José Roberto O'Shea. Objetiva (r. Cosme Velho, 103, CEP 22241-090, RJ, tel. 0/xx/ 21/ 556-7824).



Lorin Stein é escritora e ensaísta.
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.


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