São Paulo, domingo, 25 de junho de 2006

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Ponto de fuga

Lágrimas e melodramas

Cenários abstratos, sugestivos, iluminação etérea; quando os dois amantes unem-se no amor e na morte, caminham para uma luz transfigurada que os absorve

JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

Duas Palmas de Ouro em Cannes confirmam, com trombetas, o entusiasmo da crítica pelos irmãos Dardenne. "A Criança" foi o premiado do ano passado. É um cinema que capta, com sentido forte, os lugares marginais das metrópoles ricas e modernas: beiras de auto-estrada, pátios semi-abandonados, estacionamentos malcuidados. Sabe pôr em relevo a verdade dos atores. Navega nas águas do neo-neo-realismo, cinema-verdade pós-Dogma. Faz crítica social, busca intensidade metafísica e incorpora situações comoventes que envolvem um bebê. Há em tudo isso alguma coisa que não convence. O jornal "Village Voice", de Nova York, dizia que "Rosetta", a outra Palma de Ouro (1999) dos Dardenne, era a "retomada marxista da "Mouchette" de Bresson" . O final de "A Criança" lembra o de "Pickpocket", do mesmo Bresson. Mas o paralelo revela o quanto "A Criança" se perde em sentimentalismo social, que está nos antípodas do cinema bressoniano. O filme também não alcança a força arrasadora dos verdadeiros melodramas (ah! Como os mexicanos sabiam outrora dar uma dimensão épica a essas histórias de mães infelizes e filhos ameaçados!). Nem Bresson nem Ken Loach nem Emilio "Indio" Fernández; "A Criança" deixa um gosto insatisfeito. Para a marginalização de adolescentes, é melhor "Réquiem para um Sonho", de Darren Aronovsky (2000), centrado no consumo de drogas (ausente por inteiro de "A Criança", o que é bastante inverossímil). Para a irresponsabilidade e inconseqüência das jovens gerações, "A Isca", de Bertrand Tavernier (1995). Para a relação entre juventude e desígnios metafísicos, Bresson, apenas. Dito isso, muita gente boa elevou os Dardenne às nuvens.

Guilhotina
André Chénier, poeta francês, teve sua alta poesia traduzida por Machado de Assis. Entusiasta da liberdade, abraçou a causa da Revolução Francesa. Terminou devorado por ela, como tantos outros. Foi executado em 1794. Cem anos depois, Umberto Giordano, brilhante músico da "giovane scuola", que renovava então a música italiana, compôs uma partitura sobre a trajetória dessa vida infeliz. É a ópera "Andrea Chénier". Foi recentemente apresentada no Teatro Municipal de São Paulo. Soberba montagem: cenários abstratos, sugestivos, iluminação etérea; quando os dois amantes se unem no amor e na morte, caminham para uma luz transfigurada que os absorve. Na última das bem poucas récitas, o tenor búlgaro Kaludi Kaludov, adoentado, abandonou a partida no final do segundo ato; mas foi o suficiente para revelar suas extraordinárias qualidades de timbre, de musicalidade. Apenas algumas leves dificuldades nos agudos denunciavam esforço. É o mesmo grande intérprete que gravou, em 1992, para o selo Naxos, a "Manon Lescaut" de Puccini. Marcello Vanucci, de voz mais grave, o substituiu. Terminou com bravura os dois últimos atos da ópera. Maria Russo, cantora americana, encarnou a amada de Chénier com um vozeirão capaz de nuanças delicadas. Licio Bruno, prodigioso artista, impôs seu magnetismo no papel poderoso de Gérard. Jamil Maluf, diante da Orquestra Experimental de Repertório, extraiu as energias e as transparências da partitura. No final, explosão de aplausos: noitada para levar quem diz que não gosta de ópera e transformá-lo, sem hesitação, num convertido.


JORGE COLI é historiador da arte.
e-mail: jorgecoli@uol.com.br


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