São Paulo, domingo, 25 de junho de 2006

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Com jovens talentos e produção superior à de países europeus, filmes iranianos deixam de lado alegorias e passam a enfocar questões sociais e culturais

Os netos da revolução

Divulgação
Cenas de "A Maçã", de Samira Makmalbaf, e, abaixo, "Crianças do Paraíso", de Majid Majidi


GEOFFREY MACNAB

Há alguns meses, no auge da disputa entre o novo governo do presidente Ahmadinejad e a ONU sobre o programa nuclear do Irã, havia seis longas-metragens iranianos em exibição na mostra oficial do Festival de Cinema de Berlim.
Além disso, uma considerável delegação iraniana estava presente no Mercado Europeu de Cinema, que acontece paralelamente ao festival, promovendo os filmes do país junto dos distribuidores ocidentais. Ao que parece, existe um certo paradoxo em ação.
Em um momento no qual o presidente do país ataca ferozmente o Ocidente, seu ministro da Cultura estava ocupado tentando vender filmes iranianos aos países que o Irã ostensivamente mais desaprova.
Katayoon Shahabi, da Sheherazad Media International, uma produtora e distribuidora de filmes sediada em Teerã, trabalha há 20 anos na indústria iraniana do cinema.
Depois que o xá Reza Pahlevi foi derrubado, em 1979, diz, a situação era de caos. Todos os filmes produzidos antes da Revolução Islâmica foram proibidos, e a produção nacional de cinema foi completamente paralisada. "Ninguém estava pensando sobre cinema porque a primeira coisa a fazer durante a revolução era queimar e destruir as salas de exibição."

Reconstrução
Passados quatro anos, em 1983, o governo iraniano deu o primeiro passo para a reconstrução da indústria cinematográfica nacional, com o estabelecimento da Fundação Farabi de Cinema. A fundação investiu na produção e em salas de cinema e tentava promover os filmes iranianos em festivais internacionais, com a idéia de criar uma nova geração de diretores no país.
O festival de Locarno se tornou um dos primeiros eventos cinematográficos importantes a exibir títulos iranianos, como "Capitão Khorshid" (1987), de Nasser Taghvai, e "Onde Fica a Casa do Meu Amigo" (1987), de Abbas Kiarostami.
À medida que a década de 80 chegava ao fim, o nível de produção do país crescia, e a cultura cinematográfica do Irã lentamente começava a florescer.
O ministro da Cultura, Seyed Mohammad Khatami, que mais tarde se tornaria o quinto presidente do país, era forte defensor do cinema nacional, e muitos observadores atribuem a ele o crédito pelo estabelecimento das bases para um renascimento da produção cinematográfica.
Organizações como a Sociedade do Cinema Jovem Iraniano (de 1974) ofereciam aos aspirantes à direção uma oportunidade de estudar cinema e produzir curtas próprios.
A sociedade, que tem escritórios na maior parte das grandes cidades iranianas, agora produz entre 300 e 400 curtas ao ano, muitos dos quais filmados em película de 35 milímetros. "O Irã é o país no qual é mais fácil fazer filmes, para os jovens. Se você tem talento e algo a dizer, pode fazê-lo", diz Shahabi.
Ao longo dos últimos dez anos, cerca de 70 a 80 longas-metragens ao ano vêm sendo produzidos, produtividade que se compara favoravelmente à de qualquer país europeu que não a França. Com a proibição de filmes produzidos em Hollywood, a produção local não enfrenta concorrência séria no mercado doméstico.
O maior desafio para a indústria cinematográfica iraniana, possivelmente, é o da falta de salas de exibição, já que muitas foram destruídas após a revolução, e o esforço de reconstrução é lento. "Não temos cinemas em número suficiente", diz Shahabi. "O setor privado não quer investir, e o governo tem outras prioridades; com isso, os cinemas sofrem."
Nos últimos anos, cineastas como Kiarostami e Mohsen Makhmalbaf vêm sendo reverenciados no circuito de festivais internacionais.
Os filmes deles freqüentemente são coproduzidos por -e vendidos a- companhias ocidentais (os filmes mais recentes de Makhmalbaf, por exemplo, são representados pela Wild Bunch, de Paris), mas as distribuidoras do Ocidente, especialmente as britânicas, não demonstram tanto entusiasmo quando se trata de arriscar em um filme de um novo talento iraniano que ainda não tenha adquirido reputação internacional.
O volume de novos talentos que existe no Irã é inacreditável, mas o Ocidente simplesmente não sabe disso.

Pessimistas e infantis
Há quem argumente que os filmes iranianos exibidos em festivais, produções sombrias e em tom de comentário social que tomam por tema a opressão política, não são representativos do cinema nacional. "As pessoas dizem que os festivais escolhem filmes que mostrem um Irã muito obscuro e muito ruim", diz Shahabi, "filmes que falam sempre sobre os nossos problemas".
No final dos anos 90, grande número de filmes nos quais crianças eram os protagonistas foram produzidos, entre os quais "A Maçã", de Samira Makmalbaf, "O Balão Branco", de Jafar Panahi, e "Crianças do Paraíso", de Majid Majidi. "Os cineastas enfrentavam tantos desafios para convencer os políticos de que os iranianos precisavam de cinema que tentavam não atrair a atenção para o conteúdo", segundo Shahabi.
"A maneira mais fácil de fazê-lo era contar histórias para crianças. Agora, a situação se inverteu, mas na época era difícil tratar da questão da mulher ou de problemas sociais..."
Por meio de sua produtora, Shahabi esteve envolvida na rodagem de diversos filmes recentes que tratam diretamente de questões femininas, entre os quais "Nariz Estilo Iraniano" (sobre cirurgia plástica cosmética) e "Do Outro Lado da Burka". Ela sugere que, nos anos em que Khatami foi presidente, entre 1997 e 2005, havia mais liberdade de expressão "não só no cinema mas em termos gerais. Foi uma era positiva e de mente aberta. A cabeça das pessoas mudou".

Perspectivas incertas
Depois de Khatami, as perspectivas dos cineastas iranianos se tornaram mais difíceis de prever. Shahabi reconhece que o momento é de desafio, mas sustenta que "não se pode pedir às pessoas que restituam aquilo que conquistaram".
E, a despeito da retórica antiocidental de Ahmadinejad, ela está confiante em que o cinema iraniano continuará a florescer. "O cinema iraniano é tão poderoso que ninguém pode pará-lo. E isso é bom para o Irã porque se trata da única janela que os países ocidentais têm para a nossa nação."

Este texto foi publicado na "Sight & Sound".
Tradução de Paulo Migliacci.


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