São Paulo, domingo, 25 de julho de 2004

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"BÜCHNER" REÚNE A OBRA COMPLETA DO ESCRITOR ALEMÃO QUE REVOLUCIONOU A LINGUAGEM TEATRAL NO SÉCULO 19, COM PEÇAS COMO "A MORTE DE DANTON" E "WOYZECK", ALÉM DE TRECHOS DE SUA CORRESPONDÊNCIA

DRAMATURGIA DO SILÊNCIO

Sílvia Fernandes
especial para a Folha

A editora Perspectiva lança em setembro a obra completa do dramaturgo alemão Georg Büchner (1813-1837), primorosamente organizada, anotada e traduzida por Jacó Guinsburg e Ingrid Dormien Koudela a partir da edição crítica estabelecida por Werner R. Lehmann. A cuidadosa versão brasileira permite ao leitor comparar a surpreendente criação dramática e literária do jovem escritor, morto de tifo aos 23 anos, a excertos de sua correspondência, que interceptam a obra ficcional em muitas passagens, e também ao manifesto revolucionário "O Mensageiro de Essen" (1834), redigido no período de intensa militância política em Darmstadt. Dirigido a camponeses e artesãos dessa região da Alemanha, desenvolve argumentos em favor da agitação revolucionária, paradoxalmente sustentados por citações bíblicas, provavelmente incluídas pelo pastor Weidig, seu co-autor. Os próprios camponeses delataram a autoria do panfleto, o que valeu a Büchner perseguição política e mandados de prisão, que o obrigaram a se exilar em Estrasburgo. As atribulações parecem ter abalado a atitude positiva do dramaturgo diante da revolução, transformando-a no amargo ceticismo que permeia seu primeiro texto teatral, "A Morte de Danton", escrito entre janeiro e fevereiro de 1835, nas cinco semanas que antecederam a fuga de Darmstadt. Pouco antes, na preparação da obra, o então estudante de medicina mergulhara na leitura de várias histórias da Revolução Francesa, que lhe forneceram dados precisos sobre o período posterior aos massacres de setembro de 1792. Na peça, a lembrança dos assassinatos assombra o protagonista e contribui para definir o acento trágico que Peter Szondi detecta com precisão. De acordo com o ensaísta, o texto é a tragédia do revolucionário. O jacobino Georges Danton perdeu a fé em valores absolutos pelos quais valesse a pena lutar e, pela clareza excessiva de sua consciência, foi arrancado da vida antes mesmo de morrer. Szondi conclui que uma vida que experimenta a si mesma como morta consente em sua ruína, acabando vítima da própria revolução. Por outro lado, o processo trágico que põe o revolucionário na guilhotina da revolução exibe um fatalismo da história comum na obra de Büchner, além de ressaltar o paradoxo da sorte do herói, perseguido por seu inimigo exterior, Robespierre, e pela memória torturante dos crimes que ordenou como membro do Comitê de Salvação Pública. "Que é isso que em nós mente, assassina, rouba?", pergunta Danton numa das cenas da peça, usando as mesmas palavras de uma carta de Büchner.

Materialismo feroz
Para contextualizar a produção do autor de "A Morte de Danton", os organizadores da coletânea reúnem ensaios modelares de Anatol Rosenfeld, Sábato Magaldi, Irene Aron e Alberto Guzik, além de críticas de Mariângela Alves de Lima e Sérgio Sálvia Coelho sobre o espetáculo "Woyzeck", um brasileiro, encenado por Cibele Forjaz em 2003. A montagem é um dos inúmeros exemplos de apropriação contemporânea da obra de Büchner, extremamente próxima de nossa época, talvez por ter lutado contra a sua.
Situado no período de articulação entre o romantismo e o realismo social, Büchner contrapõe ao idealismo de seus antecessores um materialismo feroz, que se aproxima do grotesco especialmente quando investe contra a imagem sublime do herói clássico. É o que faz em "Woyzeck" (1837), ao criar o primeiro protagonista proletário do teatro ocidental.
O texto inacabado foi deixado em forma de quatro manuscritos divididos em cenas breves, não-numeradas, que as edições póstumas trataram de combinar e que este volume reproduz na íntegra. Escrito a partir de um fato real, o assassinato de uma prostituta por seu amante Johann Christian Woyzeck na cidade de Leipzig, em 1921, pertence a um gênero particular de fragmentos que, segundo Brecht, não podem ser considerados incompletos, pois são obras-primas concebidas em forma de esboço, como o "Ur-Fausto" de Goethe e o "Robert Guiscard" de Kleist.
Além de inaugurar a poética do fragmento, um dos procedimentos mais radicais do teatro contemporâneo, "Woyzeck" é um dos melhores exemplos de uma linhagem de heróis negativos, impedidos de linguagem, que constrói uma dramaturgia do silêncio bastante familiar ao espectador de hoje. Como os personagens de Beckett, também o espoliado soldado de Büchner não quer falar -ou não pode falar-, privando o interlocutor de informações exatamente por refletir uma consciência alienada, que mantém consigo a mesma relação cega que a submete aos opressores.
Em um belo ensaio do livro, Anatol Rosenfeld observa que a solidão monológica de "Woyzeck" vem da essência niilista da peça, sintetizada numa espécie de conto de fadas às avessas, em que uma criança órfã vê na lua um pedaço de pau podre e, na terra, uma vasilha entornada. É interessante notar como esse esboço mítico da descrença é corroído por uma ácida crítica social, voltada especialmente contra as figuras do capitão, do doutor e do tambor-mór, responsáveis pela abjeta exploração do protagonista. O abismo social que separa exploradores e oprimidos é aprofundado pelo uso de diversos planos lingüísticos, outra inovação de Büchner, que reproduz nos diálogos a cantilena do saltimbanco, o acento ídiche do judeu comerciante, o alemão oficial dos representantes do poder e o dialeto popular falado por Woyzeck.
Ao mesmo tempo, os traços realistas do texto são sempre ameaçados por uma turbulência expressiva que intensifica os elementos do real a ponto de torná-los irreconhecíveis, projetando visões íntimas que, em certo sentido, antecipam as distorções expressionistas de Wedekind e os processos absurdos de Kafka.
Procedimento semelhante já aparece em "Lenz" (1835), obra que Büchner planejava concluir como ensaio biográfico sobre o autor do "Sturm und Drang" alemão e acabou finalizando como relato ficcional salpicado de transcrições do diário de Oberlin, um pastor que descreveu o estado mental do escritor.
A passagem do registro à ficção é apontada por Guinsburg e Koudela no ótimo ensaio introdutório ao livro. Para os organizadores, em "Lenz" a análise do observador é substituída pelo olhar do narrador que investiga a vida interior do poeta e a percepção do doente, na tentativa de resgatar seu modo de ver o mundo. Postura que se coaduna com as propostas estéticas de Büchner, já evidentes em "A Morte de Danton" e na comédia "Leonce e Lena" (1836) e claramente expostas na fala de Lenz : "Os poetas de quem se diz que retratam a realidade não têm a menor idéia dela, mas ainda são mais suportáveis do que aqueles que pretendem transfigurá-la".
A denúncia do caráter abstrato do idealismo não vem, portanto, associada ao endosso integral da arte realista. O que fica evidente no trabalho de Büchner é a recusa em formar uma visão de mundo anterior à experiência, como nota Heiner Müller, para quem não vemos verdades nos textos do dramaturgo, mas acontecimentos, situações e especialmente homens com um olhar assustado sobre a realidade.
Como a progressão das peças se dá pela sucessão dessas visões de espanto, elas exigem uma teatralidade ágil, de perspectivas múltiplas, muito próxima da contemporânea, em que vários pontos de fuga são capazes de projetar o painel fragmentário onde os personagens se agitam. Talvez isso explique por que "A Morte de Danton" e "Woyzeck" encontrem seu público verdadeiro apenas no século 20, em encenações antológicas, como as de Max Reinhardt e Giorgio Strehler, ou inovadoras, como as de Mathias Langhoff e Sérgio de Carvalho.


Sílvia Fernandes é professora de história do teatro na Escola de Comunicações e Artes da USP e autora de "Memória e Invenção" (Perspectiva).

Büchner - Obra Completa
384 págs., preço não-definido Jacó Guinsburg e Ingrid Dornien Koudela (org. e trad.). Ed. Perspectiva (av. Brigadeiro Luís Antônio, 3.025/3.035, CEP 01401-000, SP, tel. 0/xx/11/3885-8388).



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