São Paulo, domingo, 25 de julho de 2004

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Antologia publicada na França reúne textos centrais para a compreensão do erotismo feminino como forma de prazer e instrumento político no século 18

Libertinagem por temperamento e princípio

Philippe Sollers
especial para o "Le Monde"

Era uma vez um povo, favorecido pela natureza e a história, que descobriu o fugaz prazer de viver e, melhor ainda, de poder dizê-lo. Esse acontecimento improvável é conhecido como o século 18 francês. Foi a primavera, que não demoraria a ser castigada por um longo inverno. Nietzsche compara esse momento ao milagre grego, mas ainda mais miraculoso do que este.
Franceses e sobretudo francesas terão que fazer um esforço se quiserem saber do que eram capazes. Esta extraordinária "Anthologie Érotique - Le 18e. Siècle" [Antologia Erótica - O Século 18], apresentada com minúcias por Maurice Lever, os mergulhará num passado vivo, vertiginoso, vibrante, repleto de romances leves, de memórias inventadas, de pesquisas, documentos, luzes. Aventuras, frases, palavras, personagens, todos saltam à vista. Ninguém terá tempo de se entediar.
De fato, foi um momento incrível, aproximadamente entre 1740 e 1789. A libertinagem corria solta por toda parte. Paris era "a Citera da Europa", ou, mais precisamente, "o bordel do universo". Um longo acúmulo, mais ou menos subterrâneo, deu lugar a esse transbordamento impetuoso e louco. Pela primeira vez no tempo humano, de maneira tão maciça quanto marcante, "a filosofia se reconcilia com o corpo, e o próprio corpo se torna filósofo".
Existe, sim, uma filosofia francesa -não sabemos o suficiente sobre isso- especializada na educação e liberdade das mulheres. E é justamente essa a razão de sua má reputação, do esquecimento e da censura que a atingem -e, também, de seu frescor fascinante.
Como disse uma cortesã da época: "Eu já lhes disse, e não me ouvireis dizendo outra coisa: o prazer, meus filhos, o prazer -não vejo outra coisa no mundo". O frontispício de "Teresa Filósofa" não poderia ser mais claro: "A volúpia e a filosofia fazem a felicidade do homem sensato. Ele abraça a volúpia por prazer, ele ama a filosofia pela razão". O ser humano finalmente ganha sentido: seu corpo possui espírito, seu espírito é um corpo. Para o horror dos devotos de todas as laias, sua vida se transforma em um romance concretizado. Conseqüência: as mulheres surgem, se movem, tomam conta das situações. "A mulher de boas condições tem um amante para fazer bonito, a burguesa, por diversão, e a pobre, por necessidade. A coquete o procura, a hipócrita o deseja, a mulher razoável o escolhe." É a era das "atrevidas". "Uma atrevida, senhorita, é uma moça que não se preocupa com nada, que satisfaz seus prazeres e suas paixões quando a oportunidade para tal aparece, que não se entristece e que não pensa fazer outra coisa senão ter prazer."
Inferno e danação: a velha verdade vacila, o poder é desestabilizado, uma revolução está em curso. Vocês pensam nos grandes autores -Crébillon, Laclos, Sade-, mas existem muitos outros, e de grande talento. Pierre Alexandre Gaillard de La Bataille, por exemplo, com sua "Histoire de Mademoiselle Cronel Dite Fretillon". Trata-se da senhorita Clairon, célebre atriz da Comédie Française. Ela compara as mulheres levianas, como ela, aos acadêmicos: "Nós levamos nossos amantes à falência; eles, seus livreiros. Nós divertimos o público; eles, dizem que o entediam". Outra vedete airosa, dançarina na ópera, foi Madame Guimard, da qual temos o retrato maravilhoso pintado por Fragonard. Mas é toda uma população que se perfila ao longo das páginas, como as damas da corte levadas à libertinagem ("La Grivoise du Temps, ou la Charolaise", 1747), como a extravagante prima de Luís 15, senhorita de Charolais, por algum tempo amante do pai de Sade. Elas são conhecidas como "as santas"; as festas têm lugar no castelo de Petit Madrid, em pleno Bois de Boulogne, onde as noites nunca terminam. A senhorita de Charolais comenta com frieza: "Sempre encontrei 20 pais para cada um de meus filhos". É o catálogo inverso: príncipes, duques, marqueses, condes, barões, suíços, saxões, dragões.
A França "superior" explode, a França "inferior" não descansa: "Em todo lugar, as pessoas são libertinas por temperamento; em Paris, o são por princípio". Manicômios, loucuras, teatros, bordéis: sexo e comércio. As rainhas da parte de baixo se chamam Madame Pâris, dita "Bonne Maman", e senhorita Gourdan, conhecida como "a Pequena Condessa". A "Correspondance de Madame Gourdan" (1783) ou "Les Sérails de Paris" (1802) são os testemunhos mais assombrosos desse frenesi reinante. Sade passou por lá, é claro, e Casanova, também.
Vejamos, por exemplo, as lições ou máximas aplicadas às mulheres da vida, redigidas por uma "mãe-abadessa" do Faubourg Saint-Germain. Artigo 15: "Simples, coquete e prudente ao mesmo tempo, ela saberá que a simplicidade atrai, a coqueteria diverte e a prudência retém. Será essa a base de sua conduta". Artigo 16: "Ela não terá caráter próprio: se aplicará a estudar, com o maior cuidado, o caráter daquele que a sustenta, e saberá revestir-se dele como se fosse seu próprio". Simulacros, ilusões, dissimulações.
É claro que a repressão da prostituição com freqüência é terrível: nesse caso, é o horror do hospital (Salpêtrière, Sainte-Pélagie). O maquinário social é observável a olho nu, ou seja, "esse destino inconcebível que constantemente eleva, rebaixa, mantém e reverte os rumos de ministros e marafonas". Não obstante tudo segue adiante num clima de embriaguez. Os homens são animais lúbricos, movidos por pulsões: os controlamos, eles pagam, os substituímos quando é preciso, o que não impede que amemos um deles de vez em quando (sói acontecer).
Basta ver o que está escrito: "À tarde nós harmonizamos, à noite, agimos, e, no dia seguinte, ele me instala em minha casa". Homenagem ao Palais-Royal (bom dia, Diderot): "Ali podemos tudo ver, tudo ouvir, tudo conhecer; há com o que fazer de um jovem um sábio". Encontros marcados ou não, gostos, manias, obsessão pela gravidez ou a sífilis, luxo inusitado, miséria das prostitutas de rua -é um corte vertical numa multidão que parece ter decidido não ir a lugar nenhum.
A revolução virá em seguida ("ela foi feita por voluptuosas", diria Baudelaire), mas o preço a pagar é muito alto. Vemos aproximar-se a tempestade, com a queda do sexo na política. A França aristocrática está falida, o casal real pagará o preço. Luís 16 passa por impotente, os libelos contra Maria Antonieta se sucedem com uma violência estarrecedora. Tem lugar a grande transformação da sexualidade em espírito de vingança (será uma fatalidade? Talvez).
Os panfletos "patriotas" são obscenos, mas visam a ordem moral. A rainha, sobretudo, é objeto de todas as fantasias negativas. Farejamos a burguesia, furiosa, levando o povo a pedir sangue. Vale ler "Le Bordel Royal" (1790) ou "Les Fureurs Utérines de Marie-Antoinette" (1791). Maus versos, brutalidade pornográfica, encolhimento do vocabulário, calúnias, maledicência, peso estereotipado das situações: o mau gosto explode, o ressentimento e o rancor impregnam tudo, a graça cai no esquecimento. O complô puritano passa pelo rebaixamento dos discursos e dos corpos. Teriam os prazeres sido grandes demais? É preciso assustá-los, falsificá-los, abatê-los. Daquele momento em diante se falará muito em liberdade, mas resta ver se ela virá.


Philippe Sollers é escritor e crítico francês, autor de, entre outros, "Sade contra o Ser Supremo" (ed. Estação Liberdade).
Tradução de Clara Allain.


Anthologie Érotique - Le 18e. Siècle
1.200 págs., 30 euros Maurice Lever (org.). Ed. Robert Laffont (França).

Onde encomendar
Livros em francês podem ser encomendados, em São Paulo, na Fnac (tel. 0/xx/11/ 4501-3000) e, no Rio de Janeiro, na livraria Leonardo da Vinci (tel. 0/xx/21/2533-2237).



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