São Paulo, Domingo, 25 de Julho de 1999
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ITALIANOS
A obra-prima de Dante ganha nova tradução para o português
O desafio da "Comédia"

MAURÍCIO SANTANA DIAS
da Redação

Toda nova edição da "Divina Comédia", de Dante Alighieri (1265-1321), é um acontecimento louvável. Também é certo que toda nova tradução integral do poema de Dante é, em certa medida, uma tarefa de antemão votada ao fracasso. Isso porque é impossível sustentar, sem deixar esmorecer, a excelência e a intensidade desse poema de cem cantos. Só um outro Dante para conseguir isso -talvez nem ele, já que estaria tolhido pela necessidade de conformar-se à letra de um outro poeta.
Recentemente a Editora 34 publicou uma nova versão da "Comédia" (o adjetivo "divina" foi acrescentado posteriormente, por leitores maravilhados, ao título escolhido por Dante), com tradução e notas de Italo Eugênio Mauro. A edição, bem-cuidada, tem muitos méritos: além de ser bilíngue, com o texto original impresso em caracteres legíveis, ao lado de cada verso em português, o poema de Dante vem encadernado em três volumes, os quais são arrematados por um belo estojo. Erros tipográficos, pouquíssimos. Um deles, o mais grave, foi a supressão da palavra "outro" no quinto canto, verso 108, do "Purgatório".
Talvez o leitor acostumado às edições ilustradas da "Comédia" sinta falta das poderosas imagens que artistas como Gustave Doré criaram para retratar os três reinos visitados por Dante: Inferno, Purgatório e Paraíso. Mas a ausência de ilustrações não chega a comprometer o resultado da edição. O que deve ser discutido, e o que é de fato discutível, é o valor de sua tradução.
Muitos poetas e escritores brasileiros já se aventuraram na tradução de alguns trechos da "Comédia", como Machado de Assis (canto 25 do "Inferno"), Dante Milano (cantos 5, 25 e 33 do "Inferno") e, mais recentemente, Augusto e Haroldo de Campos. Mas até hoje bem poucos se deram ao trabalho de traduzi-la integralmente em versos. Uma coisa é verter fragmentos esparsos da "Comédia"; outra muito diversa é enfrentar o poema como um todo.
Para essa tarefa monumental é necessário, além de um perfeito conhecimento de ambas as línguas, uma certa dose de loucura, no melhor dos sentidos: loucura dos que se apaixonam por um determinado objeto e o perseguem, obsessivamente, até o fim.
O trabalho de Mauro, levado a cabo após 12 anos de dedicação exclusiva, revela um rigor e uma meticulosidade que impressionam. Mas, como criação poética, o resultado é bastante irregular, embora em alguns momentos o tradutor tenha superado todas as tentativas anteriores de traduzir o poema de Dante para a língua portuguesa.
Um dos principais problemas da tradução é justamente, por paradoxal que possa parecer, o seu excessivo apego à literalidade, em nome da qual o tradutor muitas vezes sacrificou toda a graça e musicalidade do poema. Vários críticos de Dante, entre eles Borges e T. S. Eliot, já notaram que um dos "milagres" da "Comédia" se deve à sua extrema variação rítmica e linearidade sintática -o que alguns chamaram no Brasil de "diretidade". Dante modula seus versos conforme a matéria que trata, quase sempre optando pela sintaxe direta. Raramente incorre em grandes inversões. O tradutor, para manter o sentido literal sem sacrificar a estrutura métrica do poema (todo em "terza rima", forma fixa em que o primeiro e o terceiro versos de um terceto rimam entre si, enquanto o segundo rima com o primeiro da estrofe seguinte), frequentemente adotou soluções pouco felizes, mormente ali onde não podia falhar, isto é, em passagens que são pedras de toque para qualquer tradução da "Comédia", como o início dos cantos 1 e 3 do "Inferno".
A famosa abertura do poema, por exemplo, foi traduzida por "A meio caminhar de nossa vida/ fui me encontrar em uma selva escura:/ estava a reta minha via perdida"; e o não menos célebre "Per me si va ne la città dolente,/ per me si va ne l'eterno dolore,/ per me si va tra la perduta gente" ("Inferno", 3, 1-3) virou "Vai-se por mim à cidade dolente,/ vai-se por mim à sempiterna dor/ vai-se por mim entre a perdida gente". O sentido literal, o metro e a rima foram preservados, mas a força do original se perdeu na distância. O ritmo da versão portuguesa é francamente claudicante.
É provável que alguns desses contorcionismos tenham decorrido de uma espécie de "angústia da influência", a necessidade que tem todo poeta, segundo o crítico Harold Bloom, de distinguir-se e desviar-se de seus precursores. E o principal precursor de Mauro é sem dúvida Cristiano Martins, cuja tradução da "Comédia" talvez ainda seja, na média, a melhor que se tem em português.
Outro fato digno de nota é a pudicícia do tradutor, que, tão fiel à literalidade, evita cuidadosamente a tradução direta de certas expressões dantescas, preferindo recorrer a eufemismos. Por exemplo, a palavra "merda" (assim mesmo, em italiano) nunca é traduzida por "merda" (em português), mas por "fezes" ("Inferno", 28, verso 27) ou "borra humana" ("Inferno", 18, 116).
Mas a tradução de Mauro também tem excelentes momentos, principalmente nos trechos em que o sentido literal do poema é plasmado pela música dos versos de Dante. Exemplos disso podem ser lidos nessas três estrofes do canto 29 do "Inferno" (versos 67-75), quando Dante e Virgílio entram na décima vala do oitavo círculo, onde são punidos os falsários:
"Quem sobre o ventre, e quem sobre o costado/ um de outro jazia ou, de cansaço,/ mal se arrastava no hórrido valado.
Sem conversar seguíamos, passo a passo,/ vendo e ouvindo as enfermas almas postas,/ incapazes de erguer o corpo lasso.
Duas vi sentadas, costas contra costas,/ como assadeiras postas pra esquentar,/ cobertas, da cabeça aos pés, de crostas".
Finalmente cabe ressaltar o engenho e, por vezes, a ousadia da metrificação. Como quando Mauro corta ao meio o advérbio "futuramente", deslocando sua terminação para o verso seguinte: "Os Ravagni estavam, donde iria/ provir o conde Guido e os que futura-/ mente grão Bellincione nomearia" ("Paraíso", 16, 97-99); ou quando, utilizando um recurso consagrado pelo poeta português Camilo Pessanha em fins do século 19, separa o pronome enclítico do verbo a que se subordina: "E: "De tudo cuidou Maria, por onde/ boa resultasse a boda, até esquecer-/ se de sua boca, que ora a vós responde" ("Purgatório", 22, 142-144).
De modo geral, pode-se dizer que a tradução de Mauro cresce à medida que o poema avança do "Inferno" ao "Paraíso", como se o tradutor tivesse assimilado e descoberto, durante o percurso, a melhor forma portuguesa para a obra italiana.



A OBRA
A Divina Comédia - Dante Alighieri. Trad. Italo Eugênio Mauro. 3 vols. Editora 34 (r. Hungria, 592, CEP 01455-000, SP, tel. 0/xx/ 11/816-6777). R$ 49,00.




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