|
Próximo Texto | Índice
MEIO SEM AMBIENTE
Recém-aposentada da Universidade de Chicago, Manuela Carneiro da Cunha ataca o desenvolvimento "antiquado" do país, que deixa em segundo plano a qualidade de vida, e diz que Nobel da Paz a Obama foi "desabafo anti-Bush"
As ciências humanas têm se fechado demais em si mesmas
Em Chicago, em setores bem diferentes entre si, há decepção com Obama
|
Letícia Moreira - 20.out.09/Folha Imagem
|
|
A antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, 66,
em sua casa em São Paulo
CAIO LIUDVIK
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
Um dos nomes mais
importantes da antropologia brasileira, Manuela Carneiro da Cunha
(1943) é uma autora de leitura
indispensável para quem quiser entender a fundo a questão
indígena no Brasil.
Professora aposentada da
Universidade de Chicago desde
julho passado, ela comenta,
nesta entrevista exclusiva concedida à Folha, temas como a
política indigenista do governo
Lula e da Igreja Católica pós-Bento 16.
Ela fala também do significado da outorga do Nobel da Paz
para o presidente Barack Obama e também comenta sobre a
internacionalização da Amazônia -"esse risco existe".
Carneiro da Cunha também
explica seu mais novo livro,
"Cultura com Aspas" (Cosac
Naify, 440 págs., R$ 69), conjunto de ensaios que oferecem
panorama abrangente de sua
produção intelectual ao longo
das últimas duas décadas.
A obra deixa muito evidente
a fina sintonia, na trajetória da
antropóloga, entre pesquisa
acadêmica e aguerrida militância política em favor dos direitos das populações nativas do
Brasil.
Isso inclui não só as clássicas
questões da terra e das condições materiais de subsistência,
mas também o respeito aos direitos de propriedade intelectual das tribos.
São exemplos disso remédios
desenvolvidos ao longo de séculos de imersão no ecossistema amazônico e que são cobiçados pela multinacionais farmacêuticas.
Para Carneiro da Cunha, o
Brasil pode estar dando início a
um modelo de desenvolvimento "antiquado e predatório",
que coloca em segundo plano o
homem e o ambiente.
FOLHA - Como é que a pesquisa
acadêmica e a militância política se
articulam em seu percurso?
MANUELA CARNEIRO DA CUNHA - Só
me meti em militância política
tarde, e em questões que até o
advento da popularidade de
Gramsci, eram consideradas
periféricas -índios, por exemplo. Mas a experiência política
foi extremamente importante
para meu amadurecimento.
Várias de minhas pesquisas,
como sobre direito indigenista
e sobre história indígena, foram diretamente suscitadas
pela importância política dos
temas.
Mas não há nem nunca houve uma relação simples entre
percurso intelectual e militância política, e reflito até sobre
isso no último ensaio do livro.
Pesquisar, afinal, significa
não saber as respostas de antemão e implica em seguir a própria curiosidade por caminhos
que não estão de antemão traçados. A militância dificilmente pode se dar esse luxo.
Guardadas as devidas proporções, lembro-me sempre de
Jean-Pierre Vernant [1914-2007], líder da Resistência durante a Segunda Guerra Mundial e militante comunista, que
decidiu ser helenista -ainda
bem- para tratar de coisas em
que o Partido [Comunista] não
pudesse meter o bedelho.
Mas isso não resolveu completamente o problema: o simples fato de analisar a categoria
do trabalho na Grécia antiga
atraiu-lhe a ira e o patrulhamento do PC francês.
FOLHA - A sra. vê risco de internacionalização da Amazônia?
CARNEIRO DA CUNHA - Acho que
esse risco existe -e existiu sobretudo no período áureo da
borracha- e que até talvez já
tenha deixado de ser risco para
ser um fato consumado.
Já se fez o levantamento dos
interesses, investimentos e terras de companhias estrangeiras
na Amazônia? Já se pensou no
que pode acontecer se esses interesses se virem ameaçados ou
contrariados?
Até agora, parece-me que se
olhou na direção errada. Usa-se
o risco à soberania nacional como um espantalho para fins de
outra natureza -por exemplo
para contestar o direito dos índios às suas terras.
FOLHA - Como a senhora avalia o
tratamento pelo governo Lula à
questão dos direitos indígenas?
CARNEIRO DA CUNHA - Por um lado, há que louvar sua coragem
política, decidindo, por exemplo, homologar a terra indígena
Raposa/Serra do Sol, contra a
bancada roraimense e outros
interesses -e defendendo sua
posição diante do STF.
O ministro Tarso Genro
[Justiça] tem também sido
muito ativo na declaração de
terras indígenas, embora o que
importe do ponto de vista prático é a finalização do processo
de homologação.
Isso posto, o PAC, a opção
por uma política de desenvolvimento à moda tradicional, isto
é, pelo modelo exportador de
commodities e de expansão da
infraestrutura energética e rodoviária para servi-lo, deixa as
questões ambientais e indígenas forçosamente em segundo
plano. Em caso de conflito, elas
perdem.
Outro setor preocupante é o
do atendimento à saúde indígena, que se deteriorou muito
desde o primeiro mandato do
Lula. Houve mudanças que parecem ter elevado os custos e
baixado a qualidade.
FOLHA - Mas a ministra Dilma
Roussef argumenta que, por mais
importante que seja, a questão ambiental não pode trazer entraves para o desenvolvimento econômico. O
que a senhora pensa disso?
CARNEIRO DA CUNHA - Depende
do que se entende por desenvolvimento, se é o aumento global do PIB ou melhor qualidade
de vida para a população e para
as gerações futuras.
Hoje, os países da Europa
ocidental só falam em desenvolvimento sustentável e Índice de Desenvolvimento Humano. Hoje, existe mercado de
crédito de carbono, além de outros mecanismos para valorizar
a floresta.
Por que o Brasil tem de seguir tardiamente um modelo
de desenvolvimento antiquado
e predatório? Por que, para fornecer commodities, temos de
acabar com outros recursos importantes para nosso futuro?
FOLHA - Uma candidatura presidencial como a de Marina Silva terá
chance se colocar como tema mais
importante a questão ambiental?
CARNEIRO DA CUNHA - A candidatura de Marina Silva é um fato
político novo e teve de saída a
virtude de colocar a questão
ambiental na pauta do debate
dos candidatos à Presidência.
Mas, de forma realista, se a
mídia confinar sua candidatura
como sendo apenas ambiental,
provavelmente reduzirá suas
chances eleitorais.
FOLHA - Com a reversão ideológica
conservadora que se nota na Igreja
Católica dos últimos anos, em especial após a ascensão de Bento 16, é
possível notar mudanças na atuação eclesiástica no campo dos direitos indígenas?
CARNEIRO DA CUNHA - É verdade
que o Conselho Indigenista
Missionário (Cimi), parece estar mais moderado. Mas também acho que a alta hierarquia
é uma coisa, o clero secular local é outra, as ordens religiosas
outras ainda. A Igreja Católica
que eu consigo perceber hoje é
uma organização complexa e
não totalmente centralizada,
apesar dos esforços.
Acho que a chamada "opção
pelos pobres" penetrou fundo
em certas áreas da igreja brasileira, e a questão indígena é
pensada como parte dela.
Não tenho acompanhado a
evolução da igreja de muito
perto, mas um sinal muito positivo se deu recentemente na
diocese do Rio Negro (AM), onde o novo bispo apresenta perfil progressista.
FOLHA - A sra. vive em Chicago, terra do presidente Obama. Como avalia (e como avalia a percepção dos
americanos sobre) este primeiro ano
de seu governo? O que pensa sobre
ele ter ganho o Nobel da Paz?
CARNEIRO DA CUNHA - Aposentei-me em julho da Universidade
de Chicago e, embora continue
participando de algumas atividades lá, mudei-me de volta para São Paulo.
Das últimas vezes que estive
em Chicago, ficou claro que há,
em vários setores muito diferentes entre si, decepção com o
governo Obama.
Mas Obama, dada a grande
esperança que foi depositada
nele e as condições políticas
dos EUA, não podia deixar de
decepcionar os setores mais
progressistas.
Tentar aprovar no Congresso
uma reforma do sistema de
saúde e fazer face à situação cada vez pior no Afeganistão e no
Paquistão -só para citar apenas dois dos seus maiores problemas- exigem mais do que
jogo de cintura e deixam em segundo plano outras promessas
de quando era candidato.
Acho, como tantos outros,
que o Nobel da Paz outorgado a
Obama teve vários motivos e
significados.
Entendo-o como um mandato e um encorajamento para
que cumpra o que o mundo espera dele: que se chegue a uma
paz entre israelenses e palestinos com a criação de um Estado
palestino; que haja uma diplomacia eficaz para resolver as
tensões dos EUA com o Irã e a
Coreia do Norte; que se encontre uma saída para a guerra no
Afeganistão; que se progrida no
desarmamento nuclear mundial; que se feche de uma vez
Guantánamo...
Suas recentes manifestações
a favor do desarmamento nuclear e as aberturas de diálogos
diplomáticos são pouca coisa, é
certo, diante de tão grande expectativa.
O Nobel da Paz, que surpreendeu a todos, inclusive ao
outorgado, é portanto ao mesmo tempo um desabafo anti-Bush e um voto de confiança e
empurrão para que Obama entregue o que dele se espera.
FOLHA - Por que seu livro se chama
"Cultura com Aspas"?
CARNEIRO DA CUNHA - Este livro é
um conjunto de artigos. Os
mais antigos já haviam sido
reunidos em livro publicado
nos anos 1980 pela editora Brasiliense e hoje esgotado, intitulado "Antropologia do Brasil",
que a ed. Cosac Naify achou que
se deviam republicar.
A esses se acrescentaram vários outros artigos escritos nos
últimos vinte e poucos anos.
É, portanto, uma coletânea
organizada por temas. O último
artigo, muito mais longo que os
outros e de formato sui generis,
é que dá o título ao livro.
O formato, sem notas de rodapé e referências detalhadas,
provém de uma encomenda para uma coleção de panfletos organizada pelo antropólogo
Marshall Sahlins.
Embora deva sair nos EUA e
na França ainda neste ano, por
várias circunstâncias, acabou
saindo primeiro no Brasil e é,
portanto, inédito.
Nesse capítulo, faço um balanço ao mesmo tempo antropológico e político de um processo que venho acompanhando há muito tempo, relativo às
ciências tradicionais e seu tratamento pelos organismos sobretudo internacionais.
De certa forma, nesse panfleto tento refletir antropologicamente sobre militância política. A questão dos direitos intelectuais associados aos conhecimentos tradicionais ilumina
particularmente bem uma discussão que eu já vinha tratando
de outras formas.
Isto é, qual a diferença entre
cultura na sua acepção antropológica e da "cultura" como
autodescrição de grupos sociais
que a invocam.
As aspas apontam para o fato
que "cultura" é reflexiva, refere-se a si mesma.
Na medida em que retoma e
prolonga muitos dos temas dos
artigos anteriores, achei que
cabia a esse último ensaio dar o
título ao livro.
FOLHA - O seu primeiro artigo publicado, que também abre o novo livro, foi "Lógica do Mito e da Ação - O Movimento Messiânico Canela de 1963", publicado na revista "L'Homme", fundada por Lévi-Strauss. Que importância ele teve em seu desenvolvimento profissional?
CARNEIRO DA CUNHA - Escrevi esse artigo em Campinas, logo
após entrar na Universidade
Estadual de Campinas (SP). A
ideia central era de que o mito
podia, em certas circunstâncias, informar a ação humana.
Os índios canelas do Maranhão haviam aderido em 1963 a
um movimento messiânico que
lhes prometia a supremacia sobre aqueles que os oprimiam.
Mostrei em detalhe que esse
movimento era a inversão estrutural de seu mito de origem
do homem branco.
Repare: não se tratava de dizer com simplismo que o mito
era uma forma que moldava a
história -forma no sentido de
uma forma de cozinha ou de escultura-, e sim de que uma
transformação estrutural desse
mito era o roteiro para um movimento social.
Para usar uma metáfora culinária um pouco capenga, mas à
qual não resisto, é como se o
movimento messiânico fosse
uma "tarte" Tatin assada na
forma de uma "tarte" de frutas.
Portanto, a análise estrutural
poderia fornecer uma chave de
compreensão para certos fenômenos históricos.
E, além disso, estava ali uma
prova de que, como Lévi-Strauss sustentava, uma estrutura mítica é um conjunto de
transformações. Lévi-Strauss
gostou e fez publicar o artigo
em primeira posição no número da revista.
Quanto à importância para o
que seguiu, é difícil avaliar. De
certo modo, esse artigo me fez
abordar estruturalmente material histórico, coisa que continuei fazendo.
FOLHA - A sra. se refere a sua formação em matemática como um
dos motivos para ter se sentido
atraída pelo estruturalismo de Lévi-Strauss. Nessa afinidade de Lévi-Strauss com a matemática de ponta
do século 20, não teríamos um dos
motivos para a proverbial fama de
"difícil" e "hermética" da obra do
antropólogo francês?
CARNEIRO DA CUNHA - Diga-se logo de saída que o uso que Lévi-Strauss explicitamente faz da
matemática é metafórico.
Mas havia uma afinidade
muito real entre a forma de
pensar estruturalista e a matemática que na época predominava na França, a do grupo que
se autointitulou Bourbaki.
Mauro Almeida publicou, na
década de 1990, um artigo detalhado sobre a inspiração matemática e cibernética de Lévi-Strauss.
Inspiração não quer dizer
adoção ao pé da letra: Lévi-Strauss, que sempre foi um ávido leitor de revistas de divulgação científica, soube moldar as
ideias da época à sua própria
forma de pensar.
Isso posto, a matemática é
um tigre de papel, e as ciências
humanas têm se fechado demasiadamente em si mesmas. Está
fazendo falta entender o espírito que predomina em outras
ciências, dialogar com elas.
FOLHA - Como a sra. avalia o cenário atual e as perspectivas que se
abrem para a antropologia?
CARNEIRO DA CUNHA - Não há,
nem nunca houve, uma só antropologia. As grandes correntes continuam, em larga medida, nacionais: inglesa, francesa,
americana... E dentro e fora
desses limites linguísticos e
territoriais, muitas seitas e dissidências.
A antropologia que se faz no
Brasil tem tido reconhecimento internacional crescente,
apesar de, como dizia o grande
Antônio Vieira, a língua portuguesa ser o túmulo do espírito.
Além disso, a antropologia
tem se declarado em crise já há
bastante tempo, por um período aliás bastante fecundo.
Creio que a crise permanente é,
portanto, condição constitutiva da fecundidade da disciplina.
Finalmente, creio que os antropólogos têm o dever de descrever e documentar aquilo
que facilmente passa despercebido. Sou cada vez mais a favor
de uma boa etnografia. Teorias
passam, a etnografia fica.
FOLHA - A sra. brinca que é percebida como portuguesa entre os brasileiros, e como brasileira entre os portugueses. Essa experiência existencial entre "dois mundos", ainda que
de mesma língua, é uma das motivações para o interesse pela antropologia, enquanto reflexão sobre a
alteridade?
CARNEIRO DA CUNHA - Já me sugeriram isso, mas é difícil saber.
Na verdade, pertenço a bem
mais do que esses dois mundos:
de família judia húngara, batizada e criada católica, estou, como bem disse minha amiga
Guita Debert [antropóloga], na
pior das situações tanto para
católicos quanto para judeus.
FOLHA - Com a conquista da sede
da Copa do Mundo de 2014 e da
Olimpíada de 2016, pode-se dizer
que o Brasil está se tornando um
"mito" no mapa geopolítico mundial? E esse possível prestígio "mítico" recairia em particular sobre a figura do presidente Lula, tanto lá fora como no Brasil?
CARNEIRO DA CUNHA - Talvez, por
que não?
Próximo Texto: Antropóloga foi elogiada por Lévi-Strauss Índice
|