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Ponto de Fuga
Sexo, luto e martírio
Em "Anticristo", de Lars von Trier, a violência tremenda eleva imediatamente a qualidade do filme; as cenas foram feitas com um evidente fascínio
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JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA
Muita coisa em "Anticristo", de Lars von
Trier, é difícil de engolir. As afetações estilísticas
neodogma, com a lente que tarda em conseguir o foco, com a
aparente negligência da montagem. O tom de poesia rasa,
com tomadas em câmeras lentas, lentíssimas; o preto e branco estudado; o hit de música
clássica.
A simbologia voa baixo: um
refúgio no meio da floresta se
chama Éden; glandes de carvalho caem em quantidade sobre
o telhado; uma corça arrasta
seu feto mal expulso.
Na hora da transa em comunhão com a natureza, saem
braços que se retorcem em
meio às raízes da árvore imensa; é a foto do cartaz [do filme].
Solução que lembra certas
montagens kitsch de óperas.
Sam Raimi concebeu um estupro na, e pela, floresta, em "Evil
Dead" (A Morte do Demônio
ou Uma Noite Alucinante,
1981). Cena espantosa de invenção e realização: lembrar
dela é acusar ainda mais as afetações de "Anticristo".
Nos dois filmes (e mesmo
nos três, incorporando "Evil
Dead 2", que se concentra não
no isolamento de um grupo,
mas de um casal), existem
grandes pontos em comum.
Há, porém, uma grande diferença: Raimi fez cinema com
vontade devorante, deixando
que terrores, angústias, aflorassem, trazendo consigo suas
complexas profundidades. Elas
emergem por si mesmas, sem
intenções ocultas.
Lars von Trier faz um terror
cabeça e nele expõe, insistente,
seus propósitos existenciais e
metafísicos.
Gritos e sussurros
Durante longo período, "Anticristo" centra-se na ligação e
nos conflitos de um casal. Eles
perderam um filho, ainda bebê.
Como num [Ingmar] Bergman
que, ao invés de sugerir, ensinasse em tom professoral.
A pretensão e o autoritarismo do marido psicólogo são sublinhados. Diante do desespero
da mulher, contraria e despreza
as receitas do psiquiatra; passa
a analisar a própria mulher, o
que é contra todas as regras.
Para ilustrar o racionalismo
masculino, suas terapias são
patéticas: "Respire fundo; conte; 1, 2, 3, 4, 5". Mais ainda, querendo que a mulher se esqueça
do luto, ao invés de levá-la para
Ibiza ou Nova York, enterra-se
com ela numa casa sinistra, em
meio a floresta ameaçadora.
Quando o desastre começa,
dá vontade de dizer: "Bem feito".
O sacrifício
A violência tremenda, que
causou um cheiro de enxofre e
de escândalo na crítica e no público, eleva imediatamente a
qualidade do filme.
As cenas foram feitas com
um evidente fascínio e fazem
emergir um paroxismo cinematográfico para além dos símbolos e das intenções.
Espectros
"Anticristo" é um filme que
parece sinceramente obsessivo, apesar de seu desequilíbrio.
Vários críticos condenaram, ou
assinalaram, a misoginia de
Von Trier.
No entanto a situação exposta não o confirma: a mulher se
retirara numa casa isolada para
escrever uma tese sobre assassinatos de mulheres na história. O tema é feminista. Ela não
a conclui, e as anotações mostram que sua letra desanda.
Cercada por ilustrações terríveis e sugestivas, passa a encarnar a maligna, a perversa, a
criminosa, que os homens, os
antigos torturadores, viam nela. Não é uma revanche, é a encarnação de uma imagem projetada. "Anticristo" está menos
entre Nietzsche e Marylin
Manson do que entre Lilith e
Madre Joana dos Anjos.
Uma de suas falas, "mulher
chorando é mulher armando",
poderia ser a de algum inquisidor para sublinhar a falsidade
má e astuta. O diretor, no entanto, insiste na ária de Handel,
"Lascia ch'io Pianga", deixe que
eu chore, tão cheia de verdadeira dor feminina.
jorgecoli@uol.com.br
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