São Paulo, domingo, 25 de outubro de 2009

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+(L)ivros

O palco do mundo

"Máquina para os Deuses" vai em busca das origens da cenografia e defende que tudo é espetáculo em uma "sociedade da performance"


Após 25 anos perambulando pelas coxias de teatros pelo mundo, já não luto mais contra a força da história da cenografia


DANIELA THOMAS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Na correria, não pus o livro na mochila.
Me dei conta só dentro do avião: voo diurno, a promessa de felicidade do livro novíssimo na mão frustrada. O voo alongou-se dramaticamente. Nenhum alento nas turbulências infernais sobre o Equador.
No fim, o que se seguiu nessa semana [a primeira do mês de setembro], vagando pelas ilhas da laguna de Veneza, entre os filmes do festival de cinema [em que foi exibido "Insolação", de Felipe Hirsch e Daniela Thomas] e as exposições da Biennale, prenunciou a matéria do delicioso livro de Cyro del Nero, "Máquina para os Deuses", que li de uma sentada só, na volta da viagem.

Voracidade ímpar
Em Veneza, quanta cenografia, meu Deus! Para todo lado, por toda parte: nos "palazzi", praças, igrejas; "trompe-l'oeils" em imensos outdoors cobrindo os prédios em reforma da piazza San Marco; no monumental portal do "palazzo" do festival de cinema, emoldurando o tapete vermelho; nas dezenas de instalações que a cada nova mostra internacional de arte se impõem sobre todas as outras manifestações plásticas numa voracidade ímpar.
Tanta cenografia e nenhum cenógrafo. Cyro del Nero cita [o ator e diretor francês] Louis Jouvet: "A cenografia é a serva mais nobre do teatro, por sua humilde submissão aos poetas."
Os poetas hoje são outros, mas é fascinante observar a atual onipresença da cenografia e o relativo anonimato dos cenógrafos -aqueles, da antiquíssima linhagem que remonta aos festivais dionisíacos da Ática [região da Grécia], que evoca com tanta graça.

Um ser das sombras
Ele arrisca uma teoria sobre o novo status da cenografia: "Numa sociedade da performance", tudo é espetáculo.
"Quase todo e qualquer espaço é palco".
Mas o cenógrafo permanece um ser das coxias, das sombras: o "dramaturgo do espaço", segundo ele, cuja especialidade (feita da síntese de inúmeras especialidades) é cada vez mais exigida, por um lado, e cada vez mais usurpada, por outro.
É impossível não circular pelos pavilhões da Bienal de Veneza sem se fixar no silêncio de instalações tão evocativas do teatro: espetáculos mudos. A cena que evoca a si mesma. A cenografia que é espetáculo em si.
Na mais gráfica e fascinante dessas instalações, a do coreógrafo [e dançarino norte-americano radicado na Alemanha] William Forsythe, dezenas de argolas pendem do teto, em fitas reforçadas.
Os visitantes, ao escalá-las e balançarem-se livremente, se transformam em bailarinos do espetáculo que existe unicamente pelo cenário.
O fato do autor dessa instalação, numa mostra de artes plásticas, ser um coreógrafo, já diz muito sobre o fenômeno de hibridização das artes que vem ocorrendo desde a virada do século 19 para o 20 e que me parece irreversível.

Cenógrafo das origens
Em Cyro del Nero, num movimento inverso, temos o cenógrafo. Puro sangue. Dizer "das antigas" pode soar pejorativo, mas no seu caso é literal: cenógrafo das antiquíssimas. Íntegro e integrado com as origens do seu "métier".
Para ele, o cenógrafo é aquele que domina "uma série de habilidades" para "servir ao clima dramático e ao conflito contidos na obra". Ele não é a obra, ele não realiza a obra, ele é parte integrante da obra. Não haverá muitos mais como ele, daqui para diante.
Nas suas anotações, percebe-se outra particularidade: para ele, criar e conhecer são ações simbióticas. Não é um conhecer de gabinete -ou não somente de gabinete.
Ele precisou movimentar-se fisicamente até o lugar exato onde nasce o teatro ocidental, o teatro de Dionísio, na encosta do Partenon, em Atenas, para entender. Conhecer, para ele, é tocar, inspirar. É se expor à luz.
Ele é um crente no poder evocativo do espaço físico e precisou virar ator na paisagem primeva.
A parte mais pungente de seu livro é justamente a descrição dessa viagem iniciática à Grécia dos primórdios do teatro. Ele cita [o escritor britânico] Lawrence Durrell: "A descoberta de si mesmo é um acontecimento sutil trazido pela luz da Grécia."
Tive um desejo imenso de segui-lo, peripatética, pelos trajetos que descreve tão vividamente. Imaginei-o com o caderno na mão e o lápis, anotando cada palavra, para fixá-la na memória, e desenhando cada ruína pelo caminho.

Outra viagem
Meu impulso foi pegar um caderno e imitá-lo. Fui transportada pela leitura à essa mesma viagem -que, de certa forma, sempre neguei, tendo chegado à cenografia por caminhos tão tortuosamente diversos dos dele, rejeitando a história, as origens, identificando-as edipianamente com a prisão da normatização, com o que deve ser superado.
Após 25 anos perambulando pelas coxias de uma centena de teatros pelo mundo, já não luto mais contra a força da história da cenografia: ela está em cada urdimento, piso de peroba, vara contrapesada, bambolina, rotunda e bastidor.
O que Cyro del Nero faz em suas anotações é traçar o percurso de cada elemento do repertório do cenógrafo, desde sua mais remota ou inusitada origem.
Mas ele o faz como se os descobrisse, os desvelasse, no decorrer de longa viagem.

DANIELA THOMAS é cenógrafa e cineasta.

MÁQUINA PARA OS DEUSES

Autor: Cyro del Nero
Editora: Ed. Senac SP/ Ed. Sesc SP (tel. 0/ xx/11/2607-8000)
Quanto: R$ 60 (384 págs.)


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