São Paulo, domingo, 25 de outubro de 2009

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Gemidos e sussuros

Jane Birkin fala da vida turbulenta com Serge Gainsbourg, do corpo perfeito de Brigitte Bardot e da gravação da lendária "Je T'Aime... Moi Non Plus'


Cada centímetro do corpo de Bardot era perfeito; ela não tinha nenhum defeito


CELIA WALDEN
Sua autobiografia, caso viesse a ser escrita, divertiria, esclareceria, iluminaria e excitaria, mas Jane Birkin prometeu que não escreverá suas memórias.
Em lugar disso, aos 62 anos, a atriz, modelo e cantora conhecida como "o lado B de Serge Gainsbourg", como ela mesma se definiu um dia, estreou na direção alguns meses atrás, com "Boxes", um provocante filme de tom autobiográfico.
Mais ocupada do que nunca, ela está no meio de turnê europeia, prepara um comício em apoio a Aung San Suu Kyi [birmanesa ganhadora do Prêmio Nobel da Paz em 1991, mantida em prisão domiciliar pelo governo de Mianmar] como parte da Burma Campaign que lançou dez anos atrás, e estrela "36 Vues du Pic Saint-Loup" [36 Vistas do Pico Saint-Loup], novo filme de Jacques Rivette, diretor da nouvelle vague.
Birkin, ainda assim, encontrou tempo para uma noite de reminiscências.

 

PERGUNTA - Seu primeiro casamento aconteceu aos 18 anos (com John Barry, compositor das trilhas dos filmes de James Bond), e você teve uma filha, Kate, um ano depois. Mas não demorou a se mudar para Paris. Você via a França como o lugar em que construiria o seu futuro?
JANE BIRKIN
- Não. Viajei para lá apenas para fazer um filme, "Slogan" [1969]. Mas no estúdio daquele filme conheci um homem bastante interessante: Serge Gainsbourg.

PERGUNTA - Qual foi a sua primeira impressão sobre ele?
BIRKIN
- Eu o achei arrogante e rude. Sabia que tinha a reputação de ser maluco, malvado e perigoso, mas isso era algo de que eu gostava.

PERGUNTA - Você consegue identificar o momento em que se apaixonou por ele?
BIRKIN
- Certa noite, ele tinha organizado um jantar no Chez Régine [uma famosa casa noturna parisiense], e eu o arrastei para a pista de dança. Ele pisava nos meus pés o tempo todo, e eu achei maravilhoso, adoro homens que não sabem dançar -e não demorei a descobrir que aquilo que eu via como arrogância era, na verdade, uma extrema timidez.

PERGUNTA - Aquela noite, pelo que vejo, não terminou por ali.
BIRKIN
- Do Régine, fomos a um clube chamado Rasputin, uma casa russa na qual Serge me dedicou canções e distribuía notas de cem francos como gorjeta aos violinistas. "Eles são prostitutos como eu", me disse.
Depois, fomos ao Madame Arthur, uma casa na qual os cavalheiros todos se vestiam como damas, e depois à Place Pigalle, onde Serge serviu champanhe às prostitutas. De repente, estávamos de volta ao hotel Hilton, e o recepcionista perguntou: "O quarto de sempre, monsieur Gainsbourg?".

PERGUNTA - E você decidiu fugir?
BIRKIN
- Eu decidi que tentaria ganhar tempo e por isso fui ao banheiro. Quando saí, Serge estava estendido na cama, completamente bêbado, dormindo profundamente.
Corri até a drugstore do outro lado da rua, comprei o compacto de uma canção chamada "Yummy, Yummy, Yummy, I've Got Love in My Tummy", encaixei o disco entre seus dedos do pé e fui embora.

PERGUNTA - Você achava que aquilo seria o fim da história?
BIRKIN
- Não queria ser uma dona de casa que o marido deixa sozinha em casa o dia inteiro, como havia sido em Londres com o meu primeiro marido.
Então me ofereceram um papel em "La Piscine", de Jacques Deray, com Romy Schneider e Alain Delon, que estava sendo filmado em St. Tropez [no litoral sul da França].

PERGUNTA - Você ficou assustada com a ideia de um papel interpretado em francês?
BIRKIN
- Não falava uma palavra do idioma. Só sabia os palavrões que aprendia com Serge.

PERGUNTA - Gainsbourg teve ciúmes de Delon?
BIRKIN
- Teve, mas isso quis dizer que pude voltar a ele me sentindo digna. Começamos a viver juntos em um hotel minúsculo, e depois nos mudamos para o apartamento dele e nunca mais ameacei sair.

PERGUNTA - Vamos recuar a 1969: o ano em que você e Serge gravaram uma canção que chocou o mundo, foi proibida em alguns países e veio a definir sua posição na cultura.
Você havia previsto alguma dessas coisas quanto gravou "Je T'Aime... Moi Non Plus"?
BIRKIN
- Não. Mas eu tinha ouvido a versão anterior, que Serge gravou com Brigitte Bardot, e achava muito sexy.

PERGUNTA - Duvido muito que seja mais sexy que a sua versão.
BIRKIN
- Oh, sim, era. E ele estava sempre disposto a falar sobre o caso que teve com Bardot, mostrar fotos dela...

PERGUNTA - Foi por isso que você decidiu gravar o disco?
BIRKIN
- Foi [começa a rir], e me entusiasmei demais com os gemidos, a tal ponto que tiveram de mandar que eu me acalmasse; isso quer dizer que, em dado momento, eu simplesmente parei de respirar.
Se você ouvir à gravação hoje, ainda percebe aquela pequena pausa nos vocais. O disco foi proibido imediatamente na Itália, pelo papa, mas Serge disse que isso faria do papa "o nosso melhor relações-públicas".

PERGUNTA - Você se lembra da primeira vez em que ouviu a música em público?
BIRKIN
- Serge colocou o disco em um restaurante lotado e, quando a música começou, só o que se ouvia eram as pessoas largando os talheres.
"Acho que temos um grande sucesso", ele disse. É de certa forma maravilhoso saber que, quando eu morrer, se eu vier a ser lembrada, será antes de tudo por aquela canção.

PERGUNTA - Bardot alguma vez contou o que achava da sua versão?
BIRKIN
- Bem, certa vez, com muita doçura, quando estávamos juntas na cama, nuas, para filmar "Don Juan", de Roger Vadim, sugeri que cantássemos alguma coisa para passar o tempo. "Por que não "Je T'Aime... Moi Non Plus?'", ela respondeu, com uma piscada.

PERGUNTA - Como ela era?
BIRKIN
- Cada centímetro de seu corpo era perfeito. A menina não tinha nenhum defeito. Lembro que durante a cena de amor entre nós duas, tentei contorcer minhas pernas nuas em torno dela, para que as pessoas achassem que as pernas dela eram as minhas.

PERGUNTA - É verdade que Gainsbourg tinha medo dos seios de Brigitte Bardot?
BIRKIN
- Ele morria de medo de quaisquer seios. E foi esse o motivo, quando ele me conheceu, para que dissesse que, "uau, você tem um corpo exatamente como os que eu desenhava na escola de arte".
Ele não gostava de seios altos, empinados; gostava de seios mais baixos, o que para mim era ótimo, já que eu havia tido um bebê.
"Sempre sonhei com uma garota que tivesse corpo de menino na parte de cima e traseiro de mulher", ele uma vez me disse. Serge adorava traseiros.

PERGUNTA - Como foi transformar-se repentinamente em metade do mais famoso casal do mundo do entretenimento francês?
BIRKIN
- Serge adorava ver seu nome nos jornais. Mesmo quando teve um ataque cardíaco e estava no hospital, deu um jeito de conceder uma entrevista ao "Paris Soir". "Estou morrendo, aqui, e a França não sabe a respeito", ele explicou, quando perguntei por que havia decidido fazer a entrevista.

PERGUNTA - Naquela época, o que tinha mais importância em sua vida? A música ou os filmes?
BIRKIN
- Na verdade, Serge. Levávamos uma vida extraordinária. Ficávamos na rua até as seis da manhã, acordávamos as crianças para a escola, tomávamos café da manhã com elas e depois dormíamos até a hora de buscá-las. Depois, nós as levávamos ao parque, e às 22h o circo todo recomeçava.
Fiz muitos filmes enquanto isso, a maioria deles realmente horríveis.

PERGUNTA - Quando se tornou claro para você que ele era alcoólatra?
BIRKIN
- Bem, quando as pessoas começaram a beber logo no começo do dia. Ele se recusava a comer. Eu continuei a acompanhá-lo aos clubes, e a cair dormindo em jantares, esperando por ele. Mas então algo de muito banal aconteceu...

PERGUNTA - Você conheceu outro homem?
BIRKIN
- Jacques Doillon queria me escalar para seu filme, "A Filha Pródiga", e lá estava eu, esperando um homem robusto e barbado, quando de repente me aparece aquele sujeito esplêndido, com cara de pele-vermelha.
Tive de recusar o filme, porque, se tivesse aceitado, terminaria fugindo com ele.

PERGUNTA - O que de qualquer modo aconteceu.
BIRKIN
- As coisas estavam muito ruins, e certo dia, em um estúdio de gravação, enquanto Serge estava ocupado oferecendo champanhe a todo mundo, como sempre fazia, peguei a bolsa e fui embora.

PERGUNTA - Você e Gainsbourg estrelaram em filmes com as suas filhas, você com Lou [Doillon] em "Boxes", e Serge com Charlotte no controverso "Charlotte Forever", baseado em uma relação vagamente incestuosa entre pai e filha. Como é que você enfrenta as acusações de que sua vida e seu trabalho terminaram entrelaçados demais?
BIRKIN
- Nunca escrevi um livro sobre minha vida, ainda que já tenham me oferecido muito dinheiro. Dirigi "Boxes" porque desejava mostrar um retrato sincero de uma filha que perdeu o pai ou do ciúme que é possível sentir de uma filha que se tornou mais bonita que você e cujo padrasto começa a querer levar às comprar.
Não sou a única pessoa do mundo que teve três maridos, mas ninguém fala sobre esses outros relacionamentos.

PERGUNTA - O filme era como um pedido de desculpas às suas filhas?
BIRKIN
- Não, era sobre o desejo de uma mãe de que suas filhas sejam levadas a sério, que não se tornem conhecidas apenas por sua beleza, como aconteceu comigo. Ser bonita é ótimo, mas de repente se torna a única coisa que importa sobre você.
Foi por isso que disse a Charlotte [Gainsbourg], quando fez "Charlotte Forever" [1986] e gravou "Lemon Incest", com Serge, que ela deveria fazer outros filmes, também.
Queria que as pessoas a conhecessem como atriz, e, meu Deus, fiquei muito orgulhosa quando ela ganhou a Plama de Ouro em Cannes neste ano [por seu trabalho em "Anticristo", de Lars von Trier].

PERGUNTA - Em 1991, Gainsbourg sofreu um ataque cardíaco fatal e, quando você estava a caminho do funeral, perdeu seu pai.
BIRKIN
- Minha mãe disse que "se você sorrir, o mundo sorrirá com você; se chorar, você chorará sozinha". Por isso, fiz o show que tinha programado, enquanto a França estava de luto por Serge. Era o mínimo que eu podia fazer: ser a pessoa "dos descontos", como no futebol, quando a partida continua depois do momento em que deveria ter acabado.


Celia Walden - Telegraph.co.uk ¸ Telegraph Media Group Limited 2009, onde a íntegra desta entrevista foi publicada.

Tradução de Paulo Migliacci .


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