|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
PONTO DE FUGA
A carne do corpo
JORGE COLI
especial para a Folha
A invenção da pintura neoclássica, arte do Iluminismo,
que precede e prepara a Revolução Francesa, centrava-se no
estudo da anatomia humana.
Construíam-se corpos sólidos
sobre a tela, que eram, como
por acaso, destinados ao sacrifício físico da morte. Marat
apodrecera em vida, atacado
por doenças de pele, mas, assassinado, tornou-se uma imagem sintética e eterna, graças a
David. Centrava-se uma curiosa atenção sobre o corpo, que,
de modo involuntário, pressupunha o cadáver: neoclassicismo e guilhotina nascem juntos.
Géricault, na geração seguinte
dos pintores franceses, herda
essa obsessão, que ele esvazia
de qualquer álibi cultural ou
imaginário: um cadáver é um
cadáver, carne humana em decomposição, visualmente exposta nos limites de sua materialidade, eliminados eufemismo e metafísica. Tônica do
chamado romantismo francês,
presidido em verdade por um
realismo brutal, por uma épica
da carniça, o cadáver deve ser
devorado pelos olhos. O canibalismo fascina, último estágio
do horror. Ele incorpora-se ao
episódio da "Medusa", transformado por Géricault num
monumento à simbiose entre
destruição física e política. A
Bienal traz um conjunto concentrado de obras desse imenso
pintor. Não veio nenhuma de
suas estranhas e silenciosas naturezas-mortas compostas com
pedaços de cadáveres. Mas estão lá as terríveis cabeças de
decapitados, dois desenhos do
assassinato de Fualdès (que
ocorreu numa mesa de cozinha!), e um estupendo estudo a
óleo para a "Balsa da Medusa".
OS DENTES DO PAI - Goya,
ao longo de sua obra, tomou a
passagem do tempo como instrumento reflexivo. As mulheres mais belas e mais sensuais
tornam-se velhas decrépitas, os
vícios ignóbeis acentuam-se
com a idade avançada e os
anos colocam em cena o tristíssimo drama do desgaste do corpo e da mente. Saturno é o antropófago primordial, deus do
tempo, Cronos que devora os
próprios filhos. A esse destino
inevitável, Goya acrescentou
um outro canibalismo -o homem, desprovido da razão, devora o homem. Na Bienal estão
duas de suas quatro "Cenas de
antropofagia". São quadros
onde o sentido mais sutil da
dosagem da luz, as mais infinitas nuances cromáticas,
põem-se ao serviço de uma visão sem piedade sobre a natureza humana. Nenhum laivo
de Rousseau: em Goya, o homem é, essencialmente, um selvagem violento.
PESTILÊNCIAS - Depois de Géricault -e de Goya também-
Baudelaire imprimirá uma inflexão voluptuosa e decadente ao cadáver putrefato, com seu poema
"Une Charogne" (Uma Carniça).
Tais sensibilidades estranhas e
perversas serão prolongadas, no final do século passado, pela pintura elegantíssima de Gustave Moreau, também presente na Bienal.
MOLARES - Fato raro, o Museu
Mariano Procópio, de Juiz de Fora,
emprestou uma de suas telas
-"Tiradentes", de Pedro Américo-, que está na Bienal. Obra
única em nossas artes, onde violência da história significa violência sobre o corpo, herdeira dos esquartejados de Géricault. As postas humanas são envolvidas por
uma luz prodigiosa, que lhes confere uma delicada nitidez. O pintor foi sensível à clareação geral
das imagens, promovida algumas
décadas antes pelo impressionismo, inserindo alguns minúsculos e
maravilhosos recortes de paisagem
na cena.
Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: coli20hotmail.com
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
|