São Paulo, domingo, 25 de outubro de 1998

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PONTO DE FUGA

A carne do corpo

JORGE COLI
especial para a Folha

A invenção da pintura neoclássica, arte do Iluminismo, que precede e prepara a Revolução Francesa, centrava-se no estudo da anatomia humana. Construíam-se corpos sólidos sobre a tela, que eram, como por acaso, destinados ao sacrifício físico da morte. Marat apodrecera em vida, atacado por doenças de pele, mas, assassinado, tornou-se uma imagem sintética e eterna, graças a David. Centrava-se uma curiosa atenção sobre o corpo, que, de modo involuntário, pressupunha o cadáver: neoclassicismo e guilhotina nascem juntos. Géricault, na geração seguinte dos pintores franceses, herda essa obsessão, que ele esvazia de qualquer álibi cultural ou imaginário: um cadáver é um cadáver, carne humana em decomposição, visualmente exposta nos limites de sua materialidade, eliminados eufemismo e metafísica. Tônica do chamado romantismo francês, presidido em verdade por um realismo brutal, por uma épica da carniça, o cadáver deve ser devorado pelos olhos. O canibalismo fascina, último estágio do horror. Ele incorpora-se ao episódio da "Medusa", transformado por Géricault num monumento à simbiose entre destruição física e política. A Bienal traz um conjunto concentrado de obras desse imenso pintor. Não veio nenhuma de suas estranhas e silenciosas naturezas-mortas compostas com pedaços de cadáveres. Mas estão lá as terríveis cabeças de decapitados, dois desenhos do assassinato de Fualdès (que ocorreu numa mesa de cozinha!), e um estupendo estudo a óleo para a "Balsa da Medusa".

OS DENTES DO PAI - Goya, ao longo de sua obra, tomou a passagem do tempo como instrumento reflexivo. As mulheres mais belas e mais sensuais tornam-se velhas decrépitas, os vícios ignóbeis acentuam-se com a idade avançada e os anos colocam em cena o tristíssimo drama do desgaste do corpo e da mente. Saturno é o antropófago primordial, deus do tempo, Cronos que devora os próprios filhos. A esse destino inevitável, Goya acrescentou um outro canibalismo -o homem, desprovido da razão, devora o homem. Na Bienal estão duas de suas quatro "Cenas de antropofagia". São quadros onde o sentido mais sutil da dosagem da luz, as mais infinitas nuances cromáticas, põem-se ao serviço de uma visão sem piedade sobre a natureza humana. Nenhum laivo de Rousseau: em Goya, o homem é, essencialmente, um selvagem violento.

PESTILÊNCIAS - Depois de Géricault -e de Goya também- Baudelaire imprimirá uma inflexão voluptuosa e decadente ao cadáver putrefato, com seu poema "Une Charogne" (Uma Carniça). Tais sensibilidades estranhas e perversas serão prolongadas, no final do século passado, pela pintura elegantíssima de Gustave Moreau, também presente na Bienal.

MOLARES - Fato raro, o Museu Mariano Procópio, de Juiz de Fora, emprestou uma de suas telas -"Tiradentes", de Pedro Américo-, que está na Bienal. Obra única em nossas artes, onde violência da história significa violência sobre o corpo, herdeira dos esquartejados de Géricault. As postas humanas são envolvidas por uma luz prodigiosa, que lhes confere uma delicada nitidez. O pintor foi sensível à clareação geral das imagens, promovida algumas décadas antes pelo impressionismo, inserindo alguns minúsculos e maravilhosos recortes de paisagem na cena.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: coli20hotmail.com



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