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Ponto de Fuga
Criação e liberdade
A obra de Ridley Scott se aparenta bastante à de John Ford, gigante que nem sempre escolheu seus filmes; assim é em Hollywood, assim é em boa maioria da arte que o Ocidente produziu
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JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA
Francis Ford Coppola conta numa entrevista que financiou em grande parte
seu último filme, "Youth Without Youth" [Juventude Sem
Juventude], com os lucros dos
vinhedos que possui na Califórnia. "Durante anos, não encontrei meu lugar nos grandes
estúdios americanos." Acrescenta: "Eu deveria fazer como
Ridley Scott, que filma tudo o
que lhe propõem?".
A observação é cruel. É verdade que "Hannibal", "Até o Limite da Honra", "1492", todos
dirigidos por Scott, não parecem filmes escolhidos. Trazem,
porém, a marca de um criador.
A obra de Ridley Scott se
aparenta bastante à de John
Ford, outro gigante que nem
sempre escolheu seus filmes.
Assim é em Hollywood. Assim
é em boa maioria da arte que o
Ocidente produziu, já que a liberdade artística concebida
sem limites é uma exigência recente. Afirmou-se apenas com
os românticos.
A livre criação muitas vezes
não está onde se supõe: adquire
força ao se infiltrar nos interstícios das proibições, das exigências, dos imperativos exteriores, para neutralizá-los, ressurgindo enfim como arte.
Em tais casos, é preciso saber
negociar com os obstáculos.
Certos artistas, como Ridley
Scott, possuem esse dom. Outros, como Coppola, preferem
mais autonomia. A qualidade
das obras não depende de uma
situação ou de outra.
Como John Ford, Ridley
Scott tem intuição épica, sua
câmera, instintivamente, tudo
engrandece. Atenta aos gestos
pequenos, aos detalhes, numa
antropologia descritiva e minuciosa que se transfigura em
epopéia.
Por razões diversas, sua última realização, "American
Gangster" [com estréia prevista para janeiro, com o título "O
Gângster"], pode fazer pensar
em "Tropa de Elite". Mas não
pelo universo que instauram: o
filme brasileiro impõe-se por
sua força realista, o americano
se desdobra em admirável declamação narrativa.
Rumos
"O Gângster" mostra duas
trajetórias muito claras, de início paralelas. Numa, o herói é
um policial branco, Richie Roberts, encarnado por Russel
Crowe. Honesto num meio então profundamente corrupto,
age com rigor, às vezes contra
seus próprios interesses. Na
outra, Denzel Washington assume o protagonista, Frank Lucas, um gângster negro que
contrabandeia a droga do Vietnã, durante a guerra, em aviões
do Exército.
Preto no branco
A vida familiar, sentimental,
sexual de Richie Roberts, o policial, é desordenada e descontrolada. No avesso, o traficante
vai à igreja aos domingos, ama a
família, respeita a mãe, casa-se
na igreja. Uma ceia de Ação de
Graças evoca a pintura criada
por Norman Rockwell.
Richie faz seu dever, mas diz,
com cinismo: "Juízes, advogados, policiais, políticos. Se as
drogas pararem de vir a este
país, umas 100 mil pessoas vão
ficar sem trabalho".
Lucas, ao contrário, percebe
no tráfico um meio de alcançar
o sonho americano, segundo
uma ética americana: "Este é
meu lar. É aqui que meu negócio está, minha mulher, minha
mãe, minha família. Este é meu
país, e não vou fugir para lugar
nenhum".
Paira um sentimento de orgulho social nesse gângster negro que conseguiu vencer os
brancos italianos da máfia.
Mitos
Os dois heróis de "O Gângster" se completam como partes
de um mesmo todo. Traçam
fios claros na América de Nixon, apresentada como tensa e
confusa: decomposição da segurança nas grandes cidades,
trauma violento provocado pela Guerra do Vietnã, explosão
no consumo de drogas.
Ridley Scott atinge um mito
cultural fundador, a lei americana, completando-a, em modo
nada ortodoxo e muito crítico,
pela ética do sonho americano.
jorgecoli@uol.com.br
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