São Paulo, domingo, 25 de novembro de 2007

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Ponto de Fuga

Criação e liberdade


A obra de Ridley Scott se aparenta bastante à de John Ford, gigante que nem sempre escolheu seus filmes; assim é em Hollywood, assim é em boa maioria da arte que o Ocidente produziu

JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

Francis Ford Coppola conta numa entrevista que financiou em grande parte seu último filme, "Youth Without Youth" [Juventude Sem Juventude], com os lucros dos vinhedos que possui na Califórnia. "Durante anos, não encontrei meu lugar nos grandes estúdios americanos." Acrescenta: "Eu deveria fazer como Ridley Scott, que filma tudo o que lhe propõem?".
A observação é cruel. É verdade que "Hannibal", "Até o Limite da Honra", "1492", todos dirigidos por Scott, não parecem filmes escolhidos. Trazem, porém, a marca de um criador. A obra de Ridley Scott se aparenta bastante à de John Ford, outro gigante que nem sempre escolheu seus filmes.
Assim é em Hollywood. Assim é em boa maioria da arte que o Ocidente produziu, já que a liberdade artística concebida sem limites é uma exigência recente. Afirmou-se apenas com os românticos. A livre criação muitas vezes não está onde se supõe: adquire força ao se infiltrar nos interstícios das proibições, das exigências, dos imperativos exteriores, para neutralizá-los, ressurgindo enfim como arte.
Em tais casos, é preciso saber negociar com os obstáculos. Certos artistas, como Ridley Scott, possuem esse dom. Outros, como Coppola, preferem mais autonomia. A qualidade das obras não depende de uma situação ou de outra.
Como John Ford, Ridley Scott tem intuição épica, sua câmera, instintivamente, tudo engrandece. Atenta aos gestos pequenos, aos detalhes, numa antropologia descritiva e minuciosa que se transfigura em epopéia.
Por razões diversas, sua última realização, "American Gangster" [com estréia prevista para janeiro, com o título "O Gângster"], pode fazer pensar em "Tropa de Elite". Mas não pelo universo que instauram: o filme brasileiro impõe-se por sua força realista, o americano se desdobra em admirável declamação narrativa.

Rumos
"O Gângster" mostra duas trajetórias muito claras, de início paralelas. Numa, o herói é um policial branco, Richie Roberts, encarnado por Russel Crowe. Honesto num meio então profundamente corrupto, age com rigor, às vezes contra seus próprios interesses. Na outra, Denzel Washington assume o protagonista, Frank Lucas, um gângster negro que contrabandeia a droga do Vietnã, durante a guerra, em aviões do Exército.

Preto no branco
A vida familiar, sentimental, sexual de Richie Roberts, o policial, é desordenada e descontrolada. No avesso, o traficante vai à igreja aos domingos, ama a família, respeita a mãe, casa-se na igreja. Uma ceia de Ação de Graças evoca a pintura criada por Norman Rockwell.
Richie faz seu dever, mas diz, com cinismo: "Juízes, advogados, policiais, políticos. Se as drogas pararem de vir a este país, umas 100 mil pessoas vão ficar sem trabalho".
Lucas, ao contrário, percebe no tráfico um meio de alcançar o sonho americano, segundo uma ética americana: "Este é meu lar. É aqui que meu negócio está, minha mulher, minha mãe, minha família. Este é meu país, e não vou fugir para lugar nenhum".
Paira um sentimento de orgulho social nesse gângster negro que conseguiu vencer os brancos italianos da máfia.

Mitos
Os dois heróis de "O Gângster" se completam como partes de um mesmo todo. Traçam fios claros na América de Nixon, apresentada como tensa e confusa: decomposição da segurança nas grandes cidades, trauma violento provocado pela Guerra do Vietnã, explosão no consumo de drogas.
Ridley Scott atinge um mito cultural fundador, a lei americana, completando-a, em modo nada ortodoxo e muito crítico, pela ética do sonho americano.


jorgecoli@uol.com.br


Texto Anterior: Os Dez+
Próximo Texto: Discoteca Básica - Roberta Sá: Jóia
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.