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Sinos, esmeraldas e carne-seca
Dia-a-dia na nova capital do império se modificou radicalmente, combinando arcaísmo e transformação nos espaços público e privado
MARY DEL PRIORE
ESPECIAL PARA A FOLHA
Mil oitocentos e
oito, no Terreiro do Paço. Às
5h da manhã,
um tiro vindo
da ilha das Cobras estremece as
janelas. A corneta da guarda
municipal soa a alvorada. Badalos parecem querer acordar
os mortos. Rangem as correntes dos presos que passam a
buscar água. Vendilhões já estão a tagarelar.
Uma música celestial ou infernal marca o ritmo da cidade.
Por cima de tudo, o som contínuo dos sinos lembra que é a
igreja quem controla o tempo.
Às 6h soa o ângelus. Às 12h se
anuncia que o demônio anda à
solta, melhor rezar. Às 18h são
as ave-marias nas esquinas, em
frente aos oratórios. Tantos toques indicam um enterro, outros tantos, um nascimento.
Ao peditório em altos brados
dos mendigos se junta aquele
dos irmãos de confrarias, com
bandejas de esmolas e imagens
de santos, numa cacofonia sem
fim. Um horário rígido marca o
dia-a-dia dos ambulantes.
As vendedoras de café saem
às ruas cedo. As de pão-de-ló
circulam até o almoço.
Ao longo da praia, um mercado informal oferece de tremoço a bananas e lenha. É comum
comer fora de hora. O prato
mais solicitado é a carne-seca
preparada com feijão e farinha
em braseiros a céu aberto.
Nas ruas, negros, escravos e
livres circulam e se misturam
no labirinto da cidade. Capoeiras cruzam a Candelária, exibindo-se num jogo atlético.
Carregadores e mulheres ambulantes transportam sua mercadoria na cabeça: frutas, animais vivos, pacotes, água potável, roupas sujas e limpas, tigres com excrementos.
Pluralidade
Não é uma massa uniforme,
essa que oferece serviços. Os
indivíduos se identificam pelas
escarificações no corpo ou na
face, cuidadosos penteados, panos-da-costa, amuletos, jóias
ou chinelas.
As negras de ganho [que trabalhavam e que repassavam
seus ganhos aos donos], com
seus xales azuis, trazem sobre
si objetos de cunho propiciatório, buscando proteção e lucro.
Dispostos na cintura por argolas ou tiras de couro, são bolas
de louça, figas, dentes de animais e também medalhinhas,
crucifixos e outros símbolos.
As diferentes nações formam
fronteiras não visíveis aos
olhos de europeus e se organizam por meio de irmandades
religiosas, pontos de encontro,
os cantos e os zungus, onde não
faltam tensões e violências entre seus membros.
Nas chamadas "casas de pasto", o movimento é intenso:
empregados servem limonadas, vinho verde português, clarets ingleses. Cervejas suecas
afogam, docemente, o hábito
do consumo de licor de caju e
cachaça.
Pouco civilizado se considera
o costume de comer com as
mãos: "Primeiro tomam entre
os dedos um pouco de carne.
Mergulham isto no molho, esmagam o conjunto na palma da
mão, fazendo um bolo, o qual
levam imediatamente à boca,
preparando outro enquanto
comem", conta um viajante.
Depois da chegada da corte,
talheres entram nos lares, seguidos de vários artigos de cutelaria vindos do Reino Unido:
facas de cozinha e açougue, navalhas finas para fazer a barba
"à gentleman", tesouras para
costura e jardim.
Produtos importados ganham as prateleiras das lojas:
água de Cologne, vinagres para
toucador e para mesa, luvas,
suspensórios, sabão, leques de
toda sorte, escovas e pentes, sapatos e chinelas de seda e marroquim, botas de Paris, velas e
azeite clarificado para lustres,
chapéus de palha, castor e seda,
penachos, fitas, filós, flores artificiais, mesas e espelhos de
toucador, bijuterias, relógios de
repetição, livros franceses. Palavras estrangeiras passam a
rechear o vocabulário: "maître
tailleur", "maître coiffeur".
Seios expostos
Nos sobrados, sinhazinhas e
iaiás, cobertas com um timão,
confortável camisolão branco,
se ocupam nas atividades domésticas. Os cabelos, mal penteados ou "en papilottes", segundo a inglesa Maria Graham, dão impressão de desmazelo.
Pior, a tal camisola deixa expostos os seios.
E fulmina: "Não vi hoje uma
só mulher toleravelmente bela"! O contraste entre a simplicidade da indumentária e o luxo das jóias é corrente. Sem
elas, as mulheres não saem aos
domingos, para se confessar e ir
à igreja. Portam anéis, colares,
brincos e braceletes ricamente
trabalhados, tesouro que tanto
é presente do marido, quanto
parte do dote de casamento.
A novidade chega com a exibição nas reuniões da corte. Aí
brilham esmeraldas, crisólitas,
diamantes, plumas, além de
vestidos bordados a ouro e prata que, ousadamente decotados, à francesa, enchem a platéia do teatro São João ou do
palácio.
No interior da casa, destacam-se o piano Broadwood, pisos forrados com tecido estampado francês, paredes cheias de gravuras inglesas e pinturas
chinesas. "Numa ponta da sala", conta Graham, "uma mesa
comprida, coberta com uma
caixa de vidro, na qual havia
uma peça religiosa de cera; um
presépio com anjos, três reis
magos e flores artificiais".
Do teto pendem gaiolas de
pássaros. A modernidade do
instrumento convive com o
canto do curió.
No privado ou no público, o
cotidiano se transformou depois da chegada da família real
ao Brasil. Ele se tornou o ponto
de encontro entre arcaísmo e
tradição, ruptura e transformação. E em 2008, a efeméride fará mudar alguma coisa?
MARY DEL PRIORE é historiadora, autora de "O
Príncipe Maldito" (ed. Objetiva).
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