São Paulo, domingo, 25 de novembro de 2007

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ABERTURA DAS CRENÇAS

Carta régia de dom João 6º, de 1811, foi primeiro documento a conceder liberdade religiosa no país, diz pesquisadora

ERNANE GUIMARÃES NETO
DA REDAÇÃO

Ao invés de um regente hesitante entre a aliança com o Reino Unido e as imposições francesas, dom João 6º pode ter sido um discreto estrategista, com um plano original -a viagem ao Brasil- para evitar a derrota formal para a França.
Documentos apontam um comportamento semelhante no que se refere aos costumes. O regente teria usado sua habilidade contemporizadora para dispor de mão-de-obra especializada e liberdade religiosa no Brasil sem, com isso, se indispor com a Igreja Católica e os brasileiros.
Rosangela Boy, pesquisadora da Universidade Presbiteriana Mackenzie, em São Paulo, estudou o caso da primeira siderúrgica do Brasil: a fazenda Ipanema, em Iperó (então parte de Sorocaba), construída por luteranos vindos majoritariamente da Suécia. Conflitos entre os sorocabanos e os estrangeiros ensejaram uma carta régia exigindo o respeito ao culto protestante.
Para a pesquisadora, a carta régia, de 11/8/1811, é a primeira norma do império a regular a tolerância religiosa prevista pelo Tratado de Comércio e Navegação de 1810.
Nela, dom João 6º ordena que os não-católicos "sem forma de igreja possam reunir-se para o culto particular".  

FOLHA - Os contratos estabelecidos por dom João 6º que a sra. estudou combinam com a imagem de estrategista discreto, que substitui a do "nobre abobalhado"?
ROSANGELA BOY
- Sim. Dom João enviou ao Brasil um grupo para pesquisar onde havia ferro, para criar a primeira siderúrgica. Quem fez a pesquisa foi o alemão Varnhagen, protestante convertido ao catolicismo. Ele veio supondo que iria administrar a indústria, mas dom João 6º contratou profissionais, liderados por Hedberg, um empresário sueco endividado. Hedberg veio com o primeiro contrato de trabalhador livre do Brasil.
Na Europa havia perseguições religiosas, portanto ele pediu para constarem no contrato os direitos religiosos. O regente nunca havia feito a "caça aos protestantes" sugerida pela igreja. Ao contrário: aliou-se a eles, pois eram os que tinham tecnologia.
Hedberg trouxe seu grupo, além de livros e equipamentos para montar um laboratório. Varnhagen havia sido dispensado, mas quis ficar como tradutor. Ele criou muita intriga, para que Hedberg fosse mandado embora.

FOLHA - O primeiro cemitério protestante do Brasil foi mesmo inaugurado em 1811?
BOY
- Sim, provavelmente em março. Enquanto Hedberg e Varnhagen estavam envolvidos em intrigas, morreu de escorbuto, em 27/2/1811, o carpinteiro Jonas Bergman. Ele foi enterrado no único cemitério de Sorocaba (SP), o da Matriz, e o padre deu o caixão, conforme o costume da época. Varnhagen espalhou por toda a cidade que esse grupo estrangeiro era protestante. Para os católicos, foi o fim: tiraram o defunto da terra, jogaram-no na rua e cobraram pelo caixão.
Isso criou grande rivalidade entre os sorocabanos e os suecos. Como no contrato estava escrito que teriam liberdade religiosa, recorreram a dom João 6º, que fez a primeira lei de liberdade religiosa do Brasil [a carta régia], em agosto de 1811.

FOLHA - Mas o respeito à crença dos outros era previsto por um tratado internacional, de 19/2/1810, o tratado de Comércio e Navegação...
BOY
- As pessoas não cumpriam. Era necessária uma lei interna, e ele fez a carta régia. Por causa dela, houve em Sorocaba uma liberdade religiosa que não havia em nenhum outro lugar: em um censo de 1814, já havia distinção entre protestantes e católicos.
Em 1814, quando Hedberg mal tinha dinheiro para pagar os credores, uma enchente inundou a fábrica. Estava quase tudo pronto, mas ainda não se produzia ferro. Hedberg decidiu ir embora, e Varnhagen assumiu a direção, ficando com a fama. Hedberg ficou mal-falado. Como dom João 6º.

FOLHA - Uma personalidade que precisa ser revista?
BOY
- Sim.


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