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ABERTURA DAS CRENÇAS
Carta régia de dom João 6º, de 1811, foi primeiro documento a conceder liberdade religiosa no país, diz pesquisadora
ERNANE GUIMARÃES NETO
DA REDAÇÃO
Ao invés de um regente hesitante entre a aliança com o
Reino Unido e as
imposições francesas, dom João 6º pode ter sido
um discreto estrategista, com
um plano original -a viagem
ao Brasil- para evitar a derrota
formal para a França.
Documentos apontam um
comportamento semelhante
no que se refere aos costumes.
O regente teria usado sua habilidade contemporizadora para dispor de mão-de-obra especializada e liberdade religiosa
no Brasil sem, com isso, se indispor com a Igreja Católica e
os brasileiros.
Rosangela Boy, pesquisadora
da Universidade Presbiteriana
Mackenzie, em São Paulo, estudou o caso da primeira siderúrgica do Brasil: a fazenda
Ipanema, em Iperó (então parte de Sorocaba), construída por
luteranos vindos majoritariamente da Suécia.
Conflitos entre os sorocabanos e os estrangeiros ensejaram uma carta régia exigindo o
respeito ao culto protestante.
Para a pesquisadora, a carta
régia, de 11/8/1811, é a primeira
norma do império a regular a
tolerância religiosa prevista
pelo Tratado de Comércio e
Navegação de 1810.
Nela, dom João 6º ordena
que os não-católicos "sem forma de igreja possam reunir-se
para o culto particular".
FOLHA - Os contratos estabelecidos por dom João 6º que a sra. estudou combinam com a imagem de
estrategista discreto, que substitui a
do "nobre abobalhado"?
ROSANGELA BOY - Sim. Dom João
enviou ao Brasil um grupo para
pesquisar onde havia ferro, para criar a primeira siderúrgica.
Quem fez a pesquisa foi o alemão Varnhagen, protestante
convertido ao catolicismo.
Ele veio supondo que iria administrar a indústria, mas dom
João 6º contratou profissionais, liderados por Hedberg,
um empresário sueco endividado. Hedberg veio com o primeiro contrato de trabalhador livre
do Brasil.
Na Europa havia perseguições religiosas, portanto ele pediu para constarem no contrato
os direitos religiosos. O regente
nunca havia feito a "caça aos
protestantes" sugerida pela
igreja. Ao contrário: aliou-se a
eles, pois eram os que tinham
tecnologia.
Hedberg trouxe seu grupo,
além de livros e equipamentos
para montar um laboratório.
Varnhagen havia sido dispensado, mas quis ficar como tradutor. Ele criou muita intriga,
para que Hedberg fosse mandado embora.
FOLHA - O primeiro cemitério protestante do Brasil foi mesmo inaugurado em 1811?
BOY - Sim, provavelmente em
março. Enquanto Hedberg e
Varnhagen estavam envolvidos
em intrigas, morreu de escorbuto, em 27/2/1811, o carpinteiro Jonas Bergman.
Ele foi enterrado no único
cemitério de Sorocaba (SP), o
da Matriz, e o padre deu o caixão, conforme o costume da
época. Varnhagen espalhou por
toda a cidade que esse grupo estrangeiro era protestante. Para
os católicos, foi o fim: tiraram o
defunto da terra, jogaram-no
na rua e cobraram pelo caixão.
Isso criou grande rivalidade
entre os sorocabanos e os suecos. Como no contrato estava
escrito que teriam liberdade religiosa, recorreram a dom João
6º, que fez a primeira lei de liberdade religiosa do Brasil [a
carta régia], em agosto de 1811.
FOLHA - Mas o respeito à crença
dos outros era previsto por um tratado internacional, de 19/2/1810, o
tratado de Comércio e Navegação...
BOY - As pessoas não cumpriam. Era necessária uma lei
interna, e ele fez a carta régia.
Por causa dela, houve em Sorocaba uma liberdade religiosa
que não havia em nenhum outro lugar: em um censo de 1814,
já havia distinção entre protestantes e católicos.
Em 1814, quando Hedberg
mal tinha dinheiro para pagar
os credores, uma enchente
inundou a fábrica. Estava quase
tudo pronto, mas ainda não se
produzia ferro. Hedberg decidiu ir embora, e Varnhagen assumiu a direção, ficando com a
fama. Hedberg ficou mal-falado. Como dom João 6º.
FOLHA - Uma personalidade que
precisa ser revista?
BOY - Sim.
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