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A CORTE PRIVADA
Expansão do Rio se deu graças à iniciativa individual e de ordens religiosas; governo
real criou planejamento e execução de obras públicas
NIREU CAVALCANTI
ESPECIAL PARA A FOLHA
Tornou-se comum a
crença de que o Rio de
Janeiro era um lugarejo sujo e atrasado
culturalmente e que,
num passe de mágica, mudou a
partir da chegada da corte lusitana, em 7 de março de 1808.
Afirma-se ainda que acompanharam a Família Real de 15
a 20 mil pessoas. Tais números
representariam cerca de 8% da
população de Lisboa, e 25% dos
moradores da cidade do Rio
que teriam sido despejados, em
igual número, de suas casas.
Trata-se de uma história
construída sem fundamentação documental e sem o mínimo de lógica e coerência.
A transferência da corte de
Lisboa para o Brasil, embarcada na frota que zarpou em 29
de novembro de 1807, e a instalação na cidade do Rio da corte
provisória, por si só, são grandes feitos a comemorarmos.
A inusitada troca de papéis
de uma monarquia européia
instalar-se na colônia americana -e o reino virar sede do vice-reinado- é o grande fato
histórico do início do século 19.
Temporário definitivo
A sábia decisão da inteligência governamental portuguesa
iniciou a desarticulação do projeto expansionista francês,
uma vez que a posse do Brasil
-e especialmente do Rio de Janeiro- seria fundamental para
Napoleão.
Segundo as reflexões do ministro da Marinha e Ultramar
Martinho de Mello e Castro, de
Portugal, em carta de 2/3/1795,
Bonaparte estabeleceria um
núcleo de apoio militar às forças navais e bloquearia o comércio marítimo, visando a se
apossar diretamente da Índia e,
principalmente, das colônias
inglesas e portuguesas naquele
país.
O que seria temporário se
tornou definitivo, e a corte provisória do reino português virou sede do reino do Brasil, unido ao de Portugal (carta de lei
de 16/12/1815). Após a declaração da Independência do Brasil
(7/9/1822) pelo regente dom
Pedro, tornou-se o Rio a sede
do império brasileiro.
A cidade do Rio de Janeiro
cresceu, novas ruas foram
abertas, muitos de seus logradouros, pavimentados, belas
igrejas edificadas, trapiches e
armazéns construídos, fábricas
de atanados (couro curtido), de
tecidos, de beneficiamento de
arroz, cordoarias etc. foram
realizadas graças à iniciativa individual, de grupos privados,
das ordens religiosas e das irmandades e ordens terceiras.
Formou-se no Rio de Janeiro
um grupo de pessoas muito ricas, que acumulou bens por
meio de atividades mercantis,
da produção agroindustrial
(açúcar, cachaça, farinha, café,
anil e arroz), dos criatórios, do
comércio negreiro, da atividade
imobiliária e, principalmente,
da extração aurífera e de pedras
preciosas. Essa elite poderia ter
construído palacetes monumentais, tê-los mobiliado e
adornado com os mais requintados produtos importados,
mas foi cerceada pelas leis do
reino contra o luxo (as "Pragmáticas"), proibindo-os de exporem suas riquezas.
Iniciativas importantes foram abortadas pela coroa. O estabelecimento da primeira gráfica na cidade, do empresário de Lisboa Antonio Isidoro da
Fonseca, que chegou a publicar
material para uso no comércio
e obras de cunho literário e acadêmico, durou pouco, pois em
10 de maio de 1747 foi promulgada a ordem régia proibindo
gráficas e publicação de "livro e
papel avulso" no Brasil.
Igual destino tiveram as fábricas de tecidos, de linhas e de
galões finos, até com fios de ouro e prata, por meio do alvará
de dona Maria 1ª de 5 de janeiro
de 1785, mandando fechar todas as fábricas do Brasil.
Na cidade do Rio de Janeiro
foram fechadas 16 fábricas e
seus teares enviados para Lisboa. Só foi permitida a permanência da indústria naval por
interesse da coroa na fabricação e nos consertos das embarcações reais.
Segunda cidade do reino
O comércio independente
com outros países, excluído
Portugal, era proibido, e submetidas a severa vigilância as
transações com os navios estrangeiros que aportavam na
cidade sob especial permissão
do vice-rei.
Vários processos e denúncias
atingiram pessoas acusadas de
comerciar clandestinamente
com estrangeiros.
Apesar do garrote colonial, a
cidade do Rio de Janeiro se tornou a mais populosa e a mais rica do Brasil, a segunda do reino,
atrás da corte de Lisboa.
Os 14 membros da família
real e seus acompanhantes se
acomodaram sem transtornos
na cidade, pois havia moradia
suficiente para abrigá-las, razão por que não há nenhuma
referência documental a obras
emergenciais para abrigos ou
reclamação desses recém-chegados de que estavam acampados nas ruas ou mesmo que nelas estivessem moradores despejados de suas casas.
Para abrigo da família real e
ampliação do que seria o palácio da corte, foram desalojados
os carmelitas, os desembargadores do Tribunal da Relação,
os presos da cadeia pública, a
fábrica da Casa da Moeda e, depois, o teatro de Manoel Luiz
Ferreira. Foram esses os primeiros que receberam o famoso PR, "Ponha-se na rua".
O "palácio rural" estava garantido com obras na sede da
fazenda real de Santa Cruz, faltando o "palácio de campo" para completar a trilogia mínima
de moradas reais.
Para isso, o rico comerciante
Elias Antônio Lopes ofertou o
seu palacete, em final de construção, em São Cristóvão, que
se transformou no Palácio da
Quinta da Boa Vista.
Os grandes legados do governo joanino (1808-21) foram a
consolidação do território brasileiro -redesenhando sua divisão com a criação das capitanias do Piauí (10/11/1811), Alagoas (16/9/1817) e Sergipe (8/
7/1820)- e a montagem do império para seu filho dom Pedro
1º, organizado político-administrativamente e reconhecido
em escala internacional.
As obras importantes feitas
por dom João 6º, com recursos
governamentais, restringiram-se à construção de três chafarizes, o prédio do quartel do
Exército, no Campo de Santana, e o prédio da Real Academia
de Belas Artes, projetado pelo
arquiteto francês Grandjean de
Montigny.
Devemos reconhecer a contribuição do governo joanino
na organização e montagem de
estrutura técnica de planejamento e execução das obras públicas e para o rei e sua família,
semelhante à existente na corte
de Lisboa.
Para isso, criou a função de
arquiteto da cidade para a Câmara de Vereadores; a Real Casa das Obras; o Arquivo Militar;
a organização do Real Corpo de
Engenheiros militares; a Intendência Geral da Polícia da Corte e Estado do Brasil, responsável pelo setor de teatros e divertimentos públicos, da mendicidade, de mapas estatísticos populacionais, das obras públicas
no âmbito da cidade do Rio de
Janeiro, do Passeio Público e
outros jardins, das obras e do
sistema de abastecimento de
água potável, iluminação pública etc.; a criação da Real Academia de Belas Artes; a ampliação
dos cursos da Real Academia
Militar; o curso de Medicina; a
Real Biblioteca pública; a imprensa; a transferência do jardim botânico do Passeio Público para um terreno muito
maior, no atual bairro do Jardim Botânico; a reabertura do
Museu de História Natural, em
prédio adquirido no atual Campo de Santana, esquina com a
rua da Constituição, com coleção mais variada e ampliada do
que a que existia na Casa dos
Pássaros.
Sem dúvida a cidade do Rio
de Janeiro ter-se tornado corte,
além de acarretar transformações econômicas, políticas e
culturais, alterou os costumes
da sociedade.
O Rio cresceu, muitos prédios foram construídos em razão da vinda da família real e de
seus acompanhantes, dos embaixadores, dos comerciantes e
profissionais estrangeiros, das
mais variadas áreas.
Também pela migração interna dos fluminenses e de outras capitanias, que desejavam
morar na corte.
A cidade expandiu-se em direção ao Palácio da Quinta da
Boa Vista e do Palácio de Santa
Cruz, em razão de nobres e endinheirados erguerem suas
mansões "de campo" e "rural"
ao lado do rei.
NIREU CAVALCANTI é historiador e professor
da Escola de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense.
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