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O francês Gérard Haddad comenta as disputas entre os seguidores do psicanalista e descreve suas sessões de análise com o autor dos "Escritos"
O DISCÍPULO "ADOTIVO" DE LACAN
por Betty Milan
Gérard Haddad nasceu em 1940, na Tunísia.
Sua família é judia praticante e ele se quer
ateu. Cursou agronomia, fundou outra família e exerceu com sucesso sua profissão -trabalhando sobretudo em países subdesenvolvidos. Insatisfeito, começou uma análise com Lacan em 1969
-uma análise cotidiana e extremamente custosa. Paralelamente, abandonou a agronomia e passou a cursar
medicina. Foi fiel ao mestre até o fim, mantendo-se à
distância das brigas que dividiram os discípulos de Lacan. Atualmente, Gérard Haddad é psiquiatra e psicanalista, pesquisa as relações entre a psicanálise, a teoria
lacaniana e o judaísmo.
Em "No Dia em Que Lacan me Adotou" (Grasset),
lançado no ano passado na França, ele conta de forma
muito clara a sua evolução, as suas interrogações e sobretudo a metamorfose decorrente da análise com Lacan. Faz um retrato impressionante do mestre e do
meio psicanalítico por revelar a grandeza de um e a
mesquinharia do outro.
O que o levou a contar detalhadamente a sua análise?
Na verdade eu queria fazer o balanço da questão judia na psicanálise, porém me dei conta de que essa
questão só me interessava por causa da transferência
em relação a Lacan. Portanto não podia abordá-la
sem primeiro falar do meu trabalho com ele. Imaginava escrever uma dezena de páginas e acabei escrevendo 500. Ademais, eu tinha o sentimento de ter vivido algo absolutamente extraordinário, que queria
legar para os outros. Gosto de escrever, escrevo desde os dez anos de idade.
O sr.diz que Lacan o recebeu no dia seguinte ao seu telefonema, com simplicidade e de forma muito afetiva. Tive
exatamente a mesma experiência. Por que Lacan era
considerado altivo, distante?
Acho que, na primeira entrevista, ele sempre recebia
de forma calorosa, o que é inteligível. É tão difícil
chegar ao analista. Quando a gente ia ver Lacan, era
porque a gente estava mal. Além de caloroso, ele era
falante. Não sei por que as pessoas dizem que os lacanianos não falam. Acho que muitos dos lacanianos não assimilaram o ensinamento. Fiquei furioso
quando li "Lacan" (Companhia das Letras), de Elizabeth Roudinesco, a única biografia escrita sobre ele.
Ela podia não gostar do grande homem, mas não podia tratar um homem da envergadura dele como tratou. Chamando-o, por exemplo, de "Sua Majestade"
ou "o filho do vinagreiro", depois de contar que o vinagre, na época, era feito com merda. Ou, então, dizendo que Lacan chegou à casa de Merleau-Ponty e
comeu todos os siris que havia na mesa, dando portanto uma imagem de homem mal-educado, vulgar.
Além disso, Roudinesco distorceu os propósitos de
pessoas que entrevistou, como Catherine Millot, por
exemplo, que escreveu uma carta para ela protestando. Trata-se de uma pessoa que tem um gosto patológico pelo poder.
Lacan lhe disse logo na primeira sessão que a análise ia
ser útil no seu caso, que era mesmo urgente começá-la,
que a fase preliminar não podia ser negligenciada, mas
que ele não tinha a intenção de prolongá-la com você. Fiz
minha análise com ele e ele nunca foi didático. Como você explica o didatismo dele na sua análise?
Era didático porque eu pedi que ele me formasse.
Queria ser iniciado por ele, embora soubesse que a
psicanálise não é uma iniciação. Você sabe de onde
venho. Era engenheiro agrônomo. Trabalhei na
África, em países pobres, queria acabar com a fome...
Lacan pediu que o sr. pagasse um terço do que ganhava.
Como é que explica isso?
Era o que se fazia na época. Mas ele era muito maleável. A prova é que reduziu imediatamente para a metade quando se deu conta de que eu não podia pagar.
Eu acabara de desembarcar do Senegal, ganhava
3.000 francos por mês e ele percebeu que não podia
cobrar 200 francos por sessão.
No início da análise o ritmo das sessões curtas era, do seu
ponto de vista, infernal. Como o sr. explica esse ritmo?
Por um lado, Lacan queria receber todo mundo. Por
outro, a gente não consegue prestar atenção durante
45 minutos. Lacan dava ênfase a uma palavra no
meu discurso e, só com isso, me fazia girar como um
cata-vento. O efeito inconsciente da pontuação e do
corte acabava me induzindo a mudar de direção.
Mas também havia manipulações inacreditáveis. Ele
marcava sessões na hora do curso de psicologia para
que eu o abandonasse.
Parece-me que há uma relação evidente entre a sessão
curta e o que se passava depois que o analisando atravessava a porta do consultório, porque o analisando continuava a sua análise na rua. Pode-se dizer que o divã de
Lacan não era concebível sem a rua?
Sim, e a rua também não era concebível sem o divã.
No começo da análise eu passava 24 horas por dia
ruminando o que acontecera na sessão, o que ia
acontecer na sessão seguinte etc. E, assim mesmo, eu
fazia uma porção de coisas. A análise era como o baixo-contínuo na música de Bach.
O sr. se refere repetidamente em seu livro à teatralidade
de Lacan, às frases espetaculares, aos barulhos que ele
fazia durante a sessão -contando dinheiro, por exemplo-, à maneira abrupta de o interromper, levantar e
sair... Como é que você interpreta essa teatralidade do
mestre?
Lacan dizia de si mesmo que tinha uma estrutura
histérica. Era como um ator. Havia isso, manipulações e pontapés. Um amigo meu viu Lacan dando
um pontapé em Charles Melman (ex-diretor da Associação Freudiana e hoje da Associação Lacaniana).
Por que você ficou com ele apesar das manipulações?
Porque ele era humilde. Lacan tinha a humildade do
verdadeiro pesquisador. Sou judeu e, no mundo rabínico, a humildade é a virtude suprema. Moisés era considerado um homem muito humilde. O "midraj"
explica isso dizendo que Deus se desvelou diante de
Moisés e, quando ele tudo viu, compreendeu que nada tinha compreendido. A negação do saber absoluto é o fundamento da humildade.
Aliás, logo na primeira página do livro o sr. escreve: "Há
algo de judeu nos bastidores da psicanálise".
A idéia só me ocorreu porque eu fui fazer a minha
análise com Lacan. Se tivesse trabalhado com outro
analista, a idéia jamais teria me ocorrido. O lugar em
que Lacan fala disso de maneira mais eloquente é na
entrevista que deu para uma rádio belga, em 1970,
quando fazia o seminário "O Avesso da Psicanálise".
A entrevista foi publicada com o título "Radiofonia".
Nela, ele fala do "midraj", a maneira que os rabinos
têm -da Antiguidade até a Idade Média- de ler a
Bíblia. O pressuposto do "midraj" é que o texto bíblico é um conteúdo manifesto que encobre conteúdos
latentes, ou seja, há muitos extratos de significação.
Trata-se de uma maneira de interpretação do texto
que nós encontramos também em Freud. Ele diz,
por exemplo, que há sempre uma relação entre duas
coisas contíguas ditas por um paciente que aparentemente nada têm a ver uma com a outra. O Talmud
afirma exatamente a mesma coisa. Posso dar um
exemplo. Na Bíblia há um enunciado que diz: "Miriam e os hebreus foram para outro lugar". Miriam,
em princípio, nada tem a ver com os hebreus. Segundo o "midraj", o enunciado informa que Miriam era
uma pessoa capaz de encontrar uma fonte. E, portanto, era necessária. Lacan falou disso e sua fala teve
muita influência sobre mim. Porque, na época, eu
estava questionando o meu desejo de não querer saber nada sobre a minha herança judaica, um desejo
que me levou ao limite da psicose. Freud nunca quis
analisar a relação entre a psicanálise e o judaísmo,
que ficou recalcada, como uma espécie de cadáver
no armário. Lacan ousou tocar no recalcado e isso
explica os problemas que ele teve com a comunidade
analítica.
Não entendo.
É que na comunidade analítica quase só há judeus.
Freud ficou contente quando encontrou Jung, que
não era judeu. Depois, houve Ernest Jones, que também não era. Noventa e nove por cento dos analistas
são judeus, mas com a condição de manter a questão
do judaísmo recalcada. Todo mundo sabe que, durante o nazismo, os analistas fizeram um pacto com
o diabo para manter a instituição analítica em Berlim. Basta tocar nessa questão para ser expulso. Isso
aconteceu comigo.
De acordo com o sr., as pessoas de esquerda analisadas,
ou seja, os psicanalistas de esquerda, não fizeram o luto
da sua fascinação pelo totalitarismo, que eles acabaram
por injetar no movimento analítico até que as instituições acabassem por se parecer com a máfia. A que se deve isso?
Foi o que eu tentei explicar num livro que se chama
"Loucuras Milenaristas". O movimento esquerdista
é milenarista, acredita numa sociedade perfeita. Estudei esses movimentos em várias situações. O que
impera neles é a raiva e a esperança da realização de
uma fantasia incestuosa. Nas sociedades analíticas
todo mundo transa com todo mundo, inclusive os
analistas com os pacientes. Jacques Alain Miller foi
um militante e trouxe a estrutura totalitária para o
movimento analítico. Charles Melman também. Há
neles algo de não-analisado, religioso, messiânico...
O sr. diz em seu livro que Charles Melman não faz psicanálise, mas sim direção eclesiástica de consciência; que
só a manipulação das pessoas e a exploração financeira
interessavam a Jacques Alain Miller; que Roudinesco é
uma megera irascível. Gostaria que o sr. dissesse o que
sustenta as suas afirmações.
Eu respeitava muito a psicanálise e, quando vi o que
eles podiam fazer em nome dela, quando me dei
conta das mentiras, fiquei enfurecido. Trabalhei
com Melman e me decepcionei com o comportamento dele quando Lacan estava no fim. Ainda que
Miller falsificasse a assinatura de Lacan, Melman não
podia tornar isso público, porque Miller era paciente
dele e a ética da psicanálise não permite isso. Seja como for, acho que precisava dizer o que pensava porque nós vivemos num mundo de mentiras, e a mentira é a razão do atual declínio cultural da França.
O sr. diz que não pertence a nenhuma capela analítica e
que todas são religiosas. Acha que podia ser diferente?
Isso dependeria de quê?
Poderia ser diferente se o funcionamento das sociedades analíticas obedecesse às regras da democracia.
Churchill dizia que a democracia não é um bom sistema, só que ele não conhecia outro melhor.
O sr. diz que o seu livro é uma homenagem a uma disciplina que ama apaixonadamente e está em perigo de extinção. Por quê?
Sou um antigo marxista e aprendi com o marxismo
que as causas dos fenômenos são, em primeiro lugar, causas internas. Como dizia Popper, é preciso
afastar a visão paranóica da história, visão em que
são os outros que nos oprimem, os outros que nos
fazem mal. Perguntemo-nos antes em que nós somos responsáveis pelo que nos acontece. Trata-se de
uma posição freudiana. Digo que a psicanálise está
em perigo porque a sua situação institucional é um
escândalo intelectual absoluto. Os psicanalistas vivem do impulso que os fundadores deram. E é preciso renovar a psicanálise, estudar a questão do pai,
que eu abordei no meu texto que se chama "Comer o
Livro". Os trabalhos de Hannah Arendt deveriam
ser levados em conta pelos psicanalistas.
E é preciso também que os psicanalistas se desloquem do
consultório para outros lugares?
Sim, claro. Hoje em dia os psicanalistas têm o maior
dos defeitos do judaísmo, eles vivem em guetos. Não
falam mais para o público, falam para o umbigo.
Betty Milan é escritora e psicanalista, autora de, entre outros, "O Papagaio e o Doutor" (Record).
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