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São Paulo, domingo, 26 de janeiro de 2003

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+ brasil 503 d.C.

Evaldo Cabral de Mello

A aventura intelectual de Boxer


Os historiadores dificilmente poderão ignorar o livro "O Império Marítimo Português", na medida em que a sua visão global de um império ultramarino abre caminho à perspectiva comparatista


Aos 60 e tantos anos, quando muitos historiadores recolhem as velas ou trocam as obras de longo curso pela cabotagem dos artigos e dos ensaios, C.R. Boxer ganhou o alto-mar. Depois de quatro décadas de estudo de aspectos específicos da expansão lusitana (a história de Macau, a presença portuguesa no Japão, o Brasil seiscentista e o domínio holandês, o Brasil de d. João 4º, o sistema municipal no ultramar português, as relações raciais e o papel das mulheres no "mundo que o português criou"), ele redigiu duas admiráveis sínteses de história ultramarina de povos europeus, "O Império Marítimo Neerlandês", publicado em 1965, e o "Império Marítimo Português", em 1969. Malgrado sua carreira no Exército britânico, iniciada na célebre academia de Sandhurst, Boxer tornou-se também um grande historiador naval, mercê do seu conhecimento dos aspectos técnicos da navegação, condição "sine qua non" para compreender o êxito e as limitações imperiais -exemplo que está a clamar por seguidores. Um eminente historiador lusitano confessava havia pouco sua preocupação com o fato de Portugal, que no século 20 dispôs de eminentes especialistas navais (Duarte Leite, Teixeira da Mota, Luís de Albuquerque, só para citar uns poucos), já não os possuir, pois os investigadores atuais tendem a se concentrar nos temas econômicos, sociais e ideológicos dos grandes descobrimentos. Segundo ele, o autêntico representante da historiografia naval de língua portuguesa é hoje um brasileiro egresso da marinha, Max Justo Guedes. Enquanto a palma pelo trabalho penoso cabe às longas horas silenciosas de investigação arquivística e à exposição ao fungo dos acervos, a síntese constitui a mais arriscada entre as tarefas historiográficas. Dependendo do estado do conhecimento de cada questão, a síntese pode ou se basear exclusivamente numa infra-estrutura monográfica ou lhe acrescentar o conhecimento direto das fontes. "O Império Marítimo Português" (Companhia das Letras) corresponde à segunda estratégia, sendo o resultado, como nos diz o autor, por um lado, de "40 anos de leitura, pesquisa e reflexão de tudo o que tem sido publicado sobre o assunto", de outro, "do trabalho intermitente realizado em muitos e importantes arquivos históricos" em Portugal como fora dele, pois, dada a amplitude do tema, nos anos 60 se carecia muito mais do que hoje de uma massa de investigações relativas a aspectos concretos. Que a publicação de "O Império Marítimo Português" date de 1969, ao passo que sua edição brasileira só apareça 33 anos depois (embora entrementes tivesse surgido uma edição portuguesa), levanta a questão da caducidade dos livros de história, os quais, tende-se a julgar, a passagem do tempo envelheceria como que automaticamente. Subjacente a esse raciocínio, acha-se, entre outros, o pressuposto de que a historiografia segue o destino de superação permanente da atividade científica. É óbvio que os livros de história envelhecem, mas o problema não pára aí: é preciso saber como e por que ele ocorre. A caducidade da obra historiográfica não pode ser assimilada estritamente à da obra científica, embora a história, não constituindo uma ciência no sentido estrito da expressão, seja uma disciplina intelectual que possui seus próprios métodos. O físico moderno não precisa ler Galileu para aprender mecânica -e provavelmente só o fará por curiosidade profissional ou então porque está engajado numa investigação de história científica. Mas não se pode conceber que o historiador do Renascimento não tenha lido Burckhardt, embora, desde a publicação da sua obra máxima, a erudição tenha revisto de cabo a rabo a história renascentista.

Arquivos devassados
O livro de história envelhece por diferentes motivos. Numa progressão segundo a frequência com que estes casos se verificam, o primeiro é o enriquecimento das fontes primárias à disposição do historiador. O descobrimento de um fundo documental que se ignorava pode subverter a concepção dominante acerca de determinado período ou episódio, seja para ampliá-la, seja para suplantar a noção vigente. Atualmente, são cada vez menores as chances de que um tema historiográfico venha a ser radicalmente revisto na esteira da disponibilização de um acervo ou de um texto desconhecidos, embora ainda se encontrem nos arquivos pesquisadores ingênuos em busca de documentos sensacionais que mudarão a história da história do Brasil, na crença de que ainda existam fontes com que ninguém topou, quando provavelmente elas já foram há muito divulgadas em alguma obscura revista. Nos nossos dias, outra razão de envelhecimento dos livros de história, a revisão historiográfica, ocorre amiúde a partir da bibliografia especializada, ou seja, graças à proliferação de ensaios, monografias e artigos, como os trabalhos que servirão de suporte à preparação da "História da Expansão Portuguesa", de autoria de uma equipe de especialistas dirigida por Francisco Bethencourt e Kirti Chaudhuri, trabalhos que escasseavam ou não possuíam o mesmo grau de rigor, ao tempo em que Boxer redigiu "O Império Marítimo Português". Daí ele se haver encontrado na necessidade de combinar o domínio das fontes primárias e das obras subsidiárias, verdadeira proeza intelectual.
Ainda outra causa mais frequente de envelhecimento, qualitativamente diferente das anteriores, é a modificação da perspectiva temporal do historiador, que o induz ao que Paul Veyne denominou "a ampliação do questionário", cujo exemplo mais conspícuo é a história da vida privada, das mulheres, das crianças, dos marginais etc.
A razão por que os livros de história envelhecem tem também a ver com o escopo da obra. Sob este aspecto, é óbvio que as sínteses, como "O Império Marítimo Português", são bem mais vulneráveis do que as obras especializadas, nas quais a erudição pode operar como antídoto, como demonstra a própria bibliografia boxeriana. Publicado em 1957, "Os Holandeses no Brasil" constitui ainda hoje o melhor resumo do período batavo, embora posteriormente tenham surgido estudos específicos, que abordaram o tema desde novos ângulos sem contudo invalidar o quadro que ali se expôs.
Os especialistas nesta ou naquela área de expansão lusitana podem considerar que o tratamento dado em "O Império Marítimo Português" aos assuntos da sua especialidade mereceria exame mais detido; e provavelmente têm razão. Mas dificilmente poderão ignorá-lo, na medida em que a visão global de um império ultramarino, de que até então não se dispunha, por inacreditável que pareça, abre caminho à perspectiva comparatista, preeminente na segunda parte do livro, perspectiva que permite rever, por sua vez, questões por muito tempo relegadas à estreiteza de textos especializados. Daí que a obra de Boxer continue a ser indispensável.
Há finalmente um argumento muito mais poderoso para explicar por que certos livros de história duram mais ou duram menos. Formulou-o Isaiah Berlin ao afirmar: "Se perguntarmos quais os historiadores que despertaram a admiração mais duradoura, concluiremos, penso, que eles não são nem os mais engenhosos nem os mais exatos nem sequer aqueles que atinam com fatos novos ou com insuspeitadas conexões causais, mas os que, como os romancistas de boa cepa, nos apresentam os homens, as sociedades ou as situações em várias dimensões e em vários níveis que se cruzam, escritores em cujos relatos as vidas humanas em suas relações com as outras e com o mundo objetivo são o que, quando nos sentimos especialmente lúcidos e imaginativos, sabemos que podem ser".

Caberia aduzir, correndo o perigo de parecer historiograficamente incorreto, que a formação literária do historiador voltou a ser hoje tão importante quanto o domínio dos métodos propriamente historiográficos, pois a linguagem escrita ainda é o meio mais amplo e permanente de comunicação.

Canhestros ou pedantes
Constata-se, porém, que, à medida que a história progride como disciplina, declina alarmantemente a qualidade da sua expressão literária. Há vários motivos para esse desequilíbrio, a começar pelas pretensões cientificistas induzidas pelo marxismo, pelo quantitativismo historiográfico e pelo predomínio da linguagem abstrusa de grande parte das ciências humanas. Na tentativa de se provarem igualmente rigorosos e igualmente científicos, os historiadores, esquecendo ou ignorando o que se deve entender propriamente por história científica, estão formulando mal e se exprimindo pior, mostrando-se ou canhestros ou pedantes.
É possível que haja também nesse fenômeno a influência da formação universitária, no sentido de que se pode entrar num curso de história como num curso de odontologia, isto é, sem nenhum contato prévio com ela, a não ser o superficial, do curso secundário. Os historiadores, que costumavam vir da literatura, vêm hoje da universidade; e, embora não se deva esperar que escrevam como os grandes mestres da língua nem desejar que recaiam na tentação beletrista, tem-se o direito de pedir que se expressem, como diziam os velhos professores de português, escorreitamente. Também sob esse aspecto há muito que aprender com a maneira de expor de Boxer, que, sem pretender a sofisticação literária, tinha o dom de submeter o inglês às exigências da expressão historiográfica, técnica que a esmerada tradução brasileira de "O Império Marítimo Português" soube transpor para nossa língua.

Evaldo Cabral de Mello é historiador, autor de, entre outros, "Um Imenso Portugal" (ed. 34) e "O Negócio do Brasil" (ed. Topbooks). Escreve regularmente na seção "Brasil 503 d.C.", do Mais!.


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