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São Paulo, domingo, 26 de janeiro de 2003

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A leste e a oeste do Éden

Juan José Saer

Que Deus tenha separado o céu e a terra, o dia e a noite, a terra e as águas, e tenha criado do nada a vegetação, as estrelas, os monstros marinhos e os seres vivos segundo suas espécies, e depois o homem à sua imagem e semelhança, e tudo isso em seis dias, é mais do que provável: é verossímil, não porque tenha ocorrido de verdade, mas porque o mito que o relata é coerente e, mesmo que não compartilhemos suas pautas de realidade, não se pode apontar nele nenhum sério anacronismo. Do ponto de vista narrativo, poderíamos destacar, no máximo, uma certa desordem na Criação, alguma falta de método e até de necessidade: um demiurgo que criou o universo a partir do nada também deve ser capaz de criá-lo de uma vez, num milésimo de segundo, tal como é agora, e não aos poucos, trabalhosamente, ao longo de uma exaustiva semana de esforços.
É com Caim e Abel e a leste do jardim do Éden que começam as complicações. Depois de cometer o fratricídio, quando as recriminações de Jeová o fazem tomar consciência do horror do seu crime, Caim exclama: "Quando estiver fugindo e vagueando pela terra, quem me encontrar matar-me-á" (Gênese, 4, 15). A cena é extraordinariamente intensa, mas, com os dados de que o leitor já dispõe sobre a Criação, ele sabe que Caim não corre o menor risco de ser assassinado, porque, depois de matar o irmão, ele é o único ser humano que resta no mundo. Isso não o impede de emigrar para leste do Éden, para um lugar chamado justamente "Errante" (Nod), nem de conhecer uma mulher e ter uma vasta descendência.
Mas não se deve cometer o erro, de inteligência e de gosto, de zombar das contradições de um mito. A partir da segunda metade do século 19, em seus monumentais tratados de mitologia comparada, Max Müller, Salomon Reinach e James George Frazer tentaram enquadrar a lógica oculta dos mitos em sistemas. No século 20, Claude Lévi-Strauss, Marcel Détienne e Jean-Pierre Vernant, entre muitos outros, dedicaram anos de reflexão minuciosa e exaustiva à mesma questão.
Não se trata aqui de indagar a lógica interna de certos mitos, e sim sua veracidade -mas somente quando pretendem passar por verdadeiros. O livro clássico de Erich Auerbach, "Mímesis - A Representação da Realidade na Literatura Ocidental" (1946, editado no Brasil pela Perspectiva), dedica o primeiro (e exemplar) capítulo à análise comparada de Homero e do Antigo Testamento.
Depois de examinar suas respectivas retóricas, Erich Auerbach explica a posição do leitor diante desses textos: "Pode-se abrigar facilmente objeções histórico-críticas quanto à Guerra de Tróia e aos erros de Ulisses e ainda assim experimentar, na leitura de Homero, o efeito que ele procurava; mas quem não crê na oferenda de Abraão não pode fazer do relato bíblico o uso para o qual foi destinado. É necessário ir mais longe. A pretensão de verdade da Bíblia não é somente muito mais urgente do que a de Homero, mas também é tirânica; exclui qualquer outra pretensão. O mundo dos relatos das Sagradas Escrituras não se contenta com a pretensão de ser uma realidade historicamente verdadeira -ela pretende ser o único mundo verdadeiro, destinado ao domínio exclusivo."


Se as intensas visões bíblicas repugnam muitas inteligências, é por causa do uso que se faz delas


Diante dessa exigência, é natural que as contradições dos mitos suscitem objeções. Boa parte do pensamento ocidental esteve em guerra surda ou declarada contra ela. Auerbach observa que, para certos intérpretes racionalistas das Escrituras, com os quais ele não parece concordar, o narrador dos relatos bíblicos devia mentir deliberadamente, pois estes "não procuram o nosso favor, como os de Homero, não nos lisonjeiam, para nos agradar e nos encantar -o que querem é nos dominar". Para Auerbach, também é plausível a opinião oposta, ou seja, a de que o autor desses relatos acreditava apaixonadamente neles. O que há de reprovável na comparação com Homero não é a descrição do narrador bíblico, e sim o tratamento que se dá àquele, talvez por razões didáticas. Na tradução sobre a qual trabalho, nesse trecho Homero é chamado de "mentiroso inofensivo, que mente para tentar nos agradar".
Se os textos homéricos são inofensivos é somente no sentido etimológico do termo, isto é, de que não nos ofendem, não nos chocam nem nos atacam, porque não tentam se impor como únicos, excluindo todos os demais com fins de dominação, pois não se pretendem ditados pelo mesmíssimo Senhor do Universo para que a espécie humana aceite seus dogmas como indiscutíveis. E, embora nada saibamos sobre quem os concebeu e quase nada a respeito da maneira como os cantos chegaram até nós, podemos inferir, pelo que sabemos de outros grandes narradores mais próximos do nosso tempo, que seu autor -ou seus autores- também acreditava apaixonadamente na profunda necessidade de suas histórias.
Mas Homero teve notórios contestadores, que questionavam justamente a veracidade dos seus relatos. Platão foi um deles. Não raro, o tom com que ele se refere a Homero destila certa condescendência. Muitos recordarão o famoso início do livro décimo da "República", quando Sócrates propõe não admitir nela, em nenhuma hipótese, a poesia imitativa: "Vou dizer-te em confiança, na certeza de que não irás delatar-me aos poetas trágicos nem aos outros imitadores. Parece-me que esse gênero de poesia é veneno para os que o ouvem, quando não prevenidos com seu antídoto, que consiste em saber dar o justo valor a tais coisas [...". É o que vou te dizer, posto que sinta a língua como travada de certa ternura e respeito que desde menino sinto para com Homero. Porque de Homero se pode dizer que é o precursor e o mestre de todos os poetas trágicos. Como, porém, meu respeito à verdade é maior que o que devo aos homens, cumpre-me explicar meu pensamento".
Pouco importa a verdade de uma história; o que conta é o uso que a sociedade faz dela. Se as intensas visões bíblicas repugnam muitas inteligências, é por causa da apropriação que se faz delas, com os fins mais diversos. Seus apropriadores as decretam como obrigatoriamente verdadeiras, não alegóricas nem simbólicas, e sim autênticas, afirmação que nenhuma mente crítica está disposta a aceitar. Também se poderia comprovar que, de um ponto de vista oposto, Platão excomunga Homero e os poetas trágicos -não com anátemas, obviamente, mas com ironia e certo desdém- por respeito à verdade. A verdade seria então o ópio do povo?
Uma narração não é verdadeira nem falsa; simplesmente é. O que leva muitos leitores a deixar de ler os relatos bíblicos não são os relatos propriamente ditos, mas o uso que se faz deles, ou até, como afirma Auerbach, a razão pela qual foram escritos. A terrível história de Caim e Abel é um mito universal, a matriz de uma situação humana que se repete sem cessar e se repetirá até o fim dos séculos; o sinal que Jeová lhe imprime para protegê-lo de eventuais vinganças talvez seja a filiação trágica que o texto atribui à espécie humana, ou apenas um inábil artifício narrativo para justificar o quinto capítulo do Gênese, em que se detalha a descendência de Adão até os dias em que o autor escreve. A segunda opção seria estranha ao relato, um acréscimo heterogêneo à sua essência com a única função de fazê-lo coincidir com uma suposta verdade histórica.
No fundo, a razão pela qual se acredita em Deus ou numa narração é a mesma: no enigmático fluir do tempo, na estranheza do próprio ser e na opacidade caótica do mundo, ambos oferecem uma aparência de realidade, um sentido possível, a inteligibilidade de uma ordem. A diferença é que, no primeiro caso, se trata de uma promessa que ninguém entre os humanos está autorizado a formular, ao passo que, no segundo, de um prazer vívido e imediato do qual participam a um só tempo a imaginação, as emoções e a inteligência.

Juan José Saer é escritor e ensaísta argentino, autor de, entre outros, "O Enteado" (ed. Iluminuras), "Ninguém Nada Nunca" e "A Pesquisa" (Companhia das Letras).
Tradução de Sergio Molina.


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