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Ponto de fuga
A lenda e os mitos
Roland Barthes fascinou um público muito vasto com
o poder de seus escritos teóricos. Ele partia, com estilo
sedutor, de objetos concretos, não para dissertar como
um especialista, mas para propor interpretações inesperadas. Soube, como poucos, mesclar suas experiências pessoais com o pensamento elaborado. Tratou de
autores e fenômenos muito diversos, desventrando-os,
pondo-os pelo avesso.
A psicanálise e o marxismo fizeram parte de sua formação. Foi distanciando-se deles em sua trajetória.
Conservou sempre, no entanto, uma atitude comum
àquelas duas formas de pensar: a desconfiança das aparências. Assim, em "Mythologies" ("Mitologias", Bertrand, 1999), série de crônicas fulgurantes reunidas em
livro, desmontou certos núcleos convencionais de representações, próprios à classe média.
Barthes era fascinado pela natureza da linguagem e,
mais ainda, por sistemas anexos e implícitos a ela, que,
por trás, suscitam valores específicos. Parasitas da linguagem, mostram-se capazes de desviá-la em benefício
próprio. Não são frontais, são oblíquos, são fraudes dissimuladas que tomam o aspecto de verdades. É isso o
que ele denomina mitos. Desvendar tais mecanismos
seria um combate contra os poderes descarados das mitologias. Diante do mito, que simplifica, sublinha e exalta, Barthes parece antes um nostálgico do insignificante, do não-significante, do grau zero não apenas da escrita, mas de todos os sistemas de significações.
Guru - Em Paris, o Centro Georges Pompidou (Beaubourg) apresenta uma exposição consagrada a Roland
Barthes. É um bricabraque, um caos, uma desordem,
como se, diante do mestre, nenhum discurso coerente
fosse possível. Tudo é alusivo, tudo é citação: o espectador é recebido pelo Citroën DS (em voz alta, essas letras
formam a palavra francesa déesse, deusa), que foi objeto
de análise por Barthes e foi capa da edição francesa de
"Mythologies". Depois, acumulam-se obras de arte, vídeos, documentos, de um modo ou de outro ligados a
Barthes. Suas célebres fichas de notas recobrem uma
parede, até o alto. Não foram dispostas ali para serem lidas, mas para serem veneradas como relíquias. Ou seja,
a mostra constrói e reforça um mito, no sentido que Roland Barthes dava à palavra. Ela afirma convenções culturais, ocultando qualquer faculdade heurística.
De modo involuntário e indireto, essa reverência quase religiosa pode suscitar, no entanto, um raciocínio
perverso. Há 30 ou 40 anos, quando os textos de Barthes
surgiram, cativavam sobretudo por um motivo: eram
revelações. Barthes desvendava os truques das mágicas.
Ao denunciá-los, porém, Barthes, com escrita irresistível, impunha aos seus fiéis uma única leitura, a sua. Era
uma verdade que emergia do avesso do avesso, do oculto, do invisível, forçando adesão. Era, no melhor sentido barthesiano, um mito.
Moda - Na chiquíssima Fundação Cartier, de Paris, a
exposição "O Que Acontece", organizada pelo pensador Paul Virilio, insere-se com facilidade nestes tempos
de agora, feitos de medos. Com duas instalações e vários vídeos, consagra-se a desastres de todo tipo. A catástrofe é posta em evidência, o percurso insiste nas fragilidades do mundo contemporâneo. Os traços alarmistas são, claramente, mais fortes que os reflexivos; os
indicadores apontam para uma evidência inegável e já
sabida; eles confortam sentimentos coletivos difusos
que o curador soube aproveitar.
Enxame - O último livro de Michael Crichton, "Prey"
("Presa", HarperCollins), inventa moléculas artificiais,
biônicas: microscópicos robôs predadores, conjugados
com microrganismos. Crichton, hábil em manipular a
narração, conduz o leitor pelo nariz. O livro é cheio de
"efeitos especiais", em provável previsão de futuro filme. Não importa. Ele apavora, ainda mais por seu caráter plausível. Atento às auroras da engenharia genética e
da informática que despontam, Crichton lembra uma
espécie de Júlio Verne apocalíptico.
Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br
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