São Paulo, domingo, 26 de fevereiro de 2006

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UM PAÍS DE SOM E FÚRIA

ESQUERDA ERRA AO CONSIDERAR A SEGURANÇA COMO UM "TEMA DA DIREITA", E VIOLÊNCIA FAZ O BRASILEIRO SER VISTO NO EXTERIOR COMO FESTIVO E AMEDRONTADO, DEFENDE GEÓGRAFO

DANIEL BUARQUE
DA REDAÇÃO


Condomínios de luxo, cercas eletrificadas não se justificam: as pessoas imitam um padrão

Um carro abandonado foi encontrado no último domingo numa rua do Rio de Janeiro com dois corpos retalhados dentro e uma cabeça sobre o capô. Alguns dias antes, uma tentativa malsucedida de invasão de traficantes à favela da Rocinha resultou na morte de pelo menos seis pessoas. Esses fatos sugerem um "clima de guerra civil" nas grandes cidades do país, "disseminando um forte sentimento de medo, de insegurança", diz Marcelo Lopes de Souza, geógrafo da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Foi essa constatação que o levou, em artigo recente, a cunhar o termo "fobópole" -a convivência com o medo no espaço das cidades.
"Clima de Guerra Civil?", que está incluído no livro "Que País É Esse?" (org. Edu Silvestre de Albuquerque, ed. Globo), é a produção mais recente desse especialista em estudos urbanos que coordena o Núcleo de Pesquisas sobre Desenvolvimento Sócio-Espacial da UFRJ e há mais de 20 anos analisa a questão da segurança pública e da violência.
Em entrevista dada à Folha por telefone e e-mail, Lopes de Souza também rebate o que chama de "clichê" da maior integração social durante o Carnaval. O geógrafo, que morou na Alemanha entre os anos de 1989 e 1993, quando terminou o doutorado e foi pesquisador-visitante em universidades de Tübingen e Londres, diz que tal estereótipo sobre o Brasil tem perdido espaço em todo o mundo pela percepção de que se trata de um país violento, ao mesmo tempo alegre e amedrontado.
Autor também de "O Desafio Metropolitano" (ed. Bertrand), ele aponta excessos nas reações histéricas das elites e diz que é importante não simplificar a discussão: é preciso entender que o "clima de conflito" não comporta rótulos de mocinhos nem de bandidos.

Folha - Há uma percepção difusa na sociedade brasileira de que o Carnaval promove o intercâmbio entre as diferentes classes sociais. Trata-se de uma completa mistificação?
Marcelo Lopes de Souza -
Que "intercâmbio" seria esse? Que frutos, que coisas construtivas e duradouras ele deixa? Não é, talvez, nem apenas uma ilusão. É a caricatura de uma ilusão. Um auto-engano (como "democracia racial"), que vai, aliás, perdendo credibilidade.
O "grande Carnaval", o das grandes escolas, é algo muito organizado e caro e serve, entre muitos outros aspectos, de plataforma de exibição pública para "celebridades" ou candidatos e candidatas a "celebridades". É óbvio que não é só isso; nem pretendo minimizar a alegria, a legitimidade e a grande beleza do esforço de muita gente para poder sair na avenida e representar a sua escola.
Mas confundir "intercâmbio" com a presença de atores e modelos como destaques de escolas ou com o fato de a classe média e elite assistirem aos desfiles é um equívoco brutal. O consumo de elementos da cultura popular pela classe média e elite no Brasil coexiste com a perpetuação das desigualdades sociais.

Folha - A violência tem se consolidado no exterior como representação tipificada do Brasil?
Lopes de Souza -
Falar em "traço da brasilidade" seria o mesmo que dizer que a violência endêmica seria uma "característica cultural", acrescentando mais um preconceito ao clichê. O Brasil, no exterior, sempre foi associado muito mais ao clichê oposto, o do homem pacato e alegre, representação que se construiu historicamente em uma época em que a violência urbana realmente era menor. E essa representação é muito mediada pela imagem que se tem de alguns lugares, como o Rio. A festa e a alegria fazem parte de uma imagem que, há muito tempo, se tem a nosso respeito lá fora.
Desde o final dos anos 80, início dos 90, o noticiário sobre a violência urbana brasileira começou a chegar na Europa, o que vem se intensificando ao longo desses 15 anos. O estereótipo acaba, portanto, se tornando até mesmo contraditório: um povo alegre, simpático, brincalhão, mas ao mesmo tempo amedrontado, vivendo em cidades violentas, onde há desigualdade e volta e meia acontecem chacinas...

Folha - O que o sr. acha que de fato pode ser feito para combater a excessiva criminalidade?
Lopes de Souza -
O que se está a entender como soluções "utópicas"? Essa é uma palavra muito usada e abusada, com freqüência empregada sempre que se chega perto da exigência de transformações estruturais. O "pragmático" seria, assim, o conjunto de soluções institucionais, seja na versão "bandido bom é bandido morto" (penas mais duras, pena de morte, mais prisões, prisões mais seguras, mais policiais etc.), seja na versão mais branda e arejada ("policiamento comunitário", estratégias "preventivas" etc.).
Não que, realisticamente, não seja importante discutir temas como as possibilidades de reforma do aparato policial, do sistema prisional etc. Aliás, um dos equívocos habituais da esquerda é recusar, simplisticamente, o debate em torno das estratégias de segurança pública, pelo fato de ser, na opinião de muitos, um "tema da direita", portanto um tabu.
Com isso, o que de fato ocorre é que os setores mais conservadores passam a ter uma desproporcional presença nesse debate. Quase todo mundo adora uma solução simples e fácil: algo que se possa embrulhar como uma fórmula salvadora ou soe como um slogan.
Lamento, mas isso deve ser exorcizado. Problemas sócio-espaciais complexos não se prestam a interpretações monocausais e repudiam "receitas" simplistas. Um enfrentamento minimamente conseqüente da problemática da (in)segurança pública e da criminalidade exige uma combinação de medidas de vários tipos. E muita coragem. E perspicácia para perceber o seguinte: o Brasil não está sozinho, os problemas que se manifestam no Rio ou em São Paulo têm causas que são, em parte, internacionais.
Só vou mencionar um tema: a lavagem de dinheiro e suas conexões com o sistema financeiro internacional. Isso dá suporte ao tráfico de drogas e a muitas outras atividades ilícitas. E, independentemente do prefeito, do governador e do presidente da República (estamos sempre buscando indivíduos salvadores e subestimando as estruturas), isso vai continuar gerando os seus efeitos.

Folha - Pode-se dizer que a violência urbana no Brasil assemelha-se à de uma guerra civil?
Lopes de Souza -
A expressão "(clima de) guerra civil" vem sendo usada pela imprensa desde, no mínimo, o final dos anos 80 e o começo dos anos 90. De início, eu simplesmente a recusei, por seus evidentes sensacionalismo e falta de rigor. No entanto, à medida que a década de 90 avançava, foi ficando cada vez mais claro para mim que repudiar essa expressão, pura e simplesmente, seria um equívoco.
De fato, muito embora não estejamos diante de uma situação, por assim dizer, clássica de guerra civil, com um grupo (uma etnia, uma "vanguarda revolucionária" ou o que quer que seja) enfrentando, com alguma base programática, o aparelho de Estado, com o objetivo de "tomar o poder", o quadro hoje vivenciado no Rio e em São Paulo vai além de uma criminalidade ordinária localizada e em que a opinião pública tem a sensação de que a polícia pode dar conta.
Independentemente do aspecto "objetivo" e do rigor conceitual, grande parte da população nutre (estimulada pela mídia, de modo complexo) o sentimento de que se vive "algo como uma guerra civil" ou de que há um "clima de guerra civil". No Rio de Janeiro, em São Paulo e cada vez mais em outras metrópoles e cidades também, o que há é uma teia complexa de criminalidade, envolvendo diversas "redes" em escala local (vinculadas a "redes" em outras escalas) e vinculadas a diferentes modalidades de crimes. O tráfico de drogas de varejo é apenas o mais espetacular.

Folha - Esse sentimento de medo de que o sr. fala ao cunhar o termo "fobópole" é algo novo?
Lopes de Souza -
O medo de ser vítima de um crime violento, como homicídio ou estupro, não tem nada de novo. Até mesmo as ruas de Roma na Antiguidade, no auge de seu brilho civilizatório, eram inseguras para mulheres desacompanhadas.
Tomando o Brasil como exemplo, é possível verificar, ao considerarmos as taxas de crimes tais como o homicídio, que tem havido um claro aumento desde os anos 70 e 80.
Além disso, comparando com um período anterior a esse, constata-se que, naquela época, um crime violento ganhava grande repercussão, as pessoas passavam às vezes anos comentando o assunto. Hoje em dia, as pessoas estão "anestesiadas" pela banalização da violência, crimes horripilantes acontecem aos magotes e é como se nos tivéssemos acostumado com isso.
É como se a dose de crueldade tivesse de ser cada vez maior para poder chocar. E, como entre os crimes reais e a percepção pública da insegurança há várias "mediações" ou "filtros", muitas vezes o problema é ainda por cima "amplificado" e "distorcido", o que só colabora para a generalização do medo e até para reações histéricas.

Folha - Como assim, "amplificação" e "distorção"?
Lopes de Souza -
Embora um aumento da taxa de certos crimes violentos possa ser verificada em muitos lugares nas últimas décadas, não há um padrão uniforme de comportamento dessas taxas (como se elas crescessem na mesma velocidade e com absoluta constância em todos os lugares) e muito menos uma correspondência perfeita entre a criminalidade violenta "objetiva" e a sensação de insegurança.
Às vezes algumas taxas até diminuem, mas as pessoas já ficaram tão impressionadas pela abordagem da mídia que isso faz com que se sinta um pavor desproporcional. Condomínios de luxo, cercas eletrificadas, muito disso não se justifica. As pessoas estão emulando um padrão, mesmo em cidades menores e menos violentas.
Veja bem, não estou dizendo que o sentimento de insegurança é apenas um delírio coletivo sem base real. Estou, somente, sublinhando que as coisas não são tão simples quanto parecem ser à primeira vista, e não falta quem tenha interesse, direto ou indireto, na perpetuação e na amplificação do medo.

Folha - E quem tem interesse nisso?
Lopes de Souza -
Por exemplo, dentro daquilo que venho chamando de "militarização da questão urbana", o próspero "mercado da segurança", com sua palheta de produtos indo de "condomínios fechados" e blindagem de carros a serviços de segurança privada e à venda de armas.

Folha - Há particularidades brasileiras no caso da violência urbana?
Lopes de Souza -
Há, em cada escala -continental, nacional, regional, local-, sempre alguma particularidade. Comparemos a criminalidade violenta em Calcutá com, digamos, a do Rio de Janeiro ou de São Paulo. Aquele tipo de criminalidade imputável, ainda que de maneira indireta, a problemas socioeconômicos, é muitíssimo mais significativo no Brasil que na Índia. E não porque a pobreza no Brasil seja maior, pois o que ocorre é bem o contrário.
Ocorre que sempre há o filtro ou a mediação da cultura e das instituições, e não uma relação simples entre pobreza e violência. Dentro do Brasil, mesmo com a influência às vezes "pasteurizadora" da mídia, há muitas especificidades locais. Mesmo que se verifique que as taxas de homicídios, por exemplo, cresceram, nas décadas de 80 e 90, em todas as capitais, sempre há especificidades locais interferindo.

Folha - Ao tratar do ingresso de jovens em atividades criminosas, o sr. aponta uma "estratégia de sobrevivência". Essa visão não é condescendente com a violência? Não é perigoso dizer que os traficantes são "oprimidos que oprimem outros oprimidos"?
Lopes de Souza -
Eu não vejo o que pode haver de "condescendente" nessa visão.
Aliás, essa frase que venho utilizando me parece apropriada justamente porque evita, simultaneamente, duas grandes deformações interpretativas: uma, a de que os "bandidos", os "elementos", seriam "animais", "feras", "monstros"; outra, a de que suas ações escapariam à nossa esfera de julgamento ético, já que eles seriam apenas "produtos de seu meio" (e, ainda por cima, há os que, por razões variadas, minimizam os estragos que a presença -muitas vezes tirânica- do tráfico de varejo acarreta para os espaços segregados a partir dos quais eles operam).
Ao vê-los como "monstros", não se vê ou se subestima que eles são, em última instância, consumidos por uma engrenagem muito, muitíssimo maior (são "bucha de canhão", peças menores), e que o seu leque de "escolhas" é muitíssimo restrito (não estamos falando, afinal, de jovens da classe média escolhendo entre o vestibular para direito ou medicina). Além disso, aqueles indivíduos, se vistos como "animais" (e é claro que muitos se transformam em pessoas capazes de perpetrarem atos de crueldade), deixarão de ser vistos como aquilo que foram e ainda são: filhos de alguém, irmãos de alguém, netos de alguém.
Por qual "máquina de moer gente" passaram? Ou vai se adotar o discurso (racista) que tem como pano de fundo ideológico implícito o sentimento de que "aquela gente já nasce com tendências criminosas"? Esse é o ultraconservadorismo que se acha diluído entre grande parte da classe média e das elites no Brasil.
"Estratégia de sobrevivência" é uma expressão que não traz o pressuposto de que tal ou qual estratégia seja a única possível. Não se trata de vitimizar -de um jeito piegas ou simplista, que elimina qualquer responsabilidade individual- aqueles que, armados, matam e tiranizam.
Mas, no caso da juventude pobre, o leque de "escolhas" não é grande. É estreitíssimo. É claro que um cínico poderia dizer: "Melhor um salário mínimo honrado que vender drogas". As nossas classes médias (e elites), que adoram se pôr no papel de "vítima acuada" (e a mídia, claro, lhe é particularmente simpática, pois é, ela própria, a caixa de ressonância dessa classe média), têm "moral" para cobrar isso?!...


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