|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
UM PAÍS DE SOM E FÚRIA
ESQUERDA ERRA AO CONSIDERAR A SEGURANÇA COMO UM "TEMA
DA DIREITA", E VIOLÊNCIA FAZ O BRASILEIRO SER VISTO NO EXTERIOR COMO FESTIVO E AMEDRONTADO, DEFENDE GEÓGRAFO
DANIEL BUARQUE
DA REDAÇÃO
Condomínios de luxo, cercas eletrificadas não se justificam: as pessoas imitam um padrão
|
Um carro abandonado foi
encontrado no último domingo numa rua do Rio de
Janeiro com dois corpos
retalhados dentro e uma cabeça sobre o capô. Alguns dias antes, uma
tentativa malsucedida de invasão de
traficantes à favela da Rocinha resultou na morte de pelo menos seis pessoas. Esses fatos sugerem um "clima
de guerra civil" nas grandes cidades
do país, "disseminando um forte
sentimento de medo, de insegurança", diz Marcelo Lopes de Souza,
geógrafo da Universidade Federal
do Rio de Janeiro.
Foi essa constatação que o levou,
em artigo recente, a cunhar o termo
"fobópole" -a convivência com o
medo no espaço das cidades.
"Clima de Guerra Civil?", que está
incluído no livro "Que País É Esse?"
(org. Edu Silvestre de Albuquerque,
ed. Globo), é a produção mais recente desse especialista em estudos urbanos que coordena o Núcleo de
Pesquisas sobre Desenvolvimento
Sócio-Espacial da UFRJ e há mais de
20 anos analisa a questão da segurança pública e da violência.
Em entrevista dada à Folha por telefone e e-mail, Lopes de Souza também rebate o que chama de "clichê"
da maior integração social durante o
Carnaval. O geógrafo, que morou na
Alemanha entre os anos de 1989 e
1993, quando terminou o doutorado
e foi pesquisador-visitante em universidades de Tübingen e Londres,
diz que tal estereótipo sobre o Brasil
tem perdido espaço em todo o mundo pela percepção de que se trata de
um país violento, ao mesmo tempo
alegre e amedrontado.
Autor também de "O Desafio Metropolitano" (ed. Bertrand), ele
aponta excessos nas reações histéricas das elites e diz que é importante
não simplificar a discussão: é preciso
entender que o "clima de conflito"
não comporta rótulos de mocinhos
nem de bandidos.
Folha - Há uma percepção difusa na
sociedade brasileira de que o Carnaval promove o intercâmbio entre as
diferentes classes sociais. Trata-se de
uma completa mistificação?
Marcelo Lopes de Souza - Que "intercâmbio" seria esse? Que frutos,
que coisas construtivas e duradouras ele deixa? Não é, talvez, nem apenas uma ilusão. É a caricatura de
uma ilusão. Um auto-engano (como
"democracia racial"), que vai, aliás,
perdendo credibilidade.
O "grande Carnaval", o das grandes escolas, é algo muito organizado
e caro e serve, entre muitos outros
aspectos, de plataforma de exibição
pública para "celebridades" ou candidatos e candidatas a "celebridades". É óbvio que não é só isso; nem
pretendo minimizar a alegria, a legitimidade e a grande beleza do esforço de muita gente para poder sair na
avenida e representar a sua escola.
Mas confundir "intercâmbio" com
a presença de atores e modelos como destaques de escolas ou com o
fato de a classe média e elite assistirem aos desfiles é um equívoco brutal. O consumo de elementos da cultura popular pela classe média e elite
no Brasil coexiste com a perpetuação das desigualdades sociais.
Folha - A violência tem se consolidado no exterior como representação tipificada do Brasil?
Lopes de Souza - Falar em "traço da
brasilidade" seria o mesmo que dizer que a violência endêmica seria
uma "característica cultural", acrescentando mais um preconceito ao
clichê. O Brasil, no exterior, sempre
foi associado muito mais ao clichê
oposto, o do homem pacato e alegre,
representação que se construiu historicamente em uma época em que a
violência urbana realmente era menor. E essa representação é muito
mediada pela imagem que se tem de
alguns lugares, como o Rio. A festa e
a alegria fazem parte de uma imagem que, há muito tempo, se tem a
nosso respeito lá fora.
Desde o final dos anos 80, início
dos 90, o noticiário sobre a violência
urbana brasileira começou a chegar
na Europa, o que vem se intensificando ao longo desses 15 anos. O estereótipo acaba, portanto, se tornando até mesmo contraditório: um povo alegre, simpático, brincalhão,
mas ao mesmo tempo amedrontado, vivendo em cidades violentas,
onde há desigualdade e volta e meia
acontecem chacinas...
Folha - O que o sr. acha que de fato
pode ser feito para combater a excessiva criminalidade?
Lopes de Souza - O que se está a entender como soluções "utópicas"?
Essa é uma palavra muito usada e
abusada, com freqüência empregada sempre que se chega perto da exigência de transformações estruturais. O "pragmático" seria, assim, o
conjunto de soluções institucionais,
seja na versão "bandido bom é bandido morto" (penas mais duras, pena de morte, mais prisões, prisões
mais seguras, mais policiais etc.), seja na versão mais branda e arejada
("policiamento comunitário", estratégias "preventivas" etc.).
Não que, realisticamente, não seja
importante discutir temas como as
possibilidades de reforma do aparato policial, do sistema prisional etc.
Aliás, um dos equívocos habituais
da esquerda é recusar, simplisticamente, o debate em torno das estratégias de segurança pública, pelo fato de ser, na opinião de muitos, um
"tema da direita", portanto um tabu.
Com isso, o que de fato ocorre é
que os setores mais conservadores
passam a ter uma desproporcional
presença nesse debate. Quase todo
mundo adora uma solução simples e
fácil: algo que se possa embrulhar
como uma fórmula salvadora ou soe
como um slogan.
Lamento, mas isso deve ser exorcizado. Problemas sócio-espaciais
complexos não se prestam a interpretações monocausais e repudiam
"receitas" simplistas. Um enfrentamento minimamente conseqüente
da problemática da (in)segurança
pública e da criminalidade exige
uma combinação de medidas de vários tipos. E muita coragem. E perspicácia para perceber o seguinte: o
Brasil não está sozinho, os problemas que se manifestam no Rio ou
em São Paulo têm causas que são,
em parte, internacionais.
Só vou mencionar um tema: a lavagem de dinheiro e suas conexões
com o sistema financeiro internacional. Isso dá suporte ao tráfico de
drogas e a muitas outras atividades
ilícitas. E, independentemente do
prefeito, do governador e do presidente da República (estamos sempre buscando indivíduos salvadores
e subestimando as estruturas), isso
vai continuar gerando os seus efeitos.
Folha - Pode-se dizer que a violência
urbana no Brasil assemelha-se à de
uma guerra civil?
Lopes de Souza - A expressão "(clima de) guerra civil" vem sendo usada pela imprensa desde, no mínimo,
o final dos anos 80 e o começo dos
anos 90. De início, eu simplesmente
a recusei, por seus evidentes sensacionalismo e falta de rigor. No entanto, à medida que a década de 90
avançava, foi ficando cada vez mais
claro para mim que repudiar essa
expressão, pura e simplesmente, seria um equívoco.
De fato, muito embora não estejamos diante de uma situação, por assim dizer, clássica de guerra civil,
com um grupo (uma etnia, uma
"vanguarda revolucionária" ou o
que quer que seja) enfrentando, com
alguma base programática, o aparelho de Estado, com o objetivo de "tomar o poder", o quadro hoje vivenciado no Rio e em São Paulo vai além
de uma criminalidade ordinária localizada e em que a opinião pública
tem a sensação de que a polícia pode
dar conta.
Independentemente do aspecto
"objetivo" e do rigor conceitual,
grande parte da população nutre
(estimulada pela mídia, de modo
complexo) o sentimento de que se
vive "algo como uma guerra civil"
ou de que há um "clima de guerra civil". No Rio de Janeiro, em São Paulo
e cada vez mais em outras metrópoles e cidades também, o que há é
uma teia complexa de criminalidade, envolvendo diversas "redes" em
escala local (vinculadas a "redes" em
outras escalas) e vinculadas a diferentes modalidades de crimes. O tráfico de drogas de varejo é apenas o
mais espetacular.
Folha - Esse sentimento de medo de
que o sr. fala ao cunhar o termo "fobópole" é algo novo?
Lopes de Souza - O medo de ser vítima de um crime violento, como
homicídio ou estupro, não tem nada
de novo. Até mesmo as ruas de Roma na Antiguidade, no auge de seu
brilho civilizatório, eram inseguras
para mulheres desacompanhadas.
Tomando o Brasil como exemplo,
é possível verificar, ao considerarmos as taxas de crimes tais como o
homicídio, que tem havido um claro
aumento desde os anos 70 e 80.
Além disso, comparando com um
período anterior a esse, constata-se
que, naquela época, um crime violento ganhava grande repercussão,
as pessoas passavam às vezes anos
comentando o assunto. Hoje em dia,
as pessoas estão "anestesiadas" pela
banalização da violência, crimes
horripilantes acontecem aos magotes e é como se nos tivéssemos acostumado com isso.
É como se a dose de crueldade tivesse de ser cada vez maior para poder chocar. E, como entre os crimes
reais e a percepção pública da insegurança há várias "mediações" ou
"filtros", muitas vezes o problema é
ainda por cima "amplificado" e "distorcido", o que só colabora para a
generalização do medo e até para
reações histéricas.
Folha - Como assim, "amplificação"
e "distorção"?
Lopes de Souza - Embora um aumento da taxa de certos crimes violentos possa ser verificada em muitos lugares nas últimas décadas, não
há um padrão uniforme de comportamento dessas taxas (como se elas
crescessem na mesma velocidade e
com absoluta constância em todos
os lugares) e muito menos uma correspondência perfeita entre a criminalidade violenta "objetiva" e a sensação de insegurança.
Às vezes algumas taxas até diminuem, mas as pessoas já ficaram tão
impressionadas pela abordagem da
mídia que isso faz com que se sinta
um pavor desproporcional. Condomínios de luxo, cercas eletrificadas,
muito disso não se justifica. As pessoas estão emulando um padrão,
mesmo em cidades menores e menos violentas.
Veja bem, não estou dizendo que o
sentimento de insegurança é apenas
um delírio coletivo sem base real. Estou, somente, sublinhando que as
coisas não são tão simples quanto
parecem ser à primeira vista, e não
falta quem tenha interesse, direto ou
indireto, na perpetuação e na amplificação do medo.
Folha - E quem tem interesse nisso?
Lopes de Souza - Por exemplo, dentro daquilo que venho chamando de
"militarização da questão urbana", o
próspero "mercado da segurança",
com sua palheta de produtos indo
de "condomínios fechados" e blindagem de carros a serviços de segurança privada e à venda de armas.
Folha - Há particularidades brasileiras no caso da violência urbana?
Lopes de Souza - Há, em cada escala
-continental, nacional, regional,
local-, sempre alguma particularidade. Comparemos a criminalidade
violenta em Calcutá com, digamos, a
do Rio de Janeiro ou de São Paulo.
Aquele tipo de criminalidade imputável, ainda que de maneira indireta,
a problemas socioeconômicos, é
muitíssimo mais significativo no
Brasil que na Índia. E não porque a
pobreza no Brasil seja maior, pois o
que ocorre é bem o contrário.
Ocorre que sempre há o filtro ou a
mediação da cultura e das instituições, e não uma relação simples entre pobreza e violência. Dentro do
Brasil, mesmo com a influência às
vezes "pasteurizadora" da mídia, há
muitas especificidades locais. Mesmo que se verifique que as taxas de
homicídios, por exemplo, cresceram, nas décadas de 80 e 90, em todas as capitais, sempre há especificidades locais interferindo.
Folha - Ao tratar do ingresso de jovens em atividades criminosas, o sr.
aponta uma "estratégia de sobrevivência". Essa visão não é condescendente com a violência? Não é perigoso
dizer que os traficantes são "oprimidos que oprimem outros oprimidos"?
Lopes de Souza - Eu não vejo o que
pode haver de "condescendente"
nessa visão.
Aliás, essa frase que venho utilizando me parece apropriada justamente porque evita, simultaneamente, duas grandes deformações
interpretativas: uma, a de que os
"bandidos", os "elementos", seriam
"animais", "feras", "monstros"; outra, a de que suas ações escapariam à
nossa esfera de julgamento ético, já
que eles seriam apenas "produtos de
seu meio" (e, ainda por cima, há os
que, por razões variadas, minimizam os estragos que a presença
-muitas vezes tirânica- do tráfico
de varejo acarreta para os espaços
segregados a partir dos quais eles
operam).
Ao vê-los como "monstros", não
se vê ou se subestima que eles são,
em última instância, consumidos
por uma engrenagem muito, muitíssimo maior (são "bucha de canhão",
peças menores), e que o seu leque de
"escolhas" é muitíssimo restrito
(não estamos falando, afinal, de jovens da classe média escolhendo entre o vestibular para direito ou medicina). Além disso, aqueles indivíduos, se vistos como "animais" (e é
claro que muitos se transformam
em pessoas capazes de perpetrarem
atos de crueldade), deixarão de ser
vistos como aquilo que foram e ainda são: filhos de alguém, irmãos de
alguém, netos de alguém.
Por qual "máquina de moer gente"
passaram? Ou vai se adotar o discurso (racista) que tem como pano de
fundo ideológico implícito o sentimento de que "aquela gente já nasce
com tendências criminosas"? Esse é
o ultraconservadorismo que se acha
diluído entre grande parte da classe
média e das elites no Brasil.
"Estratégia de sobrevivência" é
uma expressão que não traz o pressuposto de que tal ou qual estratégia
seja a única possível. Não se trata de
vitimizar -de um jeito piegas ou
simplista, que elimina qualquer responsabilidade individual- aqueles
que, armados, matam e tiranizam.
Mas, no caso da juventude pobre,
o leque de "escolhas" não é grande. É
estreitíssimo. É claro que um cínico
poderia dizer: "Melhor um salário
mínimo honrado que vender drogas". As nossas classes médias (e elites), que adoram se pôr no papel de
"vítima acuada" (e a mídia, claro, lhe
é particularmente simpática, pois é,
ela própria, a caixa de ressonância
dessa classe média), têm "moral" para cobrar isso?!...
Texto Anterior: A invenção do carnaval Próximo Texto: Os dez + Índice
|