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A fábrica de sonhos do novo mercado
Robert Kurz
Um conceito faz carreira: "nova economia". Incubado nos Estados Unidos pelos agentes financeiros e analistas da Bolsa, essa duvidosa invenção terminológica obteve em pouquíssimo tempo triunfos fulminantes em todo o mundo. Num certo sentido ele se refere sobretudo à específica economia vodu da última potência mundial: lá, supostamente, não mais hão de vigorar as normas contemporâneas da economia política. O ciclo conjuntural, dizem, estaria extinto da mesma forma que a inflação.
É fácil constatar que a durável conjuntura norte-americana, fruto de um sortilégio de necromancia em meio ao subemprego e à miséria, só é possível por meio do permanente afluxo de liquidez do resto do mundo, beneficiado pela posição de destaque do dólar como moeda universal no contexto de um capitalismo-cassino global e especulativo.
É justamente esse precário nexo que os discípulos do céu financeiro pós-moderno, otimistas por natureza, não querem admitir. Quanto mais eles se apartam da realidade, mais confiantes ficam. Eis por que a maior bolha econômica de todos os tempos nos Estados Unidos é alçada à dignidade de "nova economia", incumbida da criação de um modelo global que sirva de exemplo a ser imitado.
Expectativas vazias
Mas, se a bolha de sabão deve deixar de ser uma bolha de sabão, tendo a enorme capitalização da Bolsa de servir como sintoma de um igualmente enorme surto de crescimento real, então também deve se apontar qual setor da produção irá de fato suster com seu conteúdo material a nova prosperidade centenária. Embaraçoso verificar que os sintomas espirituais do capitalismo financeiro já são gestados há um tempo demasiado longo, sem que o novo semblante material em que o capital possa novamente se corporificar em grandes dimensões ainda tenha sido divisado. Desde os anos 80, o curso ascendente da Bolsa é justificado com alusões a novos conteúdos produtivos, que supostamente abrigariam o potencial decisivo para a conquista de novos horizontes. Pena que esses conteúdos tenham de ser substituídos a cada dois ou três anos, já que as previsões nunca se confirmam.
Primeiro foi a revolução microeletrônica na indústria, que (segundo a "teoria das grandes ondas") inauguraria uma nova dinâmica de crescimento e sucederia às "velhas" e esgotadas indústrias do século 20. Mas a produção de microchips e computadores pessoais não fez jus às esperanças econômicas. Essa nova indústria não foi capaz de ombrear, nem no tocante à criação de emprego nem à criação de valor, com a magnificência da indústria automobilística ou eletrônica durante o boom posterior à Segunda Grande Guerra.
Economias em ruínas
Pelo contrário, os potenciais de automatização e racionalização ligados à microeletrônica suprimiram vastos setores ocupacionais e jugularam assim o poder de compra social; simultaneamente, eles lançaram na ruína economias nacionais inteiras, que por falta de capital foram incapazes de municiar suas indústrias com novas tecnologias. Os novos mercados fomentados pela indústria microeletrônica foram menores que o desastroso retardo do crescimento, induzido pela mesma indústria, nos antigos mercados.
Melhor sorte não teve a esperança, já velha de décadas, na "sociedade pós-industrial de serviços". Os serviços pessoais inferiores, como os de engraxate e ama-seca, não puderam ingressar na acumulação de capital e permaneceram, além disso, tolhidos pela rápida contração da classe média; as empresas capitalistas de serviços, como por exemplo o McDonald's ou a indústria de turismo, tampouco foram capazes de compensar em termos sociais ou econômicos, apesar de sua dinâmica de crescimento, a crise industrial.
Por fim, os próprios serviços nobres, vinculados à indústria, ficaram abaixo das expectativas. Com base no "outsourcing", menos empregos novos foram criados e mais empregos velhos foram degradados e depreciados; e, quanto mais indústrias fecham as portas ou são enxutas pelas fusões, menor é logicamente o crescimento dos setores de serviços voltados a essas indústrias ou delas dependentes.
Em paralelo aos paradigmas das novas indústrias microeletrônicas e da suposta sociedade pós-industrial, novas esperanças foram depositadas na "era do Pacífico", com seus vários dragões e pequenos tigres. De acordo com essa expectativa, a transformação estrutural e a transferência do capital para novos setores teriam sido substituídas pela expansão espacial do desenvolvimento capitalista em escala planetária: ao contrário de outras regiões do mundo, assim se pensou, os países do Sudeste asiático lograram recuperar o atraso em relação aos ocidentais e ascenderam à primeira divisão do mercado global. Com sua exuberante dinâmica de crescimento econômico, eles serviriam de locomotiva para a languescente economia real do planeta.
Mas o volume absoluto do crescimento asiático era modesto demais para poder assumir esse papel e, em 1997, esfumou-se na grande crise asiática todo o sonho da "era do Pacífico". Desde então, os antigos depositários asiáticos da esperança ocidental acham-se sentados sobre gigantescas montanhas de dívidas.
Com isso tornamos ao ponto de partida. Os conteúdos materiais esperados e fantasiados para um novo boom centenário da economia real não puderam ser demonstrados a contento. A exemplo de antes, trata-se de um crescimento ilusório, sustentado unicamente pela contínua ascensão do curso das ações tanto no centro especulativo dos Estados Unidos quanto no Sudeste asiático, na Europa e na América Latina. Mas a admissão de que essa bolha é de fato uma bolha seria um fator suficiente para que ela estourasse. Por isso a fantasia do otimismo dogmático teve de se fortalecer para substituir os flancos mais castigados da esperança por um novo paradigma.
Quase em simultâneo à "débâcle" asiática, teve início o falatório sobre as ditas "altas tecnologias" como reduto do "verdadeiro" crescimento futuro. O nome é capcioso, pois afinal a "high-tech" já perpassava todo o espectro das antigas indústrias e serviços. O que agora deve constituir o novo conteúdo material da "nova economia" são quase exclusivamente técnicas e serviços específicos para a Internet e dentro da Internet.
Numa palavra, a Internet é elevada a último bastião da economia real. Os paradigmas já arruinados da "nova tecnologia" e da "sociedade de serviços" são adicionados como ingredientes para requentar o prato. O futuro milagre econômico se desenrolará na "world wide web", mas a dinâmica de crescimento da economia real deverá paradoxalmente extravasar o espaço eletrônico virtual.
Mais-valia na rede
E essa nova crença milagrosa será propalada em tons ainda mais estentóreos que todas as outras. Os eufóricos de plantão de todos os países já vislumbram a aurora do suposto capitalismo internauta, no qual um "total webbased management" delicia-se com a "mais-valia na página da rede" (nas palavras da revista alemã "Wirtschaftswoche"). "Todos têm de usar a Internet", opinou recentemente o chanceler alemão Gerhard Schroeder, por ocasião da abertura da feira de computadores Cebit.
Quais fundamentos materiais podemos conceder a esse novo e promissor capitalismo internauta? Nos anos 90, de fato, o uso da Internet expandiu-se vertiginosamente. A questão, porém, é saber a grandeza do potencial de crescimento econômico real que pode ser calculado.
As tecnologias específicas da Internet consistem principalmente de softwares: os "usuários" precisam de instrumentos de busca e outros expedientes para poder "surfar" na rede global e filtrar informações. Mas o volume absoluto dessa indústria suplementar de softwares é pequeno e compõe somente uma fração de todo o setor de processamento eletrônico de dados. O mesmo vale para alguns novos hardwares das telecomunicações, dotados de ligação direta com a Internet. A última palavra da tecnologia: celulares com os quais se efetua o pagamento na loja, mediante "on-line banking".
Esse tipo de ampliação de tecnologias
há muito implementadas dificilmente
tem condições de sustentar a prosperidade econômica de toda a sociedade.
Além de fornecer os recursos tecnológicos e os softwares, é o próprio capitalismo que deve "ingressar" na Internet, à
qual cumpre descortinar a era de uma
"nova economia". Mas a produção virtual de bens é logicamente restrita, por
sua vez, aos softwares. Só dessa forma, se
tanto, a comercialização da Internet poderia induzir o crescimento real.
É difícil e custoso, porém, organizar
sob a forma de oferta capitalista, numa
escala realmente global, o uso barato da
rede (abstraindo as tarifas telefônicas),
garantindo assim, sem percalços, as
transações comerciais. Muitos "macacos
velhos" da Internet defendem-se com
unhas e dentes contra a comercialização
e já dispõem de know-how para uma eficiente sabotagem eletrônica. Até que
ponto devemos levar a sério essa crítica
pragmática é evidenciado pelo nervosismo com que os governos dos Estados
Unidos e da Alemanha reagiram, em fevereiro passado, à paralisação a que foram submetidas durante horas algumas
célebres empresas da Internet.
Leilão eletrônico
Para o comércio
varejista também há outros entraves. Supermercados em rede e casas de leilão
(algo como mercados de pulga eletrônicos) sofrem com o fato de que produtos
palpáveis como livros, obras de arte ou
máquinas de lavar podem ser virtualmente adquiridos, porém não consumidos; eles têm de ser retirados ou entregues, alguém arcará com o custo e onde
estaria então a grande vantagem da compra na tela do computador? Muitos consumidores, afinal, não querem dar um tiro eletrônico no escuro sem uma prova
sensível, e continuarão a deslocar-se até
as lojas e filiais.
Mas, se o comércio a varejo pela Internet entrar mesmo em voga, ele só fará
por retrair as vendas a retalho nas lojas e
forçará novos surtos de racionalização.
Para o crescimento da sociedade como
um todo, será o caso (quando muito) de
um jogo de soma zero, pois transferir as
compras para o campo virtual é um artifício tão inócuo para estimular o poder
de compra quanto a extensão do horário
de funcionamento das lojas, mantendo-as abertas dia e noite.
Aliás, a principal fatia do "e-commerce" não é composta da venda direta a
consumidores particulares, mas da esfera do chamado "business-to-business",
também conhecida em sua forma abreviada por "B2B". Esse comércio em rede
entre as grandes empresas, por exemplo
entre cartéis automobilísticos e seus fornecedores, assume de fato traços de uma
revolução comercial. Mas não se trata
aqui de uma perspectiva de investimentos mais vultosos para a criação de empregos, antes pelo contrário: trata-se da
segunda grande onda de racionalização,
há muito já preconizada.
Seções empresariais até agora necessárias, como compras, fornecimento, almoxarifado etc., vão se tornar supérfluas
em proporções inauditas. Mesmo no setor financeiro uma grande parte das
agências bancárias corre o risco de ir para a Cucuia em razão do crescente "direct-banking" via Internet. Assim, na
planejada fusão entre o Deutsche Bank e
o Dresdner Bank para criar a maior casa
bancária do mundo, o efeito combinado
da "sinergia" decorrente da fusão e a simultânea transferência do negócio bancário para a Internet custará entre 30% e
50% de postos de trabalho.
Carrasco de empregos
A Internet
pode ser interessante em termos empresariais, mas em termos econômicos pode
se tornar o maior carrasco de empregos
de todos os tempos. O que a "nova economia" de fato cria é uma espécie de capitalismo espectral, sem qualquer uso de
força de trabalho humana que seja digno
de nota. Quando se diz que as empresas
na Internet procuram desesperadamente especialistas para o "e-commerce", isso é conversa para boi dormir ante a situação universal do emprego. Assim como a revolução microeletrônica em geral, também a revolução da Internet acaba por tornar mais empregos supérfluos
do que os cria ou fomenta. Por isso é que
o resultado final não pode ser um novo
surto centenário de crescimento, mas
apenas o agravamento da crise.
O novo na "nova economia" só consiste, na verdade, em que ela prolonga o
crescimento especulativo fictício, e de
maneira muito mais leviana do que antes. Com o celular a pessoa pode agora
não só pagar as compras, senão efetuar
diretamente transações na Bolsa. Sendo
o segundo degrau da racionalização, o
capitalismo internauta é também o segundo degrau da capitalização fictícia
nas Bolsas. Esgotado o potencial especulativo das "blue chips" (ações de maior liquidez), era necessário abrir um novo
campo ao capitalismo vodu. Na essência,
a "nova economia" consiste num segmento adicional do mercado acionário,
que se estabeleceu como dito "novo mercado" dotado de índices próprios. Assim
foi que, ao lado do velho conhecido Dow
Jones, índice da Bolsa de Nova York, surgiu o Nasdaq Composite; e, na Alemanha, o índice Nemax do "novo mercado"
faz concorrência ao Dax. Até um Nasdaq
Japan já foi posto em curso.
Agora que os preços das "blue chips"
encontram-se estagnados, depois de 10 a
15 anos de vertiginosa ascensão, o foguetório das ações prossegue com intensidade tanto maior nos "novos mercados".
Num piscar de olhos o Nasdaq desbancou seu irmão bem mais velho, o Dow
Jones, e o mesmo destino teve o alemão
Dax nas mãos do Nemax. Muitas vezes
são empresas que ainda fedem a cueiro,
com um punhado de funcionários, que
capitalizam uma riqueza fabulosa em
operações dúbias.
Foi assim que a casa de leilões virtuais
alemã "Ricardo.de", com uma folha de
pagamento de 20 funcionários, um giro
de 5,7 milhões de marcos e prejuízos da
ordem de 2,5 milhões de marcos, ingressou em 1999 no "novo mercado" e, da
noite para o dia, passou a "valer" 500 milhões de marcos. A capitalização da Bolsa da Nasdaq, algo em torno US$ 5 trilhões, corresponde a 60% do PIB norte-americano, enquanto a parcela real de
produção, circulação e emprego fica
abaixo dos 5%.
A Internet é uma silenciosa revolução
comunicativa, mas uma revolução incompatível com o capitalismo. Com base
na "world wide web" é possível entrever
uma auto-administração transnacional
da sociedade, para além do capital e do
comércio, talvez um "sistema de conselho eletrônico". Como "fábrica dos sonhos do novo mercado", por sua vez, ela
não pode ser mais do que último antro
de ópio do capitalismo-cassino.
Robert Kurz é sociólogo e ensaísta alemão, autor, entre outros, de "O Colapso da Modernização" (Paz e Terra) e "Os Últimos Combates" (Ed. Vozes). Ele escreve
mensalmente na seção "Autores", da Folha.
Tradução de José Marcos Macedo.
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