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O homem blindado
AUTOR MERGULHOU NOS "INFERNOS LITERÁRIOS"
PARA ENTENDER SUA SITUAÇÃO E REVELA QUE ENTRA EM CONTATO COM SEUS LEITORES APENAS PELO FACEBOOK
Na Itália, quando se luta contra certos poderes, o destino das pessoas está selado
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Leia a seguir entrevista com
Roberto Saviano.
PERGUNTA - Quer dizer que é assim
sua vida atual?
ROBERTO SAVIANO - É assim. Eles
vão aos lugares antes de mim.
Chegam primeiro, controlam
tudo, e depois eu vou. Para
qualquer coisa.
Se é preciso comprar uma geladeira, por exemplo, eles vão
na frente, depois eu vou, a olho,
escolho o modelo, e então vamos a outra loja diferente para
comprá-la. Nunca voltamos ao
mesmo lugar.
PERGUNTA - O sr. sempre teve cinco
guardas?
SAVIANO - Comecei com dois,
depois passaram a ser cinco.
PERGUNTA - O sr. muda muito de
casa?
SAVIANO - Sempre que observamos algum detalhe diferente.
Por exemplo, se há uma obra
em andamento num edifício
próximo e sabemos que há pessoas de Nápoles trabalhando ali
que já foram julgadas, eles me
mudam de casa.
Basta algo assim.
PERGUNTA - Eles o escoltam também dentro de casa?
SAVIANO - Não, normalmente
não entram em casa. Esperam
atrás da porta. Vinte e quatro
horas por dia.
PERGUNTA - Parecem tranquilos.
SAVIANO - Têm muitos anos de
experiência no combate à máfia. Já protegeram personalidades, juízes e "supertestemunhas". Maruccia os escolheu.
PERGUNTA - Com tanto contato,
vocês já devem ter virado amigos.
SAVIANO - Claro, são magníficos. E isso me obriga a seguir
adiante, a não desistir. Devo isso a eles, que me defendem.
PERGUNTA - O sr. encontra amigos
em casa?
SAVIANO - Poucas vezes. Muitos de meus amigos se afastaram desde que o livro saiu. Foi
muito doloroso entender isso.
É natural, porque você desaparece, vira invisível e se torna
outra pessoa. Você fica desconfiado, vive nervoso, com a cabeça em outro lugar, e nada nem
ninguém parece estar à altura
trágica de sua situação...
PERGUNTA - A normalidade se torna absurda.
SAVIANO - Sim, as propostas
das pessoas normais, falar de
coisas bobas, sair para tomar
uma cerveja, bater papos superficiais, no início eu não suportava. Eu estava mergulhado
num turbilhão no qual existia
apenas meu trabalho, minha situação, e procurava respostas
nos livros.
Fiz uma espécie de descida
aos infernos literários para entender quem, antes de mim, em
situações mais graves, conseguiu sobreviver.
PERGUNTA - E quais autores o ajudaram?
SAVIANO - Os perseguidos pelos
soviéticos: Boris Pasternak
[1890-1960], Varlam Shalamov
[1907-82]... e, mais recentemente, Anna Politkovskaia
[1958-2006], que acabou de
forma trágica, mas sempre enfrentou as difamações. Não vou
esquecê-la.
Tampouco me esqueço das
cartas e dos diários do juiz Giovanni Falcone [1939-92], o que
ele escreveu e publicou, porque
resistiu a ataques cotidianos,
parecidos com os que eu sofro.
PERGUNTA - E, tantas vezes, com a
cumplicidade do governo.
SAVIANO - Sim. Estou convencido de que, na Itália, quando se
luta contra determinados poderes, o destino das pessoas está selado. Não necessariamente
de forma trágica, embora muitas vezes seja assim.
PERGUNTA - Deixando o sr. fora do
circuito?
SAVIANO - Eles o caluniam, dizem que você está se exibindo,
que está procurando publicidade. É isso que é incrível, porque
se cria um círculo vicioso que
impede que você tenha a palavra. E o que as máfias temem é
justamente isso: a atenção.
PERGUNTA - Quando o sr. escreveu
o livro, imaginou que aconteceria algo assim?
SAVIANO - Eu era um sujeito jovem que lia, discutia e escrevia.
De repente me vi no meio desta
guerra. Pensava que teria problemas, mas não tão graves.
Agora não posso pôr os pés
em Nápoles. Esta viagem é a
primeira que faço em um mês.
Todas as cidades me convidam,
menos a minha. Apesar de "Gomorra" ser o livro mais vendido
da história da cidade.
PERGUNTA - Soa irônico, é verdade.
SAVIANO - Restam poucos focos
de resistência ali, poucas forças
sadias. Uma delas é Marotta, o
filósofo; outra, o cardeal Sepe.
E o bispo Raffaele Nogaro,
em Caserta, que leva adiante o
trabalho do dom Peppino Diana, o padre de Casal di Principe
que foi assassinado. É curioso
que as instituições religiosas façam o trabalho do Estado. Esse
é o drama do sul da Itália.
PERGUNTA - A crise econômica vai
agravar a situação?
SAVIANO - Com certeza. E isso
vai permitir ao dinheiro do crime entrar em todo lugar.
[Devemos estar por volta do
quilômetro 80. Faltam 150 para
Nápoles. Não há muito tráfego
na estrada e o automóvel voa,
como os dos videogames. Os
que andam pela esquerda nos
acompanham em alta velocidade. "Vamos levar pouco mais de
uma hora", informa Saviano.
"Se os "carabinieri" nos pararem, vamos sorrir." É a primeira piada da viagem.]
[Parece estar de humor melhor do que estava alguns meses atrás, quando disse que deixaria o país. Mas, à medida que
nos aproximamos de Nápoles,
vai ficando mais tenso]
PERGUNTA - Na realidade, o sr. vive
uma espécie de vida virtual. Como
um super-herói ao avesso.
SAVIANO - Uma vida virtual e
blindada. As pessoas me visitam como se eu fosse um doente, me trazem água e açúcar, como dizemos na Itália.
O que me dá satisfação são
coisas virtuais, como o Facebook -recebo milhares de
mensagens de jovens. Isso é
precioso. Neste país ainda há
pessoas que têm vontade de se
expressar.
PERGUNTA - O sr. sente mais esse
apoio que o da classe intelectual?
SAVIANO - O papel do escritor
mudou de repente, e alguns se
sentiram assediados. Muitas
pessoas exigem que os escritores se pronunciem. Antes achavam que os livros não podiam
mudar as coisas; hoje já não se
pode afirmar isso.
Talvez se possa dizer que alguns escrevem palavras que
não mudam as coisas e que outros escrevem palavras que
permitem que as pessoas tenham instrumentos para mudar as coisas. O poder enorme
que tem o leitor que escolhe ler
um livro... Talvez ele não se dê
conta disso. Eu, sim.
Os leitores, e não o livro, são a
chave de minha história. Se
ninguém tivesse lido meu livro,
a Camorra teria se importado
muito menos com ele.
PERGUNTA - A jornalista do "Il Mattino" Rosaria Capacchione, autora
de "L'Oro della Camorra" [O Ouro da
Camorra], também vive sob escolta.
SAVIANO - Sim, é um caso parecido com o meu. A diferença é
que ela ainda vive e trabalha em
Nápoles. Consideram-me um
palhaço porque escrevo fora da
cidade. Já ela é respeitada.
PERGUNTA - [O jogador de futebol]
Cannavaro já disse que essas coisas
da máfia é melhor não espalhar...
SAVIANO - A máfia faz todo
mundo sentir-se culpado. Alguns se sentem culpados porque sabem pouco, outros, porque pensam muito. Cannavaro
se equivoca em uma coisa. Não
é um problema local, é global:
eles investem em todo lugar.
PERGUNTA - Muitos napolitanos
pensam como ele.
SAVIANO - Sim, um dia um advogado gritou para mim: "Sou
eu quem paga sua escolta!". E
os vizinhos de um apartamento
que tive se organizaram e pagaram vários meses de meu aluguel adiantados, para não me
terem ali.
[Nápoles aparece no horizonte, grande e belíssima. "Você vê Nápoles e depois morre",
reza o ditado. Uma frase que
não parece oportuno citar
quando o carro estaciona no
quartel da polícia. Por sorte a
pizzaria fica perto dali, na rua
de Toledo.]
[Os livros são a grande paixão
de Saviano, desde pequeno. Seu
rosto só se ilumina quando fala
de literatura e quando chega a
pizza fumegante, verdadeiramente napolitana: mussarela
de búfala, tomates cereja, crocante e macia.]
[Saviano a corta em triângulos e sopra por cima, fazendo
círculos, como um menino. Então conta que tirou de "Soldados de Salamina", de Javier
Cercas, a inspiração para
escrever seu "relato real". E que
gostaria de encontrar Mario
Vargas Llosa.] É um escritor fabuloso, e, como Cervantes, conhece a alma napolitana. Eu o
escolheria como padrinho de
meu retorno público.
Seria maravilhoso se Marotta organizasse sua vinda aqui
no Instituto, porque foi essa
grande tradição laica e civil de
Nápoles que me ajudou a escrever o livro. Os mestres dos revolucionários franceses eram
napolitanos. Aqui nasceram as
ideias de liberdade na Europa.
E não foi por acaso que Giordano Bruno morreu na fogueira, e sim porque tentou retornar a Nápoles. Tinha a hospitalidade do mundo inteiro, mas
preferiu voltar. Foi detido em
Veneza e o queimaram.
Alguns me dizem: "Fale da
grande cultura, e não da vida
ruim". Caravaggio é a beleza, e
essa beleza me dá forças para
relatar o mal. Se não existisse
essa beleza, não haveria esperança de sair. Mas, se usamos a
beleza para encobrir o mal, ela
se converte em disfarce.
Estive com Salman Rushdie
em Nova York. Cheguei com a
escolta, ele se aproximou com
Ian McEwan, cada um me pegou por um braço e eles me levaram ao carro. Eu mal conseguia acreditar.
Salman me disse o que eu
sinto. Que muitas pessoas pensam que, para um escritor, viver ameaçado é algo glamouroso. Que ninguém vai me entender, exceto algum político (ele
diz que apenas Margaret Thatcher o entendia). Que ninguém
vai acreditar que o que você
mais deseja é tomar um café
num bar. Que a única forma de
reconquistar sua liberdade é
decidir fazê-lo. Que o importante é manter sua cabeça livre
e saber quando você quer voltar
a ser livre. Que eu devo procurar um bom exílio...
Mas isso é algo que preciso
pensar bem, porque começar
do zero é difícil.
[Estamos de volta a Roma.
Saviano escapuliu na metade
da tarde de sexta-feira para
passar o fim de semana com sua
"mamma" (versão oficial) e hoje ficamos na sede de sua editora, a Mondadori. Finalmente, a
boa notícia: Saviano está escrevendo outra vez. Tem dois projetos em andamento. Um é um
relato verídico sobre o crime
organizado internacional. O
outro falará dele próprio, do
homem solitário. Será quase
uma vendeta.]
["Tenho que canalizar de alguma maneira o rancor que
sinto pelos amigos que me
abandonaram quando escrevi
"Gomorra". Sinto ódio por eles.
Entendo que a vendeta não é
uma arte nobre, mas me deixaram no chão quando eu mais
precisava deles. E a amizade é o
contrário disso, não?"]
Nascer na terra da Camorra não supõe apenas viver entre morte e sangue -você também vive rodeado das melhores ruínas da Antiguidade
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PERGUNTA - Com sua família as coisas vão melhor?
SAVIANO - Quando meus pais se
separaram, meu irmão e eu ficamos com nossa mãe, que é
química e vivia viajando a congressos. Estudamos num colégio de Caserta. Víamos meu pai,
que é o médico da cidade, nos
finais de semana.
Arruinei a vida de todos que
me eram próximos. Meu irmão
foi trabalhar no norte. E não tenho relações com meu pai.
PERGUNTA - Dizem que tudo vem
da infância. O que o sr. se recorda da
Camorra daquela época?
SAVIANO - Meu pai me levava
para visitar doentes nos povoados rurais de Caserta. Muitas
vezes víamos cenas apocalípticas. Eu me lembro das búfalas
mortas boiando no rio Volturno. Quando ficavam velhas, jogavam-nas na água, para economizar balas.
Lembro que pescávamos
percas marinhas no rio, porque, de tanto a Camorra roubar
a areia do rio para fazer cimento, em vez de o rio desembocar
no mar, a água salgada penetrava em seu leito.
Meu pai sempre teve medo
da Camorra, mas nunca se rebelou. Via os carros luxuosos
deles e sentia raiva. Mas não dizia nada, nunca.
Sempre senti essa asfixia. Tudo ia mal, mas ninguém podia
fazer nada. Sempre foi assim.
"Se você é "furbo" (malandro),
pode aproveitar", diziam. Se
você pensa que pode mudar alguma coisa, é um louco.
A Camorra sabe que só tem
problemas quando mata demais. Ela ajuda as famílias com
filhos deficientes.
PERGUNTA - Quer dizer que não é
apenas um Estado, mas um Estado
de Bem-Estar Social.
SAVIANO - Mas o bem-estar social da Camorra não é um direito, é um privilégio. Eles podem
tirá-lo de você.
PERGUNTA - Quando decidiu ser escritor?
SAVIANO - Aos 14 ou 15 anos. Eu
sempre lia; adorava os clássicos. Nascer na terra da Camorra não supõe apenas viver entre
morte e sangue -você também
vive rodeado das melhores ruínas da Antiguidade. Aníbal e
Espártaco eram os personagens de minha infância. Meu
avô e meu tio sempre me contavam histórias de Espártaco.
A cultura é o que realmente
salva nossa vida; minha terra
me deu isso de presente. A
"Anábasis" de Xenofonte se parece comigo.
Para escrevê-la, ele se tornou
mercenário. Xenofonte era tatuado, e eu também. Ele se fez
tatuar com a figura de um javali. Consideravam-no um reacionário. Mas no livro, dizia:
"Não confia em quem escreve
sobre coisas não vividas".
PERGUNTA - Mas, para o sr., esse livro apenas estragou sua vida.
SAVIANO - Agora vivo encerrado em ambientes fechados; ando de um cômodo a outro, às
vezes dou socos nas paredes.
É uma meia morte, ou uma
meia vida.
PERGUNTA - Ela acabará um dia...
SAVIANO - Quem sabe minha libertação chegue e eu possa passear novamente na praça do
Plebiscito quando eu for velho,
ou usando uma peruca loira.
Mas não acredito. Nápoles
não só não esquece como sente
rancor. "Gomorra" arrancou a
tampa que fechava tantos silêncios. Não me perdoarão nunca.
Dizem: "Você está ganhando
dinheiro com a "monnezza" (o
lixo), hein?", ou "pare de escrever porcaria, 'buffone'".
Os guarda-costas se indignam mais do que eu, e tenho
que dizer a eles que têm que me
defender dos ataques físicos,
não dos espirituais.
PERGUNTA - Orhan Pamuk deixou
a Turquia.
SAVIANO - A Europa e o México
são hoje os lugares onde os escritores correm mais risco. Mataram com um tiro na cabeça o
autor [Georgi Stoev] de "BG
Godfather" [Chefão Búlgaro].
Também mataram Politkovskaia e a jornalista que retomou
seu trabalho...
Dá medo neles o autor que
consegue fazer sua mensagem
extrapolar seu território.
PERGUNTA - O sr. pensa muito em
sua própria morte?
SAVIANO - Bastante. Me dizem
que o TNT é o pior, mas eu sinto mais medo de balas. Sei que
me farão pagar -está escrito.
Convivo tanto com isso que
já não me assusta mais. Quando
chegarem, porque chegarão,
será dentro de algum tempo. A
tensão me defenderá por alguns anos. Enquanto isso, eles,
seus 200 mil seguidores e tantos políticos que tentam minimizar o que acontece, dizendo
que é exagero, continuarão
com a difamação. Dirão que copiei, que sou um palhaço.
Diziam isso a Falcone. E ele
disse uma coisa muito importante a sua irmã. Disse que não
se defendia das calúnias porque
elas se defendem sozinhas, e
que a máfia lhe faria um favor
matando-o, porque assim ficaria claro que não era arrivista e
que dizia a verdade.
PERGUNTA - Não podemos terminar assim. Suas armas são a palavra
e a verdade, e são mais poderosas
que as balas.
SAVIANO - Contar a verdade me
ajudou a afastar as sombras que
eu carregava por dentro e que
se projetavam sobre mim. Eles
venceram em parte, por me fazerem viver assim.
Mas, por outro lado, perderam. Hoje no Facebook há milhares de jovens discutindo a
Camorra. Destruíram minha
vida, mas, quanto a mim, o que
fiz já não é meu. É das crianças.
A íntegra deste texto saiu no "El País".
Tradução de Clara Allain .
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