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+(c)ultura
Duelo de Titãs
PESOS-PESADOS DO CINEMA FRANCÊS, CLAUDE CHABROL
E GÉRARD DEPARDIEU FALAM DE SEU NOVO FILME, "BELLAMY", DE LITERATURA E DA CRISE DA SÉTIMA ARTE
"Para mim, Godard virou um pouco o Karl Lagerfeld da 7ª arte"
(Depardieu)
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PASCAL MÉRIGEAU
Eles vinham brincando
havia anos com a ideia
de trabalharem juntos. Desse desejo comum nasceu "Bellamy" [ainda sem data de lançamento no Brasil], filme dedicado "aos dois Georges" (Simenon, escritor, 1903-89, e Brassens, músico, 1921-81).
Gérard Depardieu tinha conhecido o filme no dia anterior,
e o encontro estava marcado
para as 13h. Ao meio-dia telefonou para dizer que seria às
12h30, em razão de um encontro que tinha marcado às 14h.
Claude Chabrol já estava nas
redondezas; Gérard chegou
apressado, mas dominado por
um desejo irreprimível de comer escargots.
Duas horas e meia mais tarde, todos ainda estavam em
volta da mesa.
Quando Depardieu partiu,
depois de devorar duas dúzias
de moluscos e um prato de vitela com feijão e muito atrasado para seu encontro (algo raríssimo em se tratando dele),
Claude permaneceu mais um
pouco para falar de Gérard.
GÉRARD DEPARDIEU - Achei o filme muito comovente. Ele me
fez pensar no cinema que amo,
acrescido de mais alguma coisa, aquilo que chamamos de estilo. Maurice Pialat [1925-2003] e François Truffaut
[1932-84] tinham estilo...
CLAUDE CHABROL - Mas não era o
mesmo!
DEPARDIEU - Não, mas me deixa
espantado que um cineasta que
fez 50 filmes se mantenha tão
ligado a sua época. Seu filme me
deu a impressão de fazer parte
de uma sociedade privilegiada,
a sociedade da cultura.
A menor réplica tem um estilo e, contrariamente ao que se
pensa geralmente, para que seu
estilo seja reconhecível é preciso que o autor tenha grande humildade.
A ambiguidade dos personagens é extraordinária. É o caso
de Bellamy, esse delegado de
polícia vítima de uma imagem
de "astro" que só existe na cabeça dos outros.
Ele a vê no olhar de sua mulher (Marie Bunel), de seu irmão (Clovis Cornillac), do personagem representado por
Jacques Gamblin.
CHABROL - O que você descreve
é a verdadeira realidade do filme. O resto só está ali para ilustrar o real e ajudar as pessoas a
compreendê-lo. Com uma pequena brincadeira, que está no
fato de que o lado fictício é tirado de uma notícia de jornal e
que a realidade é imaginária.
DEPARDIEU - É como na cozinha:
quando não há nada a fazer senão brincar, você faz a receita à
perfeição! Não estava tudo claro no roteiro; eu tive um pouco
de medo desses flashbacks, mas
na tela eles passam sozinhos,
na fronteira entre o que o personagem vive e o que imagina.
CHABROL - Houve uma hora em
que pensei em dar um tratamento diferente a esses momentos. Chegamos a pensar em
colori-los, mas teria sido muito
artificial.
DEPARDIEU - Cada resposta no
filme é precisa; o menor detalhe tem sua razão de ser.
A construção é o elemento de
que mais sinto falta no cinema
de hoje. Como Truffaut no passado, você fala de cinema e de
sua relação com a sociedade,
mas hoje o que se procura é
apenas o espetáculo e a eficácia.
Aqui, há a vida.
O irmão, por exemplo, transmite uma ideia de coitado que
remete ao literário. Ele me faz
pensar em Dostoiévski.
CHABROL - Procuro revelar o
que é um indivíduo para, assim,
me aproximar da natureza humana. Sem tentar esgotar o assunto! Com relação à construção, você tem razão.
Vejo cada vez mais filmes feitos para a TV que não têm mais
forma humana: à medida que
avançam, em lugar de revelar,
se tornam cada vez mais uma
coisa qualquer, sem sentido, e a
gente não entende mais nada.
DEPARDIEU - Quando li o roteiro
tive a impressão de que seria
um filme de ambiente, de estado de espírito. Mas então fui
percebendo que cada resposta
era capaz de provocar risos.
É esse o grande talento: inventar respostas que, uma vez
ditas, se tornam engraçadas
porque são verdadeiras.
CHABROL - Basta decidir que o
personagem terá humor. Por
exemplo, quando vai à loja de
materiais de construção e lhe
perguntam se veio comprar
pregos, e ele responde: "Espero
que não!".
DEPARDIEU - Enfim, para escrever isso é preciso ter mais de
uma hora de voo. Não sei se Bellamy tem humor, mas sei que é
um homem que não escapa de
si mesmo.
CHABROL - Acaba ganhando
consciência da realidade das
coisas.
DEPARDIEU - Sua verdadeira
motivação é o desejo de reencontrar sua mulher.
CHABROL - Tenta por todos os
meios reencontrar a si mesmo!
DEPARDIEU - Há momentos no
filme em que, durante sete ou
oito minutos, há uma reunião
de coisas que de repente se liberam. A gente está no escuro, no
abstrato, e a grande emoção
vem de saber que podemos estar ali. Enfim, é a emoção, algo
que não requer explicações.
Voltamos a Flaubert. As pessoas se superam em suas conquistas amorosas.
CHABROL - Com a única condição de evitar qualquer romantismo. Simenon não era um romântico, e nisso ele era bem
mais próximo de Dostoiévski
do que de Balzac.
DEPARDIEU - Pronto: "Bellamy"
fica entre Flaubert e Dostoiévski. Gosto disso.
Hoje se tornou muito difícil
encontrar prazeres excepcionais suscitados por emoções
simples. Nossa humanidade é
totalmente atacada; reconhecer um gosto virou praticamente uma façanha. Por acaso, os
escargots...
Essa noite liguei a televisão,
estava passando um filme e eu
vi imediatamente que era um
dos seus. E não porque tinha
Stéphane Audran...
CHABROL - Se bem que ajuda!
DEPARDIEU - Mas o azul do vestido, os toques de laranja, os enquadramentos, tudo isso só podia ser seu trabalho. Você faz
pastéis, sendo que [Maurice]
Pialat pintava com uma faca.
Basta um plano para a gente
saber que é um filme de Chabrol. Isso é estilo, isso é uma
marca própria.
Do mesmo modo como [Elia]
Kazan sempre usava objetivas
de 18, 25...
CHABROL - Nem sempre!
DEPARDIEU - Talvez, mas em "A
Terra do Sonho Distante". É
sua identidade, sua marca.
CHABROL - Esses caras não precisavam se disfarçar. Hoje as
pessoas que estão na moda são
artistas que acham que são
obrigados a se disfarçar.
DEPARDIEU - Porque o que produzem não serve para nada!
Como a produção deles é inútil,
eles se vendem como proprietários. Para mim, Godard virou
um pouco o Karl Lagerfeld da
sétima arte.
Sei que há quem goste muito
disso, mas para mim o que ele
faz hoje é entediante. Não existe um movimento suficientemente importante para passar
por cima das tendências.
CHABROL - O filme que ele fez
com você foi interessante ("Infelizmente para Mim", de
1993). Mas você tem razão
quando diz que hoje só há modismos. O primeiro filme da
nouvelle vague foi "Toni".
[Jean] Renoir o fez em 1934, e
foi de um modernismo absoluto. Então as modas...
DEPARDIEU - Atenção, preto e
branco! Portanto, velho e ultrapassado! Sinal externo do cultural, sensibilidade que não é
de hoje.
"Bellamy" vai na contramão
-carrega essa memória em si.
CHABROL - É uma questão de
encontrar a proporção certa
entre a trama e os personagens.
E eu me esforcei conscientemente para que a trama fosse
claramente separada dos personagens. (...)
[Sobre escrever e representar] A única vez em que escrevi
para um ator foi uma encomenda, "Armadilha para um Lobo",
para Jean-Paul Belmondo
(1972). Entendi rapidamente
que aquilo era uma brincadeira
e que eu não tinha outra saída
senão levá-la adiante.
Escrevi "Bellamy" para Gérard, queria deixá-lo espantado. Eu lhe dizia que rodaríamos
o filme em dois anos; ele não
acreditava e dizia o que dizia
sempre, que o filme já estava
praticamente feito. Então
mandei o roteiro a ele e nós o
rodamos em Nîmes, porque foi
ali que nos conhecemos.
DEPARDIEU - Isso não é inteiramente verdade. Ele também é
preguiçoso! Aliás, a contradição é que as pessoas ao mesmo
tempo o tacham de preguiçoso
e dizem que ele faz demais. É
uma crítica que também pode
ser feita a mim.
O filme é fruto de nosso desejo de contar uma história com o
que conhecemos do cinema e
da história do cinema.
Eu não procurei saber mais
que isso, e, quando recebi o texto, encontrei 20 histórias dentro da história. Por trás de cada
vírgula, você enxerga mudanças de plano. São verdadeiras
pontuações.
CHABROL - É verdade, eu edito
com vírgulas. [A atriz] Isabelle
Huppert também entendeu isso. Para mim, quanto mais a
coisa é preparada, melhor funciona. Para não cair na autobiografia, Odile Barski [corroteirista] se encarregou de tudo o
que remete um pouco a mim,
especialmente as relações de
Bellamy com sua mulher, que
se parecem com minhas relações com Aurore.
Mas era Gérard que me interessava -a ideia de encontrar
um disfarce que conviesse à expressão de sua personalidade,
tal como eu a queria mostrar.
Gérard possui uma espécie de
sabedoria; é meio a meio. Essa é
também minha ideia da vida.
Quando lhe perguntaram se
a vida era resultado de seus
próprios esforços ou do acaso,
Fritz Lang respondeu: "Meio a
meio".
Acho que as pessoas frequentemente são tolhidas por seu
absolutismo: o filme termina
num plano metade mar, metade céu.
[Nesse momento Depardieu
parte para seu encontro.]
Gérard faz parte das pessoas
para as quais as outras existem.
Ele sente a necessidade de uma
relação verdadeira, é por isso
que tem necessidade de tocar
as pessoas fisicamente. Ele tenta esconder isso; a questão é saber por que quer escondê-lo.
Tenho uma queda tremenda
por ele. A frase sobre a dignidade -"encontrei uma certa forma de dignidade em desprezar
a mim mesmo"- é a chave do
filme. Eu disse a ele antes de filmar que, de certo modo, é assim que o vejo, embora no caso
dele não se trate de desprezo,
mas de autoironia.
E disse isso para que não ficasse constrangido. Quando ele
pronunciou a frase, senti um
arrepio nas costas.
A íntegra desta conversa saiu na revista francesa "Le Nouvel Observateur".
Tradução de Clara Allain .
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