São Paulo, domingo, 26 de maio de 2002

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+ arte

Correspondência do filósofo Vilém Flusser mostra seu envolvimento com a Bienal de SP nos anos 70 e 80 e o desejo de libertar o Brasil de modelos "ultrapassados"

Salto para um mundo cheio de deuses

Mario Ramiro
especial para a Folha

A relação de mais de duas décadas entre o filósofo Vilém Flusser (1920-1991) e a Bienal de São Paulo, documentada por meio de sua correspondência, arquivada na Escola Superior de Arte e Mídia de Colônia (Alemanha), pode nos oferecer uma idéia bastante abrangente do engajamento cultural e da forma de exercer a filosofia desse intelectual polêmico e ousado no seu estilo de pensar, falar e escrever sobre temas que, segundo ele, estavam remodelando toda a história do Ocidente. Em 1971, Flusser apresentou à Associação Internacional de Críticos de Arte sua primeira proposta para uma reformulação estrutural da Bienal. Em sua intervenção ele afirmava que "as bienais têm obedecido a estruturas "discursivas" (...) e que as bienais nunca estabeleceram conscientemente que tipo de mensagem desejam transmitir: se querem comunicar ao máximo, se querem informar ao máximo ou se querem procurar um ótimo meio termo". Como alternativa para superar esse impasse ele propunha três pontos. "1) Estudar um método de fazer participar o consumidor da programação das bienais futuras, transformando-as de "exposições" (na realidade: imposições) em diálogos com feedback; 2) decidir provisoriamente se a meta da próxima Bienal é informar (apresentar máxima originalidade) ou comunicar (apresentar alguma originalidade em ambiente parcialmente redundante); 3) instituir um grupo de comunicólogos (inclusive sociólogos, psicólogos etc.) que acompanhassem os trabalhos preparatórios e executivos das bienais futuras." No ano de 1972, Flusser seria chamado por Francisco Matarazzo Sobrinho, presidente da Fundação Bienal, para elaborar um projeto de regulamentação da 12ª edição do evento. É a partir daí que se inicia um relacionamento de colaboração e luta desse filósofo, hoje reconhecido como um dos mais emblemáticos pensadores do final do século 20, com a mais importante Bienal das Américas. O projeto encabeçado por Vilém Flusser propunha que a vinda para a Bienal não fosse de obras, mas de equipes especializadas em trabalhos estéticos. Ele havia sugerido que as representações nacionais deveriam ser compostas por artistas, teóricos, museólogos e especialistas em comunicação de massa para a elaboração das diretrizes do evento. Flusser vai defender a criação de um espaço de comunicação que tirasse os "detentores da cultura" do isolamento como também fazer com que a arte voltasse a ser "influência significativa na vida diária do homem moderno". Ao retornar no início dos anos 70 para a Europa, Flusser irá manter, de Genebra, uma intensa correspondência com o Ministério das Relações Exteriores, em Brasília, com a presidência da Fundação Bienal, em São Paulo, com vários curadores de museus europeus, artistas, a imprensa internacional e seus dois assistentes na capital paulista. A manutenção dessa rede transoceânica acabou gerando uma carga enorme de trabalho para um homem envolvido ainda com conferências, publicações e o trabalho constante diante da máquina de escrever. Na sua correspondência com "Ciccillo" Matarazzo, Flusser passa em poucos meses do entusiasmo à inquietude, ao sentir a relutância da fundação quanto às suas idéias. Como filósofo, ele procurava deixar claro qual era a sua intenção de trabalho. "Deve ser esclarecido o seguinte: o aparelho legal e administrativo da Bienal não me interessa. [...] O que me interessa, isto sim, é a realização do meu projeto." Mas, depois das muitas cartas e telegramas enviados e das muitas promessas abandonadas pela fundação, Flusser se desliga definitivamente de suas funções ao final de 1972. Suas idéias foram apenas parcialmente integradas ao "Laboratório de Comunicações", um dos núcleos expositivos da 12ª Bienal Internacional de São Paulo, inaugurada em 1973.

Modelo para o mundo
Mas, mesmo depois dessa primeira tentativa frustrada, Flusser parecia ainda disposto a se engajar num novo projeto cultural que colocasse o Brasil à frente da cultura internacional. Em agosto de 1981 ele convocou um grupo de artistas, cientistas e críticos de arte para um encontro informal na aldeia provençal em que vivia, com o objetivo de preparar um elenco de sugestões para serem encaminhadas à curadoria da Bienal.
Flusser marcava a sua participação na 18ª Bienal de São Paulo como convidado para um ciclo de conferências. Foi também um de seus "animadores", já que, por seu intermédio, haviam sido convidados dois artistas franceses, Louis Bec e Herve Fischer. Esse encontro no interior da França seria ainda motivado pela perspectiva, já apontada em seus textos e palestras, de que as novas formas de trabalho emergentes nas sociedades ocidentais já estariam produzindo uma mudança no foco de atenção, até então colocado sobre os objetos, para uma nova categoria "desmaterializada" de arte.
Com o interesse cada vez mais voltado para a própria informação, seria necessário iniciar uma discussão urgente, estimulada pelo trânsito das informações "em quantidade e variedade inimagináveis". Para ele, a crescente preponderância das imagens técnicas (fotografias, TV, filme, vídeo), como meios de informação, estaria substituindo a língua falada e escrita no seu papel de veículo privilegiado das informações decisivas às necessidades culturais.
Na sua forma de pensar, o que caracteriza a nossa sociedade é o "pensamento linear, histórico, conceitual e computacional", e esse fator, preponderante nas culturas do Ocidente, já estaria sendo desafiado por outras formas, "pelo pensamento em mosaico e pelo pensamento imaginístico, mágico, das tecnoimagens". Para Flusser, trazer essa discussão para o núcleo central da Bienal de São Paulo significava poder transformá-la "num centro modelar, não apenas para o Brasil mas para a atualidade toda".
No início dos anos 80, o filósofo parecia ter sido novamente tomado pelo mesmo entusiasmo da década anterior, ao vislumbrar a possibilidade de surgimento de uma nova cultura, de "um novo homem" no Brasil. Além do que, essa reformulação da Bienal seria uma das formas que o Brasil teria de saldar a sua dívida externa. Sobre isso ele já havia escrito: "Os modelos que o Brasil emprestou da Europa e dos Estados Unidos -e os que continua emprestando (modelos de automóveis, de usinas atômicas, de sistemas econômicos e administrativos, de modas, de sociedade, de filosofias, de cultura de massa e da elite)- são todos modelos ligeiramente ultrapassados e cobrados excessivamente (...)".
Para ele, "o Brasil importou modelos imprestáveis e está pagando por eles o preço da alienação individual e coletiva. Poderá saldar tal dívida apenas se conseguir elaborar modelos alternativos e exportá-los para o Ocidente".
Como ele afirmara numa de suas palestras em São Paulo, o Brasil poderia dar um salto sobre o processo histórico linear e emergir diretamente no novo contexto regido pelas imagens técnicas. O evidente fascínio do brasileiro pelos meios audiovisuais já lhe parecia ser uma prova de que deste lado do Atlântico haveria uma predisposição inata para o pensamento relacional, mosaical e mágico; uma predisposição em construir redes entre os homens num "mundo cheio de deuses".
Com a morte de Vilém Flusser, em novembro de 1991, a Bienal de São Paulo perdeu definitivamente a sua grande chance de ter um filósofo daquela magnitude concebendo-a como uma alternativa cultural que se irradiasse do parque Ibirapuera para o mundo.


Mario Ramiro é artista plástico e professor da Escola de Comunicações e Artes da USP.


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