São Paulo, domingo, 26 de maio de 2002

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Reedição de "Thérèse Desqueyroux" traz de volta o c atolicismo torturado de François Mauriac

A natureza avariada

José Maria Cançado
especial para a Folha

François Mauriac (1885-1970) chamou para si um trabalho difícil. Católico irredutível, embora não do tipo auto-satisfeito, rangendo sob o jansenismo moralista da burguesia francesa da província, impregnado pela paisagem física e moral da lande da região da Gironda, com sua resina, pinheiros, bruma, javalis, e o silêncio geral, o natural e o empilhado dentro das pessoas, teve como único assunto a realidade e o "mistério miserável" do pecado. Mas era também romancista, um artífice portanto não da condenação, mas de uma liberdade que apenas balbucia, e cria, mesmo sem nenhuma fortuna e chance pela frente, "o poder de dizer não à lei que a esmaga" (como disse sobre a personagem que dá nome a este romance, Thérèse Desqueyroux).
Conflagração difícil essa, pois acontece tal liberdade ter sempre algo a ver, e o romancista sabia disso -com a experiência do pecado, pelo menos tal como o mundo e a religião de Mauriac o catalogam e condenam. Parece sem saída: "É escandaloso", escreveu Jean Prévost, "aos olhos dos cristãos, pintar o mundo tal como ele é aos olhos dos cristãos".
Felizmente algo em "Thérèse Desqueyroux" escapa desse círculo de giz moral e religioso. Publicado em 1927, é o romance mais conhecido do autor, ao lado de "Le Noeud de Vipères" (O Nó de Víboras), de 1932. Foi publicado pela primeira vez no Brasil em 1943, com o título de "Uma Gota de Veneno", pela editora Irmãos Pongetti, e com esta mesma absurdamente boa tradução de Carlos Drummond de Andrade, pois ela agrega uma qualidade Drummond, um outro timbre, fiel, mas um tanto autônomo, quase um outro sujeito e objeto literário, à prosa grave e meio resinosa de Mauriac, aqui e ali espetada pela agulha de uma imagem, de uma comparação (o prefácio do poeta agnóstico também é ótimo, pois é bom ver Drummond lidar com um católico "caixa-encourada").
Thérèse, a personagem principal, é um desses seres marcados por um estranhamento que -pelo menos no mundo de onde vem, as landes da Gironda das duas primeiras décadas do século passado- jamais poderá dizer o seu nome. Mesmo porque ela não sabe que nome é esse: o mundo em que nasceu é seu destino e sua fenda, seu grilhão e sua apatia, sua lei e sua profanação. E isso não tem nome, pelo menos para ela. É o que aturde mais.
É como natureza, como natureza avariada, mas mesmo assim natureza, que François Mauriac segue o estranhamento de Thérèse num universo cuja principal atividade econômica é a extração da resina (a própria família de Thérèse é antiga proprietária de enormes extensões de pinheiros), no qual a política de viver a vida consiste na calcinação e na estigmatização pelo silêncio e pelo olvido do que não se parece com o pacto de silêncio que rege tudo: entrelaçamento de propriedades pelo casamento, de comedimento calculado, de regime rebaixado, mas tirânico, da opinião entronizada.


Sartre, no ensaio famoso publicado em "Situações 1", afirmou que François Mauriac, como Deus, também não "era artista" -e que escolhera "a si próprio como sistema de referências"


Em universos assim, o dizer não à lei que esmaga parece só poder ser vislumbrado, num átimo, no repertório da queda ou do pecado.
O de Thérèse foi tentar, tão engenhosa quanto sonambulamente, envenenar o marido, um arranjo de carne e de tirania da opinião na sua máxima e doméstica concentração, buraco negro antropomorfizado e conjugal das landes, que a via "como uma vara de parreira", na qual "só contava o fruto preso às minhas entranhas".
Difícil saber se é uma força ou uma fraqueza Mauriac tomar a vida e o gesto da sua personagem como natureza; tanto a toma assim que não cora ao escrever num romance de continuação deste, já sobre a vida de Thérèse em Paris -"Fin de la Nuit" ("Fim da Noite"), de 1935-, que "quando passava, as pessoas se voltavam para ela", pois ali se revelava "antes de tudo um animal hediondo".
Talvez seja uma força, pois Mauriac não pode oferecer o que não tem: a compreensão da vida e do estranhamento da sua personagem fora da lande moral dele mesmo. Por causa disso, Sartre, no ensaio famoso publicado em "Situações 1" ("Mauriac e a Liberdade"), afirmou que François Mauriac, como Deus, também não "era artista" -e que escolhera "a si próprio como sistema de referências".
É verdade: Thérèse não é para François Mauriac (e mesmo as outras mulheres) um vir-a-ser. É a encarnação (palpitante, sensível, de uma complexidade atônita) do que ele toma como uma queda.
Mas é assim mesmo, sem as mediações da vida do social (que existem e estão lá, mas parecem chupadas pela areia úmida da prosa do autor e pelo pântano que é existir para ele), feito uma imolação e auto-imolação a irem até o fim -e sem dar muita coisa pela liberdade futura da sua personagem-, que François Mauriac aproxima Thérèse de nós. Mesmo que a veja como "um animal" hediondo, ele a aproxima, não a afasta de nós. Não há degredo possível para Thérèse, mesmo condenada. É essa contradição escandalosa e explosiva que faz a grandeza indiscutível da arte romanesca de François Mauriac. A explicação talvez esteja na própria natureza do romance, essa forma de acontecer o que só nele poderia acontecer. Sartre não tinha razão.

José Maria Cançado é jornalista, autor de "Os Sapatos de Orfeu" (ed. Scritta).


Thérèse Desqueyroux
188 págs., R$ 33,00
de François Mauriac. Trad. Carlos Drummond de Andrade. Cosac & Naify (r. General Jardim, 770, 2º andar, CEP 01223-010, SP, tel. 0/xx/11/ 3218-1444).



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