São Paulo, domingo, 26 de julho de 2009

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+(L)ivros

Armadilhas da arte


A obra de arte captada por Alfred Gell é semelhante aos totens dotados de poderes mágicos que a antropologia clássica estuda

GILLES BASTIN

A arte das populações da África, da Oceania ou da América fascinou seus espectadores ocidentais e sem dúvida continuará causando admiração por muito tempo.
Quer a chamemos "primitiva", quer "primeira", a arte "antropológica", como prefere Alfred Gell (1945-97), é comumente marginalizada. Artefato folclórico e banal para alguns, representação de uma estética original e selvagem para outros, ela tem dificuldade para sair dos guetos onde o olhar colonial a encerrou, mesmo que estes sejam museus magníficos.
Em "L'Art et Ses Agents" [A Arte e Seus Agentes, Ed. Les Presses du Réel, 328 págs., 26, R$ 70], o antropólogo britânico quase se diverte com isso, ele que ambiciona fundar uma "antropologia da arte" que se aplique tanto às tatuagens tradicionais das ilhas Marquesas quanto à origem do "Grande Vidro" (1913-1925), de Marcel Duchamp.

Técnica de encantamento
A obra de arte captada por Gell é semelhante aos totens dotados de poderes mágicos que a antropologia clássica estuda. É um "objeto disseminado" no qual vemos finalmente a marca de todos os agentes que nele investiram uma intenção artística. Arte? Nada mais que uma "tecnologia do encantamento", uma empreitada de "cativação" sem fim.
A sufragista Mary Richardson sabia alguma coisa disso, ela que lacerou em 1914, com uma faca de cozinha, a pintura "Vênus ao Espelho", de Velázquez, conservada pela National Gallery de Londres. Ela atacou assim a rede dessa obra e a dotou de uma nova intencionalidade (que não deixou aliás de fixar, ao fotografá-la antes que os restauradores do museu interviessem nessa tela-palimpsesto para lhe dar novamente uma forma mais conforme a sua própria intenção).
A arte é boa para pensar (e agir), e não para contemplar, Gell poderia finalmente ter dito, plagiando Claude Lévi-Strauss, que é uma figura inspiradora desse livro. "A sociabilidade e as operações cognitivas são uma coisa só", adianta, de fato, provocador, esse que dedica longas páginas a descrever a arte decorativa dos maoris, os desenhos das tatuagens e os percursos dos dançarinos da Melanésia, ou ainda o labirinto cretense, como armadilhas para pensar.
A "resistência cognitiva" dos artefatos que chamamos de "obras de arte" é a melhor medida de sua probabilidade de durar, lembra-nos Gell: "Jamais possuímos completamente um objeto decorado, não cessamos de nos apropriar dele".
Não escapará a nenhum leitor que o livro que tem nas mãos é um objeto singular. Publicado em 1998, pouco após a morte de seu autor, já adquiriu um lugar importante no debate antropológico anglo-saxão, onde provocou numerosos comentários. No entanto, composto de capítulos díspares em sua extensão assim como em seu grau de elaboração, alternando descrições minuciosas e formalismo teórico elaborado, o livro não é inicialmente fácil.
Aliás, ele desanimou durante dez anos o mundo editorial francófono.
Gell disseminou nesse livro, como na outra obra que conseguiu terminar antes de morrer, "The Art of Anthropology" [A Arte da Antropologia], um pouco de sua "persona". Como a cebola de Peer Gynt, o personagem de Ibsen que Gell gosta de citar, ela se revela em camadas sucessivas àquele que se propõe a descobri-la.


Este texto foi publicado no jornal "Le Monde".

Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves .

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