|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
+(L)ivros
Armadilhas da arte
A obra de arte captada por Alfred Gell é semelhante aos totens dotados de poderes mágicos que a antropologia clássica estuda
|
GILLES BASTIN
A arte das populações da
África, da Oceania ou da
América fascinou seus
espectadores ocidentais e sem
dúvida continuará causando
admiração por muito tempo.
Quer a chamemos "primitiva",
quer "primeira", a arte "antropológica", como prefere Alfred
Gell (1945-97), é comumente
marginalizada. Artefato folclórico e banal para alguns, representação de uma estética original e selvagem para outros, ela
tem dificuldade para sair dos
guetos onde o olhar colonial a
encerrou, mesmo que estes sejam museus magníficos.
Em "L'Art et Ses Agents" [A
Arte e Seus Agentes, Ed. Les
Presses du Réel, 328 págs.,
26, R$ 70], o antropólogo britânico quase se diverte com isso, ele que ambiciona fundar
uma "antropologia da arte" que
se aplique tanto às tatuagens
tradicionais das ilhas Marquesas quanto à origem do "Grande Vidro" (1913-1925), de Marcel Duchamp.
Técnica de encantamento
A obra de arte captada por
Gell é semelhante aos totens
dotados de poderes mágicos
que a antropologia clássica estuda. É um "objeto disseminado" no qual vemos finalmente a
marca de todos os agentes que
nele investiram uma intenção
artística. Arte? Nada mais que
uma "tecnologia do encantamento", uma empreitada de
"cativação" sem fim.
A sufragista Mary Richardson sabia alguma coisa disso,
ela que lacerou em 1914, com
uma faca de cozinha, a pintura
"Vênus ao Espelho", de Velázquez, conservada pela National
Gallery de Londres. Ela atacou
assim a rede dessa obra e a dotou de uma nova intencionalidade (que não deixou aliás de
fixar, ao fotografá-la antes que
os restauradores do museu interviessem nessa tela-palimpsesto para lhe dar novamente
uma forma mais conforme a
sua própria intenção).
A arte é boa para pensar (e
agir), e não para contemplar,
Gell poderia finalmente ter dito, plagiando Claude Lévi-Strauss, que é uma figura inspiradora desse livro. "A sociabilidade e as operações cognitivas
são uma coisa só", adianta, de
fato, provocador, esse que dedica longas páginas a descrever a
arte decorativa dos maoris, os
desenhos das tatuagens e os
percursos dos dançarinos da
Melanésia, ou ainda o labirinto
cretense, como armadilhas para pensar.
A "resistência cognitiva" dos
artefatos que chamamos de
"obras de arte" é a melhor medida de sua probabilidade de
durar, lembra-nos Gell: "Jamais possuímos completamente um objeto decorado, não cessamos de nos apropriar dele".
Não escapará a nenhum leitor que o livro que tem nas
mãos é um objeto singular. Publicado em 1998, pouco após a
morte de seu autor, já adquiriu
um lugar importante no debate
antropológico anglo-saxão, onde provocou numerosos comentários. No entanto, composto de capítulos díspares em
sua extensão assim como em
seu grau de elaboração, alternando descrições minuciosas e
formalismo teórico elaborado,
o livro não é inicialmente fácil.
Aliás, ele desanimou durante
dez anos o mundo editorial
francófono.
Gell disseminou nesse livro,
como na outra obra que conseguiu terminar antes de morrer,
"The Art of Anthropology" [A
Arte da Antropologia], um pouco de sua "persona". Como a cebola de Peer Gynt, o personagem de Ibsen que Gell gosta de
citar, ela se revela em camadas
sucessivas àquele que se propõe a descobri-la.
Este texto foi publicado no jornal "Le Monde".
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves .
ONDE ENCOMENDAR - Livros em
francês podem ser encomendados
pelo site www.alapage.fr
Texto Anterior: Os Dez+ Próximo Texto: Biblioteca Básica: Folhas das Folhas de Relva Índice
|