São Paulo, domingo, 26 de julho de 2009

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Sociologia blockbuster

MALCOLM GLADWELL E DUNCAN WATTS EXPLORAM FILÃO DE BEST-SELLERS E PALESTRAS A PARTIR DE PESQUISAS SOCIAIS

FLÁVIO MOURA
ESPECIAL PARA A FOLHA

A sociologia nunca foi campeã de bilheteria. Nas disciplinas prestigiosas, da crítica literária e de arte à filosofia, a acusação de "sociologismo" é ofensa capaz de assassinar reputações. Mesmo entre os sociólogos de projeção, o empenho em ampliar a audiência é raro: a regra são os "papers" carregados de referências e terminologia pouco acessível.
Mas é desse terreno impopular e cheio de arestas que um conjunto de autores em atividade nos EUA extrai matéria-prima para um novo filão de blockbusters editoriais e palestras concorridas como shows de rock. Eles se especializaram em traduzir pesquisas sociológicas em historietas exemplares e diagramas de consumo.
Costumam extrair lições desses experimentos e defender sua aplicabilidade por nichos diversos do mundo empresarial e das políticas públicas. Entre os representantes da corrente, o jornalista Malcolm Gladwell e o sociólogo Duncan Watts figuram como os nomes mais representativos.
A fama de Gladwell não é das melhores no Brasil. "Guru da autoajuda", "profeta do mundo corporativo" ou "invenção de moda da "New Yorker'" são alguns entre os muitos epítetos depreciativos com que costuma ser tratado em círculos ilustrados. Mesmo o tratamento editorial é suspeito. É publicado por uma casa de best-sellers que não prima por edições rigorosas. Nas livrarias, seus livros costumam ser encontrados ao lado dos manuais de marketing e de pérolas da motivação pessoal.
Mas vale perguntar se a má vontade com ele não decorre apenas do sucesso de vendas e da maneira torta com que tem sido publicado por aqui. Lidos em conjunto, seus livros "O Ponto da Virada", "Blink - A Decisão num Piscar de Olhos" e "Fora de Série" sugerem de saída um autor com habilidades narrativas nada desprezíveis e a invenção de um gênero capaz de fundir grande reportagem com pesquisas de diversos campos da sociologia e da psicologia social.


Gladwell tornou-se um palestrante requisitado em congressos corporativos


Circunstâncias do sucesso
Colaborador da revista "The New Yorker" desde 1996, Gladwell costuma ser o conferencista principal nos eventos organizados pela publicação e tornou-se um dos palestrantes mais requisitados pelos festivais literários e congressos corporativos.
Seus livros já venderam mais de 5 milhões de cópias.
É fácil rotulá-lo como autor de autoajuda. Como funciona a intuição e por que ela é importante? Por que alguns negócios prosperam e outros não? Como executivos e artistas de sucesso chegaram ao topo? As perguntas que norteiam seus livros despertam desconfianças por motivos óbvios.
Mas as respostas são menos evidentes: o uso que ele faz do material de pesquisa o transforma no avesso dos habituais arautos da motivação.
"Fora de Série", recém-lançado no Brasil, é um exemplo ilustrativo. A proposta é mostrar como o sucesso não decorre apenas do esforço individual, mas de um conjunto de circunstâncias. Compreender a trajetória de alguém como Bill Gates, ele sustenta, é levar em conta a família abastada, o colégio de vanguarda em Seattle, a sorte de ter acesso a computadores raros, as milhares de horas de prática como programador de que já dispunha no momento exato em que surge o computador pessoal.
O raciocínio é aplicado a outras situações. Os jogadores de hóquei do Canadá nascidos em janeiro levam vantagem porque a seleção para as ligas principais é feita quando são muito novos -época em que os meses a mais significam mais força física. Os chineses tendem a ser mais habilidosos em matemática porque o idioma pode favorecer a memorização e o raciocínio lógico.
Classe social, criação familiar, acaso, particularidades históricas -há sempre fatores externos a condicionar o sucesso. A sociologia empregada pode ser rudimentar, mas não dá para dizer que o objetivo seja vender ilusões.
As polêmicas em que se envolveu dizem bastante a respeito da repercussão de seu trabalho. Apesar da indiferença por aqui, seus textos encontram eco em publicações como o "New York Review of Books" e nas universidades americanas.

Discórdia
O principal antagonista é justamente Duncan Watts. Professor de sociologia na Universidade Columbia, Watts, como Gladwell, é jovem, cultiva um ar descolado e aceita de bom grado a cooptação pelo circuito corporativo.
Formado em mecânica teórica e aplicada, bandeou-se para a sociologia como um dos expoentes da "teoria das redes", que propõe modelos matemáticos capazes de unificar a compreensão de universos distintos, entre os quais a segurança na internet, as pandemias, o terrorismo e o mapeamento genético.
O motivo da discórdia entre eles está em "Seis Graus", livro mais famoso de Watts. Ainda não lançado no Brasil, o volume explica a origem e as aplicações possíveis de seu estudo sobre as redes e contém algumas páginas em resposta aos argumentos de "O Ponto da Virada", publicado por Gladwell em 2000 e com tradução para o português relançada neste ano.
Gladwell sustenta nesse livro que a melhor maneira de compreender o surgimento das tendências da moda, das ondas de crimes, os best-sellers, a propaganda boca a boca e fenômenos sociais correlatos é pensá-los como epidemias. "Ideias, produtos, mensagens e comportamentos se espalham como vírus", diz.
Ganha destaque nesse processo a figura do "comunicador", agente com trânsito em diversos círculos sociais, influência e poder de persuasão, a quem o autor atribui a capacidade de desencadear os processos de mudança -o ponto da virada do título.
O argumento de Watts é o oposto. Boa parte de seus experimentos é dedicada à tentativa de provar que não existem grupos mais influentes. Ele desenvolveu programas de computador que replicam padrões de difusão de boatos e concluiu que qualquer pessoa está igualmente apta a lançar uma moda.
Uma campanha publicitária que priorize um grupo seleto está portanto fadada ao fracasso. "Um punhado de pessoas "cool" simplesmente não tem tanto poder", diz Watts.
"Quanto mais opiniões você levar em consideração ao tomar uma decisão, menor influência cada uma terá sobre você."
O debate revela uma contradição: o sociólogo sério é Watts. Gladwell é um mero diluidor. Mas impressiona que nos diagramas de Watts as opiniões de todos pareçam ter o mesmo peso, o que equivale a sugerir a inexistência de desequilíbrios de poder no mundo social. Categorias básicas como status, dominação, prestígio e poder simbólico não significam nada em seu esquema. A vertente clássica da sociologia simplesmente não frequenta sua bibliografia.


Para Watts, uma campanha que priorize um grupo seleto está fadada ao fracasso


Tradição enraizada
No trabalho de Gladwell, ainda que não nomeadas dessa forma, premissas enraizadas na tradição sociológica norteiam cada passo do argumento. A analogia entre sociedade e organismos vivos, em discussão desde os estudos pioneiros do século 19, está por trás da noção de "contágio social".
E a ideia de que o trânsito social é uma forma de capital, explorada à exaustão na sociologia de Pierre Bourdieu [1930-2002], encontra uma tradução didática no modelo do "comunicador". A exposição pode ser em forma de reportagem, mas a condução do argumento sugere um olhar sociológico mais agudo que o do colega.
É claro que o sucesso de Gladwell não se deve apenas a seus dotes de divulgador da sociologia. Há um horizonte normativo em seus livros que cativa marqueteiros mundo afora.
Como pioneiro num formato em que impasses do mundo corporativo se transformam em narrativas edificantes, é compreensível que seja assediado por esse universo.
Pagar fortunas no mercado de palestras por soluções definitivas é mais um problema de quem acredita nelas. Watts, diga-se, também não chega a ser um purista: tirou licença em Columbia para desenvolver campanhas de marketing para o site Yahoo!.
Gladwell e Watts são frutos de um meio em que a dimensão utilitária está sempre ao alcance: a divulgação da pesquisa acadêmica do primeiro e o culto à abstração teórica do segundo deságuam no mesmo tipo de cooptação.
Há quem veja isso como desvio. Mas a visibilidade alcançada pelos dois também sinaliza um ambiente intelectual pronto a acolher formas de pensamento que em outros cantos não teriam como prosperar.


FLÁVIO MOURA é jornalista e doutorando em sociologia pela USP.


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