São Paulo, domingo, 26 de agosto de 2001

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O TERROR SEGUNDO ROHMER

Reprodução
Cena do filme L'Anglaise et le Duc", do diretor francês Eric Rohmer


Um dos grandes nomes da nouvelle vague, o cineasta Eric Rohmer usa efeitos de computador em seu novo filme para reconstituir o período mais dramático da Revolução Francesa

por Inácio Araujo

Ao primeiro olhar, Eric Rohmer, 81, surpreende ao fazer "L'Anglaise et le Duc" (A Inglesa e o Duque), o seu anunciado último filme, em DV (vídeo digital) sobre o período do Terror na Revolução Francesa (1789), com orçamento de milhões de francos e uma equipe de mais de cem pessoas no set.
Não é ele, então, o realizador de histórias minimalistas, em torno de três ou quatro personagens, de filmes com equipe e orçamento reduzidíssimos? Sim, ele mesmo. Na verdade, Rohmer é cioso de sua independência a tal ponto que, se um de seus filmes for bem de bilheteria, no seguinte ele toma todas as providências para fazer um desses "filmes que não dão certo" -e, com isso, evitar a engrenagem do sucesso. Quer ter as mãos livres para fazer seus projetos quando bem entende, sem depender de ninguém.
Mas não se deve perder de vista dois outros aspectos: 1) o uso dessa estrutura enxuta não é um dogma nem uma maneira de condenar as grandes produções: trata-se apenas de um modo de produção adequado a sua personalidade e pretensões; 2) Rohmer é provavelmente o mais radical dos discípulos de André Bazin e, como tal, um partidário da tecnologia de ponta.
Acrescente-se a isso que Rohmer já fez reconstituições de época, embora esporadicamente ("A Marquesa d'O", de 1976, e "Perceval le Gallois", de 1978), e a surpresa inicial pode ser relativizada.
Nem por isso "L'Anglaise et le Duc" deixará de surpreender. Antes de mais nada porque o uso dos efeitos de computador tem pouca relação com o que temos visto nos filmes norte-americanos. Trata-se, aqui, de reconstituir a Paris do fim do século 18, e não de criar universos irreais.
Nesse sentido, o filme é coerente com o credo realista professado pelo cineasta francês desde sua estréia no longa-metragem, com "Le Signe du Lion" (1959).
Fosse outro diretor, seu método seria motivo de muito dissabor. De todos os realizadores do núcleo original da nouvelle vague (Godard, Truffaut, Claude Chabrol, Jaques Rivette e ele), Rohmer foi o que mais tempo demorou a ter o trabalho reconhecido.
Durante os anos que sucederam ao Maio de 68, chegou mesmo a ser malvisto pela crítica de esquerda. Conservador, nunca sentiu necessidade de se alinhar com a esquerda ou mudar seu cinema. Pelo contrário, naquele momento em que a crítica denunciava como burguesa a estética da transparência, Rohmer a defendeu com veemência.
Sustentava que a diferença essencial não era entre cinema poético e cinema prosaico. Para ele, as duas categorias de filmes eram os que viam a realidade como meio e os que viam a realidade como fim.
Esse é o cerne de seu pensamento. Fiel às idéias de André Bazin, Rohmer acredita que o cinema seja a menos artística das artes. Sua qualidade essencial consiste em reproduzir o mundo objetivamente. É claro, essa idéia não elimina um tanto de subjetividade. O assunto, os atores, a angulação da câmera são escolhas de um diretor. No entanto existe algo no cinema que resiste à pura subjetividade, que escapa aos desígnios do autor -e isso é o fundamental para os que pensam dessa forma. As roupas, o mar, a paisagem etc., todos os elementos que compõem o filme, enfim, não interessam porque são filmados, e sim são filmados porque apresentam algum tipo de interesse em si mesmos.
O cineasta será, nesse sentido, alguém a serviço das coisas, cuja função é mostrar alguma coisa do mundo que, embora visível a olho nu, escapa ao nosso olhar.
Daí resulta um cinema sem efeitos, que despreza o plano "bonito", os movimentos de câmera espetaculares, os efeitos de iluminação e até mesmo a música (quase sempre, Rohmer só usa música ambiente em seus filmes -acredita que a música seja uma convenção herdada do cinema mudo).
A radicalidade com que aborda o cinema e seu desprezo pelo mundo do espetáculo (nunca comparece a festivais, raramente dá entrevistas -leia uma das exceções na próxima página-, não gosta de ser fotografado) ajudam a torná-lo um cineasta "secreto", pouco conhecido fora dos meios cinéfilos. Também é, com certeza, um dos motivos por que "L'Anglaise et le Duc" acabou vetado pelo Festival de Cannes.
O Festival de Veneza comprou sua briga: passará o filme "hors-concours" e fará de Rohmer o grande homenageado do ano. Por uma vez, o cineasta irá a um festival (mas promete não dar entrevistas). Para Rohmer, na verdade, isso não muda muito as coisas. Veneza, sim, é que saiu ganhando com essa história.


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