São Paulo, domingo, 26 de agosto de 2007

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Máscaras nuas

Saem edições de obras de Luigi Pirandello e Leonardo Sciascia, dois dos principais escritores italianos do século 20

AURORA F. BERNARDINI
ESPECIAL PARA A FOLHA

É assim que Pirandello costumava viver quando voltava a Agrigento" (sua residência na Sicília, quando não estava em Roma, onde lecionou de 1897 até 1922), dizia Leonardo Sciascia, quando, em 1980, fui visitá-lo em Racalmuto-Contrada Noce, uma localidade próxima de Palermo, cheia de casas antigas construídas com as pedras do lugar e no meio de incríveis extensões de videiras, todas elas cultivadas em tabuleiros contíguos, como imensos chuchuzeiros, por baixo dos quais as pessoas iam e vinham, dos lugares mais disparatados.
No caso de Pirandello (1867-1936), fiquei sabendo então, todas as tardes, depois da sesta, ele ficava sentado no pátio em frente à casa onde os camponeses ou membros de suas famílias vinham conversar com ele para relatar-lhe os "causos" que corriam nos povoados e que depois ele transformava em contos.
De fato, no que se refere aos contos, o projeto de Luigi Pirandello era tão extenso que, entre 1922 e 1936, chegou a publicá-los em 15 volumes, sob o título geral de "Novelle per un Anno" (Novelas para um Ano); mais de 300, portanto.

12 "causos"
O volume "O Marido de Minha Mulher", que a editora Odisséia lança agora, numa antiga tradução de Jacob Penteado cuja tonalidade de outrora se casa admiravelmente com a ambiência dos 12 "causos" narrados, é uma parte daquela coletânea.
Parte privilegiada, pois contém alguns entre os contos antológicos do escritor. Um deles, "Retorno", narra um episódio traumatizante da infância de Pirandello que talvez explique -junto com a sicilianidade- a fixação em alguns traços traumáticos de suas personagens: a carnalidade "plácida" de certas mulheres e a brutalidade "sanguínea" de certos homens.
Outros, como "Música Antiga", evocam sutilmente hábitos passados, numa técnica que lembra "Roma", de Fellini, em que poesia e "grand-guignol" se sucedem e se misturam.
E, finalmente, em "Casaca Apertada", surge o imponderável, o aspecto que Sciascia -grande estudioso e, num certo sentido, continuador de Pirandello- considera um de seus traços distintivos mais fecundos.
No conto é exposta com grande maestria essa intromissão na rotina de um velho e preguiçoso professor, de uma circunstância curiosa e irritante que consegue contrariar o destino e fazer com que ele "encontre a coragem e a força para revoltar-se e triunfar".
Outro traço característico pirandelliano, já sobejamente consagrado desde seu primeiro festejadíssimo romance ("O Falecido Mattia Pascal"), é o da mutabilidade da identidade das pessoas.
Nada melhor que o teatro, porém, para a expressão dessa peculiaridade da persona e, em particular, a peça "Vestir os Nus", já apresentada várias vezes no Brasil (em meados dos anos 1950, deu o Prêmio Governador do Estado de São Paulo a Fernanda Montenegro, por sua interpretação da personagem Ercília), que agora volta, atualíssima, pela Civilização Brasileira, na "transubstanciação" de Millôr Fernandes.
Muito bem escolhido o termo -os termos, na verdade, pois o texto do tradutor é arguto e propõe inovações muito a propósito: "istória", por exemplo, para quem titubeia entre "estória" (muito regionalista) e "história" (muito erudito).
Nesta "istória" é exposta subliminarmente outra teoria pirandelliana: a da relação vida/ forma.
Após várias tentativas para que uma "nova vida" possa ser possível, mas vendo o futuro comprometido, Ercília não retoma a máscara da "forma quebrada", coisa que é sugerida pelos protagonistas masculinos que tendem a nela encontrar refúgio, vítimas que são da "forma" que se fecha sobre a vida.
Ercília não aceita nenhuma dessas falsas propostas e, "nua", rompe a forma para afirmar a vida.
Máscaras "nuas" há muitas (é assim que Pirandello chamou a reunião das suas peças de teatro), e as mulheres, que conseguem mais facilmente modificar sua identidade e vesti-las -geralmente em nome do amor ou da arte-, representam uma outra possibilidade generosa de transcendência ainda válida que o autor nos lega.

Matriarcas possessivas
Uma visão mais misógina é a de Leonardo Sciascia (1921-1989). As protagonistas de seus "gialli" -romances policiais, quase que totalmente ambientados na Sicília- geralmente são as matriarcas possessivas e castradoras ou as beldades sensuais e desejadas, que não vacilam quando se trata de seu próprio proveito.
Mas seu juízo severo é mitigado pela bem-vinda ironia com a qual sabe envolver a ação: "Em política, era considerado por todos um comunista; mas não era. Quanto à vida privada, era considerado uma vítima do afeto exclusivo e ciumento da mãe; e assim era".
Trata-se de Laurana, modesto professor do secundário e herói obscuro de "A Cada Um o Seu" (1966), um de seus romances mais famosos sobre o "inferno" da máfia, relançado na impecável tradução de Nilson Moulin (na década de 80 já havia sido publicado pela editora Fontana, juntamente com "O Dia da Coruja" e "O Conselho do Egito").
Em português ainda constam (entre os não esgotados): "O Mar Cor de Vinho" (Berlendis & Vertecchia), "1912+1" (Rocco) e "Majorana Desapareceu" (Rocco). Há mais de dez livros que ainda falta traduzir (inclusive um de contos), mas a escolha não é difícil: são todos bons, diria Gore Vidal, um dos seus leitores mais entusiasmados.
Quanto a Pirandello -ainda um dos mais importantes dramaturgos de nosso tempo-, fora as três ou quatro peças mais conhecidas e mais representadas, continua havendo 40 delas à espera de suas personagens em nosso palcos. É de esperar que o septuagésimo aniversário de sua morte seja o marco de sua retomada.


AURORA F. BERNARDINI é professora de teoria literária e literatura comparada na USP.

O MARIDO DE MINHA MULHER
Autor:
Luigi Pirandello
Tradução: Jacob Penteado
Editora: Odisséia (tel. 0/xx/21/ 3212-2600)
Quanto: R$ 15,90 (192 págs.)

VESTIR OS NUS
Autor:
Luigi Pirandello
Tradução: Millôr Fernandes
Editora: Civilização Brasileira (tel. 0/ xx/21/ 2585-2000)
Quanto: R$ 20 (140 págs.)

A CADA UM O SEU
Autor:
Leonardo Sciascia
Tradução: Nilson Moulin
Editora: Objetiva/Alfaguara (tel. 0/ xx/ 21/ 2199-7824)
Quanto: R$ 26,90 (136 págs.)


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