São Paulo, domingo, 26 de agosto de 2007

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O diabo veste Hermès

EM "DELUXE", A EX-CRÍTICA DE MODA DA "NEWSWEEK" DANA THOMAS DEFENDE QUE A ENTRADA DE GRIFES DE ALTO LUXO NO MERCADO DE MASSA DESENCADEOU UM CONSUMISMO DESENFREADO

MICHIKO KAKUTANI

No final da década de 1980, a mochila Prada -feita de tecido de pára-quedas preto ou marrom-tabaco com acabamento de couro- se tornou "a" bolsa para muitas candidatas a "fashionistas". Era ágil, moderna, leve e, por US$ 450 [R$ 907], cara, mas não tanto quanto as bolsas de preços estratosféricos feitas por Hermès e Chanel.
Segundo a repórter de moda Dana Thomas, aquela mochila Prada também foi "o emblema da mudança radical que o luxo sofria na época: a passagem de pequenas empresas familiares que faziam produtos maravilhosamente artesanais para corporações globais que fornecem para o mercado médio".
Foi uma mudança de exclusividade para acessibilidade, de ênfase em tradição e qualidade para ênfase em crescimento, construção de marca e lucros.
Com "Deluxe - How Luxury Lost Its Luster" [De Luxo - Como o Luxo Perdeu o Brilho, Penguin Press, 375 págs. US$ 27,95, R$ 56], Thomas -que foi jornalista de cultura e moda da revista "Newsweek" em Paris durante 12 anos- escreveu uma história social vívida e inteligente, tão divertida quanto informativa.
Viajando dos laboratórios de perfumes da França aos shopping centers de Las Vegas e às linhas de montagem industrial na China, ela desenha a face em evolução do setor de produtos de luxo, do design ao marketing e aos showrooms.
Thomas traça com aguda observação alguns perfis de figuras como Miuccia Prada -que era uma comunista com doutorado em ciência política quando assumiu a pequena empresa de produtos de luxo de sua família, em 1978- e o magnata Bernard Arnault, que construiu incansavelmente o grupo LVMH até se tornar um monolito de luxo, com dezenas de marcas (incluindo Louis Vuitton, Givenchy e Dior) vendidas no mundo inteiro.
Thomas tempera sua narrativa com muitas histórias laterais sobre tudo, desde como o laranja se tornou a cor-assinatura da Hermès (porque era a única amplamente disponível durante a Segunda Guerra Mundial) até as vantagens econômicas da bainha desfiada, que foi comercializada como uma inovação de vanguarda.
Mas seu foco é como uma empresa que atendia à elite rica entrou no mercado de massa e também os efeitos da democratização no modo como as pessoas comuns compram hoje, enquanto o consumo generalizado e o excesso desmedido se espalham pelo mundo.
As etiquetas, antes discretamente alinhavadas no forro das roupas da alta-costura, se tornaram logotipos que enfeitam tudo, desde bonés de beisebol a correntes de ouro exageradas.
Os perfumes, antes sonhados pelos criadores com a idéia de um aroma particular, hoje são feitos a partir de memorandos escritos por executivos de marketing com base em enquetes e números de vendas.

Negócios da China
Com a globalização, Paris e Nova York não são mais as mecas exclusivas do luxo. Thomas nota que um gigantesco shopping center de 61 mil metros quadrados chamado Crocus City (com 180 butiques, entre as quais Armani, Pucci e Versace) está brotando perto de Moscou e que um grupo de butiques de ponta fará parte de um complexo de luxo chamado Legation Quarter, que deverá abrir na praça Tiananmen, em Pequim, ainda neste ano.
Hoje, "cerca de 40% de todos os japoneses possuem um produto Vuitton", escreve, e uma pesquisa recente mostrou que em 2004 a mulher norte-americana média comprava mais de quatro bolsas por ano.
Com mais pessoas visitando as reluzentes Forum Shops do Caesars Palace do que o Disney World a cada ano, Las Vegas transformou as compras em sinônimo de jogo e entretenimento, enquanto os outlets levaram as roupas e acessórios de grife ao alcance de muitos moradores de subúrbios.
As marcas de luxo de alto perfil como Louis Vuitton, Hermès e Cartier foram fundadas nos séculos 18 ou 19 por artesãos dedicados a criar artigos belos e requintados para a corte real da França e, depois, com a queda da monarquia, para a aristocracia européia e famílias americanas proeminentes.
O luxo permaneceu, escreve Thomas, "um domínio dos ricos e famosos" até que o "terremoto jovem dos anos 1960" derrubou as barreiras sociais e o elitismo. Ele ficaria fora de moda "até que um novo e poderoso grupo demográfico -a mulher executiva solteira- surgisse nos anos 1980".
Enquanto a renda disponível e as dívidas no cartão de crédito cresciam nos países industrializados, a classe média se tornou alvo dos comerciantes de luxo, que despejaram dinheiro em campanhas de publicidade provocativas e cortejaram estrelas de cinema e celebridades como ícones da moda.
Para maximizar os lucros, muitas empresas procuraram maneiras de aparar arestas: começaram a usar materiais mais baratos, terceirizaram a produção para os países em desenvolvimento (enquanto falsamente diziam que seus produtos eram feitos na Europa Ocidental) e substituíram o artesanato manual pela produção em linha.
Os produtos clássicos que deveriam durar anos deram lugar, cada vez mais, a artigos de "tendência", com curto prazo de validade; também foram lançadas linhas mais baratas, com artigos mais simples como camisetas e nécessaires.

Sem brilho
Embora o livro cite Anna Wintour, a editora da "Vogue" norte-americana, dizendo que essas mudanças significam que "mais pessoas terão uma moda melhor" e "quanto mais gente puder usar moda, melhor", a autora chega a uma conclusão mais elitista e pessimista.
"A indústria do luxo mudou a maneira de as pessoas se vestirem. Ela realinhou nosso sistema de classes econômicas. Mudou a maneira como interagimos com os outros. Tornou-se parte de nosso tecido social", ela escreve. "Para alcançar isso, sacrificou a integridade, sabotou seus produtos, maculou sua história e enganou os consumidores. Para tornar o luxo "acessível", os magnatas o despiram de tudo o que o tornava especial. O luxo perdeu o brilho."


Este texto foi publicado no "New York Times".
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves .

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