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HISTÓRIA
Natalie Zemon Davis analisa as limitações dos estudos femininos
e do pós-modernismo
Passados deslocados
MARIA LÚCIA G. PALLARES-BURKE
especial para a Folha
Ao fazer recentemente um retrospecto de sua trajetória intelectual, Natalie Zemon Davis descreveu seu empenho de resgatar sucessivamente para a história os
trabalhadores, as mulheres, os judeus, os ameríndios e os africanos
como se fosse "alguma missão de
salvamento" que sempre se repete. Anos antes, ela se referira à sua
relação com o passado como tendo alguma coisa "de maternal",
como se, ao escrever história, ela
quisesse "dar vida novamente às
pessoas, assim como uma mãe
quer dar seus filhos à luz". O tom
dessas declarações é bem revelador do dom que Davis tem de expressar seus sentimentos e emoções sem que isso tenha jamais
comprometido os altos padrões
acadêmicos da valiosa obra que
escreve há 40 anos.
Natalie Davis é uma autoridade
inconteste na história da França
do século 16, bem como uma das
mais conhecidas e prestigiadas
historiadoras de hoje, não só no
campo da história social e cultural
da Idade Moderna, mas também
no da história das mulheres. Foi
no entanto como especialista da
história de Lyon do século 16 que
Davis estabeleceu sua reputação
nos anos 60, quando escreveu
uma série de artigos inovadores,
examinando essa cidade sob vários pontos de vista: espaços urbanos, comércio, imigração, relações entre católicos e protestantes, entre homens e mulheres etc.
Nessa época, como ela confessa,
seu interesse estava fundamentalmente voltado para as classes trabalhadoras, e as revoltas dos trabalhadores de Lyon pareceram-lhe o material ideal para abordar
as grandes questões que então lhe
fascinavam. Se, ao iniciar sua carreira de historiadora, o marxismo
lhe dera algumas importantes diretrizes, o estudo da antropologia
ampliou posteriormente seu quadro de referências, acrescentando
à sua obra uma preocupação com
a dimensão simbólica da realidade, bem como com a multiplicidade de relações nela envolvidas.
No início dos anos 80, Natalie se
tornou ainda mais internacionalmente conhecida como a autora
de um best seller acadêmico, "O
Retorno de Martin Guerre" (Paz e
Terra), além de ser consultora do
filme com o mesmo título dirigido por Daniel Vigne em 1982.
Desde que lera o livro do juiz de
Toulouse, Jean de Coras, contando a história do célebre caso que
ele julgara em 1560, Davis dissera:
"Isso tem que ser um filme!".
O caso levado ao tribunal revelava o drama vivido por uma família de camponeses de Languedoc, quando um homem -que
havia desaparecido durante 12
anos- reaparece, é aceito como o
verdadeiro Martin Guerre por sua
família e pela comunidade durante três ou quatro anos, até ser finalmente denunciado como impostor por Bertrande, sua mulher.
A história -que atinge o ponto
mais dramático com a chegada do
verdadeiro Martin Guerre no momento em que o impostor estava
quase convencendo o tribunal de
que era realmente o camponês
desaparecido- tinha tudo para
se tornar um filme de sucesso. A
atuação do famoso Gérard Depardieu como o verdadeiro e o
falso Martin Guerre contribuiu
ainda mais para a divulgação da
história e para o reconhecimento
de Natalie Davis como uma historiadora capaz de atingir, ao mesmo tempo, o público acadêmico e
o leigo.
Mais ou menos na mesma época, Natalie desbravou um novo
campo de estudo, impondo-se como historiadora da cultura judia e
da cultura das mulheres do início
da Idade Moderna. São esses interesses que a levaram ao seu mais
ambicioso trabalho até agora,
"Nas Margens" (Companhia das
Letras), de 1995, no qual compara
e contrasta as carreiras de três
mulheres do século 17 -uma judia, uma católica e uma protestante- e suas aventuras na Europa e além do continente europeu.
A mesma audácia que marca este trabalho que Natalie Davis publicou em 1995 -aos 66 anos- e
que repete sua incansável determinação de ensaiar novos caminhos, encontramos em sua vida
pessoal, sobre a qual Natalie fala
com inusitada abertura e franqueza. Nascida em Detroit, em
1929, numa família judia abastada, sua vida transcorreu calmamente até o início da Guerra Fria e
o seu encontro com o jovem matemático Chandler Davis, quando
experimentou uma verdadeira revolução. Primeiramente, porque,
com apenas 19 anos, fugiu de casa
e do Smith College. E, segundo,
porque logo se iniciou a saga do
casal Davis com o FBI e o macarthismo (que envolveu a cassação
de seus passaportes e a prisão de
Chandler por alguns meses), que
só iria terminar em 1962, quando
eles se mudaram para o Canadá e
obtiveram postos na Universidade de Toronto.
Foi durante esse período difícil
dos anos 50 que Natalie teve seus
três filhos e fez o doutorado na
Universidade de Michigan. "A
alegria de ter filhos e de criá-los
superou consideravelmente a
agonia política pela qual passávamos", diz Natalie. E, sem nenhum
constrangimento, acrescenta:
"Ter filhos me ajudou como historiadora; me humanizou, ensinou-me sobre psicologia e relações pessoais e deu substância a
palavras abstratas como "necessidades materiais" e "o corpo'; revelou o poder da família, raramente
tratada pelos historiadores naquela época".
Recentemente aposentada de
Princeton, onde ensinou desde
1978, mas ainda extremamente
ativa como pesquisadora e conferencista em várias partes do mundo, Natalie se mantém inabalável
no papel de modelo, não só para
as novas gerações de mulheres
acadêmicas, mas também para os
historiadores de um modo geral.
Extremamente elegante e bonita,
Natalie recebeu a Folha em Londres para uma longa, amistosa e
entusiasmada conversa sobre variados aspectos de sua carreira e
de seus interesses.
Folha - A sra. nasceu numa família judia para quem "o passado era muito desagradável para
as crianças conhecerem". O que
a fez dedicar sua vida ao estudo
do passado?
Natalie Zemon Davis - Para começar, acho que foi um sentimento de estar deslocada do passado,
de não ter raízes. De um lado, minha família era composta de imigrantes judeus europeus, meus
avós e bisavós, que consideravam
não valer a pena falar sobre o passado russo ou polonês, que lhes
era tão doloroso. E, de outro, não
havia também um passado americano que fosse significativo para
nós. Nosso compromisso era com
o futuro e com a idéia de sermos
bons cidadãos americanos. Mas,
além de a história me fornecer
aquele sentido do passado que me
faltava, meu interesse por política,
especialmente do tipo marxista,
tornava esse campo particularmente importante para mim.
Marx havia dito que a história era
o único tipo de ciência que poderia nos servir de guia para o futuro
e me fascinava pensar que eu
-não como mulher ou judia,
pois àquela altura essas não me
pareciam questões particularmente interessantes- fazia parte
da grande corrente da humanidade.
Folha - Desde seu tempo de
escola, sua participação nos debates e nos eventos marcantes
da época tem sido constante.
Protestou contra o Plano Marshall, o macarthismo e, no ônibus, fazia questão de se sentar
ao lado de um negro para manifestar sua oposição à discriminação racial. A sra. se descreveria como uma intelectual engajada? E coloca a história a serviço desses engajamentos?
Davis - Eu certamente quero ser
uma intelectual engajada, mas a
forma de meu engajamento tem
mudado com o passar do tempo.
Na minha época de estudante, fui
muito ativa em política. Depois,
permaneci muito atenta aos acontecimentos, mas minha atuação
limitou-se mais a assinar petições,
envolvendo-me só raramente em
ações mais concretas. Mais recentemente, participei em demonstrações contra a Guerra do Golfo
(um terrível erro por parte dos Estados Unidos) e contra a outorga
de um doutorado honorário da
Universidade de Toronto ao ex-presidente George Bush. Mas devo deixar claro que, se minha ação
na universidade é inspirada em
valores políticos, meu trabalho
como historiadora não está a serviço da política.
Folha - No início de seu curso
de doutorado a sra. escreveu
um ensaio sobre Christine de Pisan, uma viúva francesa do século 14 que conseguiu manter
seus filhos e sua mãe com seu
trabalho de escritora. No entanto decidiu não escolher a história da mulher como tema de seu
doutorado, o que teria sido uma
verdadeira inovação na época.
O que acha que a impediu de
explorar esse novo território no
início dos anos 50?
Davis - Intelectual e profissionalmente não me parecia o caminho certo, apesar de ter adorado
trabalhar sobre Christine naquela
época. E não me arrependo, em
absoluto, da decisão que tomei.
Em primeiro lugar, eu estava muito interessada em estudar os artesãos e a classe trabalhadora durante a reforma protestante e começara a desenvolver um trabalho de arquivo inusitado entre os
historiadores que trabalhavam
com religião e mudança social.
Em segundo lugar, eu não considerava, àquela altura, a história
das mulheres como algo que iria
acrescentar uma nova dimensão
aos estudos históricos. Apesar de
ter ficado fascinada com "La Cité
des Femmes", de Christine, e de
ter estudado essa primeira literata
a partir de meu interesse, por assim dizer, marxista, não achei que
houvesse muita novidade em desenvolver um estudo sobre uma
mulher que se situava numa posição socialmente elevada. Preferi,
pois, me voltar para um tópico
ainda inexplorado, como era o
material que estava descobrindo
sobre esses primeiros sindicatos
de trabalhadores. E, em terceiro
lugar, acho que não queria fazer
estudos sobre mulher só porque
sou mulher. Havia razões políticas, também, por trás de minha
decisão. No início dos anos 50,
quando escrevi aquele texto, estávamos no meio da Guerra Fria, da
Guerra da Coréia, e as questões
relativas à paz, e não as relativas às
mulheres, é que se apresentavam
como centrais.
Folha - Na sua juventude a sra.
foi seduzida pelo marxismo e
socialismo porque, como diz,
"eles ofereciam algumas grandes formas de organizar o passado". E hoje em dia, ainda vê
valor no trabalho de Marx e de
alguns de seus seguidores?
Davis - Na verdade, nunca me
converti realmente ao marxismo
pois, apesar de achar que muitos
estudos marxistas eram interessantes e valiosos, sempre fui muito eclética. Diria, pois, que ainda
continuo a achar Marx e alguns
outros que se inspiraram em
questões pós-marxistas extremamente interessantes e estimulantes. Sem dúvida, eles nos ajudam a
combater a visão do mundo como sendo um mero texto e a nos
lembrar quão importante é o conflito para a compreensão de uma
cultura. Sim, pois o que acho muito importante é a noção de que o
modo mais apropriado de identificar um período é estudar os profundos conflitos que existem entre as pessoas. Eles, muito mais do
que as crenças que as pessoas
compartilham, me parecem a
chave para a identificação de períodos e de culturas.
Folha - A sra. já confessou que
seu primeiro livro, "Society and
Culture in Early Modern France", publicado no início do movimento feminista, tornou-se
"um modelo de história para as
mulheres". Haveria algum desenvolvimento dessa história
com o qual não gostaria de se
ver associada?
Davis - Primeiramente, gostaria
de dizer que, quando faço alguma
crítica ao que emergiu do movimento das mulheres, não o faço
como inimiga. Há hoje em dia
muita briga nos departamentos,
no próprio movimento, e, se eu
tenho algumas reservas, eu não as
exponho com o desejo de eliminar pessoas ou com a pretensão
de um saber total. O que não gosto sobre as histórias das mulheres
é quando são escritas com a sugestão de que têm a chave absoluta e de que todos os outros tipos
de história são errados ou superados. Prefiro um tipo de história
das mulheres que não as olhe como vítimas e que as perceba nas
várias situações em que estão em
colaboração e até em cumplicidade com os homens.
Folha - Seu livro "O Retorno de
Martin Guerre", de 1983, gerou
muitos debates e, ao lado de
"Montaillou", de Le Roy Ladurie,
e "O Queijo e os Vermes", de
Ginzburg, tem sido elogiado como pertencente à tradição pós-modernista em historiografia.
Concorda com essa visão?
Davis - Não considero o pós-modernismo uma categoria útil
para tratar desses três livros, que,
na verdade, têm objetivos diferentes -o de Ginzburg, por
exemplo, sendo menos etnográfico do que os outros dois. Quando
falo em pós-moderno, penso na
ênfase que colocam na cultura e
na linguagem como condicionando tudo o que pensamos e falamos e também no fato de a abordagem pós-modernista recusar
generalizações e falar em fragmentos, em vez de todos coerentes. Ora, não precisamos do pós-modernismo para falar de condicionamentos culturais, pois tudo
é, num certo sentido, gerado culturalmente. E, quanto a dizer que
esses trabalhos são pós-modernos porque recusam generalizações, diria que, ao contrário, todos eles, apesar de diferentes, são
microhistórias ou etnohistórias
que esperam gerar "insights" para
o tratamento de outros casos; esperam relacionar os casos individuais estudados a outros casos.
Folha - Dirigir filmes é um dos
seus mais antigos interesses, e,
após ter colaborado na direção
de "O Retorno de Martin Guerre", a sra. disse que "bons filmes
históricos exigem mais do que
trajes ou acessórios autênticos:
eles devem sugerir algo verdadeiro sobre o passado e ser o
equivalente visual de uma declaração escrita verdadeira". Como, então, responderia à afirmação de Hayden White de que
um filme histórico e a escrita da
história compartilham das mesmas limitações quanto ao alcance da verdade e que, portanto, a
ficção do filme e a ficção do discurso do historiador são equivalentes?
Davis - Devo dizer que Hayden
White e outros prestaram um
grande serviço à história, quando
apontaram as formas literárias
que afetam o nosso modo de escrever história. No entanto, como
uma visão total do significado da
história, a sua é bastante limitadora, pois deixa de lado os esforços
que os historiadores fazem e as regras da evidência que seguem para tentar provar seus argumentos.
No meu entender, as duas coisas
operam concomitantemente, como se fossem sistemas de ondas,
uma delas sendo a do gênero literário que a escrita da história pode adotar (tragédia, comédia, tragicomédia etc.), e a outra, a da evidência.
Quanto aos filmes históricos,
diria que as convenções cinematográficas têm um longo caminho
a andar antes que os recursos dramáticos e visuais alcancem as regras da evidência e os recursos
equivalentes aos da prosa. Estou
pensando, por exemplo, na necessidade de convenções visuais e
técnicas que expressem coisas
equivalentes a "talvez" ou "há vários modos de se interpretar isso".
Enfim, fazer um filme é muito
mais complicado do que o comentário de Hayden White sugere.
Maria Lúcia G. Pallares-Burke é autora de
"The Spectator, o Teatro das Luzes" (Hucitec)
e "Nísia Floresta, O Carapuceiro e Outros Ensaios de Tradução Cultural" (Hucitec).
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