São Paulo, Domingo, 26 de Setembro de 1999
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HISTÓRIA
Natalie Zemon Davis analisa as limitações dos estudos femininos e do pós-modernismo
Passados deslocados

MARIA LÚCIA G. PALLARES-BURKE
especial para a Folha

Ao fazer recentemente um retrospecto de sua trajetória intelectual, Natalie Zemon Davis descreveu seu empenho de resgatar sucessivamente para a história os trabalhadores, as mulheres, os judeus, os ameríndios e os africanos como se fosse "alguma missão de salvamento" que sempre se repete. Anos antes, ela se referira à sua relação com o passado como tendo alguma coisa "de maternal", como se, ao escrever história, ela quisesse "dar vida novamente às pessoas, assim como uma mãe quer dar seus filhos à luz". O tom dessas declarações é bem revelador do dom que Davis tem de expressar seus sentimentos e emoções sem que isso tenha jamais comprometido os altos padrões acadêmicos da valiosa obra que escreve há 40 anos.
Natalie Davis é uma autoridade inconteste na história da França do século 16, bem como uma das mais conhecidas e prestigiadas historiadoras de hoje, não só no campo da história social e cultural da Idade Moderna, mas também no da história das mulheres. Foi no entanto como especialista da história de Lyon do século 16 que Davis estabeleceu sua reputação nos anos 60, quando escreveu uma série de artigos inovadores, examinando essa cidade sob vários pontos de vista: espaços urbanos, comércio, imigração, relações entre católicos e protestantes, entre homens e mulheres etc.
Nessa época, como ela confessa, seu interesse estava fundamentalmente voltado para as classes trabalhadoras, e as revoltas dos trabalhadores de Lyon pareceram-lhe o material ideal para abordar as grandes questões que então lhe fascinavam. Se, ao iniciar sua carreira de historiadora, o marxismo lhe dera algumas importantes diretrizes, o estudo da antropologia ampliou posteriormente seu quadro de referências, acrescentando à sua obra uma preocupação com a dimensão simbólica da realidade, bem como com a multiplicidade de relações nela envolvidas.
No início dos anos 80, Natalie se tornou ainda mais internacionalmente conhecida como a autora de um best seller acadêmico, "O Retorno de Martin Guerre" (Paz e Terra), além de ser consultora do filme com o mesmo título dirigido por Daniel Vigne em 1982. Desde que lera o livro do juiz de Toulouse, Jean de Coras, contando a história do célebre caso que ele julgara em 1560, Davis dissera: "Isso tem que ser um filme!".
O caso levado ao tribunal revelava o drama vivido por uma família de camponeses de Languedoc, quando um homem -que havia desaparecido durante 12 anos- reaparece, é aceito como o verdadeiro Martin Guerre por sua família e pela comunidade durante três ou quatro anos, até ser finalmente denunciado como impostor por Bertrande, sua mulher. A história -que atinge o ponto mais dramático com a chegada do verdadeiro Martin Guerre no momento em que o impostor estava quase convencendo o tribunal de que era realmente o camponês desaparecido- tinha tudo para se tornar um filme de sucesso. A atuação do famoso Gérard Depardieu como o verdadeiro e o falso Martin Guerre contribuiu ainda mais para a divulgação da história e para o reconhecimento de Natalie Davis como uma historiadora capaz de atingir, ao mesmo tempo, o público acadêmico e o leigo.
Mais ou menos na mesma época, Natalie desbravou um novo campo de estudo, impondo-se como historiadora da cultura judia e da cultura das mulheres do início da Idade Moderna. São esses interesses que a levaram ao seu mais ambicioso trabalho até agora, "Nas Margens" (Companhia das Letras), de 1995, no qual compara e contrasta as carreiras de três mulheres do século 17 -uma judia, uma católica e uma protestante- e suas aventuras na Europa e além do continente europeu.
A mesma audácia que marca este trabalho que Natalie Davis publicou em 1995 -aos 66 anos- e que repete sua incansável determinação de ensaiar novos caminhos, encontramos em sua vida pessoal, sobre a qual Natalie fala com inusitada abertura e franqueza. Nascida em Detroit, em 1929, numa família judia abastada, sua vida transcorreu calmamente até o início da Guerra Fria e o seu encontro com o jovem matemático Chandler Davis, quando experimentou uma verdadeira revolução. Primeiramente, porque, com apenas 19 anos, fugiu de casa e do Smith College. E, segundo, porque logo se iniciou a saga do casal Davis com o FBI e o macarthismo (que envolveu a cassação de seus passaportes e a prisão de Chandler por alguns meses), que só iria terminar em 1962, quando eles se mudaram para o Canadá e obtiveram postos na Universidade de Toronto.
Foi durante esse período difícil dos anos 50 que Natalie teve seus três filhos e fez o doutorado na Universidade de Michigan. "A alegria de ter filhos e de criá-los superou consideravelmente a agonia política pela qual passávamos", diz Natalie. E, sem nenhum constrangimento, acrescenta: "Ter filhos me ajudou como historiadora; me humanizou, ensinou-me sobre psicologia e relações pessoais e deu substância a palavras abstratas como "necessidades materiais" e "o corpo'; revelou o poder da família, raramente tratada pelos historiadores naquela época".
Recentemente aposentada de Princeton, onde ensinou desde 1978, mas ainda extremamente ativa como pesquisadora e conferencista em várias partes do mundo, Natalie se mantém inabalável no papel de modelo, não só para as novas gerações de mulheres acadêmicas, mas também para os historiadores de um modo geral. Extremamente elegante e bonita, Natalie recebeu a Folha em Londres para uma longa, amistosa e entusiasmada conversa sobre variados aspectos de sua carreira e de seus interesses.

Folha - A sra. nasceu numa família judia para quem "o passado era muito desagradável para as crianças conhecerem". O que a fez dedicar sua vida ao estudo do passado?
Natalie Zemon Davis -
Para começar, acho que foi um sentimento de estar deslocada do passado, de não ter raízes. De um lado, minha família era composta de imigrantes judeus europeus, meus avós e bisavós, que consideravam não valer a pena falar sobre o passado russo ou polonês, que lhes era tão doloroso. E, de outro, não havia também um passado americano que fosse significativo para nós. Nosso compromisso era com o futuro e com a idéia de sermos bons cidadãos americanos. Mas, além de a história me fornecer aquele sentido do passado que me faltava, meu interesse por política, especialmente do tipo marxista, tornava esse campo particularmente importante para mim. Marx havia dito que a história era o único tipo de ciência que poderia nos servir de guia para o futuro e me fascinava pensar que eu -não como mulher ou judia, pois àquela altura essas não me pareciam questões particularmente interessantes- fazia parte da grande corrente da humanidade.

Folha - Desde seu tempo de escola, sua participação nos debates e nos eventos marcantes da época tem sido constante. Protestou contra o Plano Marshall, o macarthismo e, no ônibus, fazia questão de se sentar ao lado de um negro para manifestar sua oposição à discriminação racial. A sra. se descreveria como uma intelectual engajada? E coloca a história a serviço desses engajamentos?
Davis -
Eu certamente quero ser uma intelectual engajada, mas a forma de meu engajamento tem mudado com o passar do tempo. Na minha época de estudante, fui muito ativa em política. Depois, permaneci muito atenta aos acontecimentos, mas minha atuação limitou-se mais a assinar petições, envolvendo-me só raramente em ações mais concretas. Mais recentemente, participei em demonstrações contra a Guerra do Golfo (um terrível erro por parte dos Estados Unidos) e contra a outorga de um doutorado honorário da Universidade de Toronto ao ex-presidente George Bush. Mas devo deixar claro que, se minha ação na universidade é inspirada em valores políticos, meu trabalho como historiadora não está a serviço da política.

Folha - No início de seu curso de doutorado a sra. escreveu um ensaio sobre Christine de Pisan, uma viúva francesa do século 14 que conseguiu manter seus filhos e sua mãe com seu trabalho de escritora. No entanto decidiu não escolher a história da mulher como tema de seu doutorado, o que teria sido uma verdadeira inovação na época. O que acha que a impediu de explorar esse novo território no início dos anos 50?
Davis -
Intelectual e profissionalmente não me parecia o caminho certo, apesar de ter adorado trabalhar sobre Christine naquela época. E não me arrependo, em absoluto, da decisão que tomei. Em primeiro lugar, eu estava muito interessada em estudar os artesãos e a classe trabalhadora durante a reforma protestante e começara a desenvolver um trabalho de arquivo inusitado entre os historiadores que trabalhavam com religião e mudança social. Em segundo lugar, eu não considerava, àquela altura, a história das mulheres como algo que iria acrescentar uma nova dimensão aos estudos históricos. Apesar de ter ficado fascinada com "La Cité des Femmes", de Christine, e de ter estudado essa primeira literata a partir de meu interesse, por assim dizer, marxista, não achei que houvesse muita novidade em desenvolver um estudo sobre uma mulher que se situava numa posição socialmente elevada. Preferi, pois, me voltar para um tópico ainda inexplorado, como era o material que estava descobrindo sobre esses primeiros sindicatos de trabalhadores. E, em terceiro lugar, acho que não queria fazer estudos sobre mulher só porque sou mulher. Havia razões políticas, também, por trás de minha decisão. No início dos anos 50, quando escrevi aquele texto, estávamos no meio da Guerra Fria, da Guerra da Coréia, e as questões relativas à paz, e não as relativas às mulheres, é que se apresentavam como centrais.

Folha - Na sua juventude a sra. foi seduzida pelo marxismo e socialismo porque, como diz, "eles ofereciam algumas grandes formas de organizar o passado". E hoje em dia, ainda vê valor no trabalho de Marx e de alguns de seus seguidores?
Davis -
Na verdade, nunca me converti realmente ao marxismo pois, apesar de achar que muitos estudos marxistas eram interessantes e valiosos, sempre fui muito eclética. Diria, pois, que ainda continuo a achar Marx e alguns outros que se inspiraram em questões pós-marxistas extremamente interessantes e estimulantes. Sem dúvida, eles nos ajudam a combater a visão do mundo como sendo um mero texto e a nos lembrar quão importante é o conflito para a compreensão de uma cultura. Sim, pois o que acho muito importante é a noção de que o modo mais apropriado de identificar um período é estudar os profundos conflitos que existem entre as pessoas. Eles, muito mais do que as crenças que as pessoas compartilham, me parecem a chave para a identificação de períodos e de culturas.

Folha - A sra. já confessou que seu primeiro livro, "Society and Culture in Early Modern France", publicado no início do movimento feminista, tornou-se "um modelo de história para as mulheres". Haveria algum desenvolvimento dessa história com o qual não gostaria de se ver associada?
Davis -
Primeiramente, gostaria de dizer que, quando faço alguma crítica ao que emergiu do movimento das mulheres, não o faço como inimiga. Há hoje em dia muita briga nos departamentos, no próprio movimento, e, se eu tenho algumas reservas, eu não as exponho com o desejo de eliminar pessoas ou com a pretensão de um saber total. O que não gosto sobre as histórias das mulheres é quando são escritas com a sugestão de que têm a chave absoluta e de que todos os outros tipos de história são errados ou superados. Prefiro um tipo de história das mulheres que não as olhe como vítimas e que as perceba nas várias situações em que estão em colaboração e até em cumplicidade com os homens.

Folha - Seu livro "O Retorno de Martin Guerre", de 1983, gerou muitos debates e, ao lado de "Montaillou", de Le Roy Ladurie, e "O Queijo e os Vermes", de Ginzburg, tem sido elogiado como pertencente à tradição pós-modernista em historiografia. Concorda com essa visão?
Davis -
Não considero o pós-modernismo uma categoria útil para tratar desses três livros, que, na verdade, têm objetivos diferentes -o de Ginzburg, por exemplo, sendo menos etnográfico do que os outros dois. Quando falo em pós-moderno, penso na ênfase que colocam na cultura e na linguagem como condicionando tudo o que pensamos e falamos e também no fato de a abordagem pós-modernista recusar generalizações e falar em fragmentos, em vez de todos coerentes. Ora, não precisamos do pós-modernismo para falar de condicionamentos culturais, pois tudo é, num certo sentido, gerado culturalmente. E, quanto a dizer que esses trabalhos são pós-modernos porque recusam generalizações, diria que, ao contrário, todos eles, apesar de diferentes, são microhistórias ou etnohistórias que esperam gerar "insights" para o tratamento de outros casos; esperam relacionar os casos individuais estudados a outros casos.

Folha - Dirigir filmes é um dos seus mais antigos interesses, e, após ter colaborado na direção de "O Retorno de Martin Guerre", a sra. disse que "bons filmes históricos exigem mais do que trajes ou acessórios autênticos: eles devem sugerir algo verdadeiro sobre o passado e ser o equivalente visual de uma declaração escrita verdadeira". Como, então, responderia à afirmação de Hayden White de que um filme histórico e a escrita da história compartilham das mesmas limitações quanto ao alcance da verdade e que, portanto, a ficção do filme e a ficção do discurso do historiador são equivalentes?
Davis -
Devo dizer que Hayden White e outros prestaram um grande serviço à história, quando apontaram as formas literárias que afetam o nosso modo de escrever história. No entanto, como uma visão total do significado da história, a sua é bastante limitadora, pois deixa de lado os esforços que os historiadores fazem e as regras da evidência que seguem para tentar provar seus argumentos. No meu entender, as duas coisas operam concomitantemente, como se fossem sistemas de ondas, uma delas sendo a do gênero literário que a escrita da história pode adotar (tragédia, comédia, tragicomédia etc.), e a outra, a da evidência.
Quanto aos filmes históricos, diria que as convenções cinematográficas têm um longo caminho a andar antes que os recursos dramáticos e visuais alcancem as regras da evidência e os recursos equivalentes aos da prosa. Estou pensando, por exemplo, na necessidade de convenções visuais e técnicas que expressem coisas equivalentes a "talvez" ou "há vários modos de se interpretar isso". Enfim, fazer um filme é muito mais complicado do que o comentário de Hayden White sugere.


Maria Lúcia G. Pallares-Burke é autora de "The Spectator, o Teatro das Luzes" (Hucitec) e "Nísia Floresta, O Carapuceiro e Outros Ensaios de Tradução Cultural" (Hucitec).


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