São Paulo, Domingo, 26 de Setembro de 1999
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POESIA
Ganhadora do Prêmio Camões, Sophia de Mello Breyner fala de seus métodos e dos encontros com autores brasileiros
A literatura da cisma

JOÃO ALMINO
especial para a Folha

Não veio como uma surpresa o Prêmio Camões -o principal prêmio literário dos países de língua portuguesa- para Sophia de Mello Breyner Andresen. Com 79 anos e frequentemente citada nos meios culturais lusitanos como a candidata por excelência ao Nobel, ela é a mais destacada poeta portuguesa contemporânea.
Nascida no Porto, cresceu num ambiente aristocrata. Já aos 12 anos, escreveu seus primeiros poemas. O primeiro livro, publicado em 1944, aos 24, sob o título de "Poesia", incluía textos escritos a partir dos 14. Seus muitos livros de poesia foram reunidos em 1990 na "Obra Poética", publicada pela Editorial Caminho, em três volumes. Desde então, lançou mais três livros: "Musa", em 1994; o livro/disco "Signo", no mesmo ano; e "O Búzio de Cós", em 1998. Também escreveu dois livros de ficção, "Os Contos Exemplares", de 1962, e "Histórias da Terra e do Mar", de 1984, além de ter-se dedicado à literatura infantil.
Havendo escrito poesia ao longo de toda uma vida, tem podido explorar muitas formas e uma gama variada de temas. Um dos mais presentes é a paisagem natural, descrita não à moda realista, mas mesclada de imagens abstratas, de sensações e de uma visão metafísica do mundo. Seguindo uma longa tradição portuguesa, Sophia é também uma poeta do mar e das navegações. É a poeta diante do mar, a contemplá-lo, ou a poeta a imaginar as viagens e as ilhas de utopia. Em contraste com a paisagem natural e com os valores da casa, em sua poesia o urbano é sobretudo caos e desarmonia. Uma exceção é seu poema a Brasília, "despojada e lunar como a alma de um poeta muito jovem" ("Brasília", em "Geografia", 1967).
Sophia mora num edifício antigo do bairro da Graça, em Lisboa. Numa parede das amplas salas, vários quadros de Almada Negreiros, um retrato seu feito por Arpad Zenes e uma pintura dedicada por Vieira da Silva. Essa mulher pequena, bonita e vivaz ainda tem o hábito de caminhar, às vezes longamente, até a Baixa e outros, peculiares, como voltar a dormir depois de despertar muito cedo, não tendo hora certa para almoçar e nem mesmo para escrever. Em geral dorme tarde, quase nunca antes das 2h, o que não surpreende que tenha concedido esta entrevista em meio a uma visita marcada, por sua sugestão, para as 22h15.

Folha - Como brasileiro, tenho uma certa curiosidade sobre essa ligação da senhora com alguns poetas brasileiros e com suas poesias, em especial Cecília Meireles e João Cabral. Por exemplo, um de seus poucos ensaios literários é sobre Cecília Meireles, não é?
Sophia de Mello Breyner Andresen -
Foi o primeiro ensaio que eu fiz. Sabe, eu nessa época achava que não sabia escrever em prosa. Eu tinha uma grande admiração pela Cecília, realmente. Há poemas da Cecília que eu continuo a saber de cor. "Foste tu que ensinaste aos homens que havia tempo e para te medir se inventaram as horas."

Folha - E como vocês se encontraram?
Sophia -
Aconteceu uma coisa, que não foi um encontro, foi mais um desencontro, porque nesse tempo eu estava muito metida nas lutas contra o salazarismo, e a Cecília estava em casa de um escultor que era muito boa pessoa, mas tinha uma mulher -ela já deve ter morrido- que lhe disse que eu era uma perigosa, e isso fez um bocado de confusão. Eu consegui... organizamos com os melhores escritores portugueses, com o Casais, o Jorge de Sena etc., uma sessão de homenagem à Cecília. E a Cecília não apareceu. E depois soubemos que lhe tinham dito que éramos uma organização de comunistas. E eu fui à sessão e li os poemas da Cecília com o mesmo entusiasmo. Quando daí a dois dias o amigo da Cecília que lá estava disse a ela que a sessão tinha sido muito bonita, a Cecília ficou arrependidíssima, porque tinha feito uma figura pouco simpática. A Cecília era muito bonita. Mas era uma mulher muito dominada.

Folha - No sentido de controlada?
Sophia -
Sim, mas deixe-me contar o fim da história. Então, daí a dois dias, dela recebi um grande cacho de uvas, pinhas do Natal e flores. Você sabe que eu nunca agradeci? Mas todos os Natais eu pus no presépio as pinhas que a Cecília me deu. Penso que ela sentiu um certo arrependimento.

Folha - E o encontro com o João Cabral?
Sophia -
Eu nunca tinha lido nada do João. E então... Ah, foi uma época maravilhosa! Estavam cá uns amigos, o José Paulo Moreira da Fonseca e a Ligia, e iam para Sevilha, convidados pelo João, iam para a casa do João. Disseram-me: por que você não vem também? Então fomos. Combinamos nos encontrar em Sevilha, na Praça Maior, e no meio da grande confusão encontramos um senhor com um ar muito triste que me disse assim: "Gosto muito de sua poesia, tem muito substantivo concreto". Fiquei muito espantada... porque eu não estava a par das idéias do João. Depois eu fui descobrindo a poesia do João. E o João, eu achava que ele era uma pessoa encantadora. Foi um maravilhamento. Eu lia a poesia que ele ainda não havia publicado. O poema da cabra, por exemplo. E ele gostava muito de me ouvir ler. Eu nesse tempo tinha boa voz.

Folha - O que é a poesia para quem tem dedicado a ela toda uma vida?
Sophia -
Eu acho muito difícil dizer o que é a poesia. Eu não tenho idéias feitas sobre as coisas e cada vez tenho menos idéias, sabe? E já digo: eu não penso, só cismo. De maneira que eu escrevo não pensando na imagem nem na frase, mas com o sentido literal, ao deus-dará. Sou um pouco assim. Mas uma das melhores definições que eu conheço é do Jorge de Sena, que diz: "A poesia é para mim a mais profunda responsabilidade do homem, a responsabilidade de estar vivo".

Folha - Há quem compare Brasília a Washington. Mas sobre Brasília a senhora escreveu um belo poema, dando a impressão de que gostou da cidade. Por que Brasília não lhe causa a mesma má impressão que Washington?
Sophia -
Washington, a única coisa que tem de bonito são os museus, mas lá dentro quase tudo é europeu, não é?

Folha - E Brasília?
Sophia -
Brasília? Ah, é muito estranho, primeiro uma cidade que foi construída a partir de uma idéia, não é? A partir da arte mais abstrata, que é a arquitetura, não é? E com coisas lindíssimas. Devem achar difícil para viver, talvez seja, mas para ver é melhor que as cidades antigas. Eu gostei imensíssimo, achei lindo. E, depois, havia ao lado aqueles bairros aonde se ia comer comida brasileira muito boa. Mas eu também gostei imensíssimo da arquitetura, da cidade que saiu da cabeça de Júpiter, como Atenas, não é? Gostei muito, não tem aquela sensação de peso como Nova York... Mas é uma cidade apaixonante, não é?

Folha - A senhora é uma jovem de quase 80 anos que...
Sophia -
Não, não tenho quase 80 anos...

Folha - Completará em novembro, não é?
Sophia -
79.

Folha - Então?! Uma jovem que testemunhou muito do século 20 e que assistirá a esse momento simbólico da passagem do milênio. Pergunto-lhe: como encara o futuro da humanidade? Acha que ela está seguindo um bom caminho?
Sophia -
Eu tenho medo de que seja a idade de chumbo, não? Porque está muito sombrio. Quando se vê a guerra do Kosovo, sem as regras de moral, em que se perde até aquilo que os romanos tinham, que era o respeito pelo direito das gentes, dos povos -está claro que eles não tinham sempre, mas em si o direito instituíram-, e esse enorme poder concentrado num único país, que é muito mais próspero que os outros e que é capaz de fazer uma guerra sem saber por quê, sem preparação, sem pensamento, sem nada.

Folha - Sabe de uma coisa que há no Brasil que não há nos EUA?
Sophia -
Há uma aristocracia. Na América não há. Eu acho que é uma coisa diferente.

Folha - Tem a ver com o fato de termos tido monarquia e não termos tido uma guerra civil que eliminasse a aristocracia rural?
Sophia -
Para a América foi o pior da Inglaterra. Já para o Brasil foi o melhor de Portugal, em muitos aspectos.

Folha - A senhora acha, então, positiva a sobrevivência aristocrática?
Sophia -
Acho positiva porque, primeiro, em Portugal pelo menos, há uma grande afinidade entre a gente da velha família e um pescador, por exemplo. Há uma relação, um certo entendimento. O americano, como o novo rico, não sabe nada de nada.

Folha - Com esses comentários a senhora dá a entender que...
Sophia -
Que sou de direita?

Folha - Que sente uma certa nostalgia da aristocracia.
Sophia -
Não, tenho nostalgia de certas coisas que desapareceram.

Folha - Mas, pensando em Portugal, houve também mudanças positivas, não é?
Sophia -
Havia uma guerra em que morreram soldados e tudo. Salazar nunca foi à África. O país não estava rico com Angola, Moçambique. E os portugueses viviam miseravelmente, quase com fome.

Folha - A senhora sonhou com a revolução e viveu intensamente a revolução, tendo escrito dois belíssimos poemas emblemáticos do 25 de abril. Que balanço faz hoje das conquistas?
Sophia -
Eu fiz o balanço num conto que escrevi, mas ainda não publicado.

Folha - Pelo visto, um conto com uma dose de humor...
Sophia -
Sim, tem muito humor.

Folha - Não daria para resumi-lo aqui em poucas palavras?
Sophia -
Posso resumir, mas não sei se resumo bem.

Folha - Por favor...
Sophia -
Havia um cego que passava aqui pela minha rua e que cantava cantigas assim um bocado indiferentes e tudo. Mas num belo dia passou aqui um filme, não sei se você viu, sobre a vida do Toulouse Lautrec. Então havia uma cantiga horrorosa que ele cantava, com uma letra horrorosa, que era: "Toulouse Lautrec era aleijadinho, ia ao Moulin Rouge empapar-se com vinho". Eu achava isso como uma miséria humana e me fazia muita confusão, porque o cego era bonito, devia ter uma mulher em casa que tratava muito bem dele -ou a mulher ou a filha ou uma irmã. Quando eu descia a rua, ficava um bocado triste ao ouvir o cego cantar aquela cantiga. Quando veio o 25 de abril, nós ouvimos o cego a cantar com toda a força: "Avante, camarada!".
Essa gente aqui deste bairro... Há um povo quase pequena burguesia, mini-burguesia, que é bastante conservador, não é? No dia da revolução, meu marido chegou e disse assim: "Ganhou a revolução!". E eu comecei a dar palmas e vi que só lá num cocuruto qualquer é que alguém deu palmas também. É verdade! Mas, depois das peripécias da revolução, veio o 25 de novembro, e fazem uma reconversão. Mas, em todo o caso, havia outra coisa no sonho das pessoas. Só lhe digo que, no dia seguinte, de manhã, o cego desceu a rua a cantar outra vez: "Toulouse Lautrec era aleijadinho...".


João Almino é escritor e diplomata brasileiro, autor, entre outros, dos romances "Idéias para Onde Passar o Fim do Mundo" e "Samba-Enredo" (Marco Zero).


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