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POESIA
Ganhadora do Prêmio Camões, Sophia de Mello Breyner fala de seus métodos e dos encontros com autores brasileiros
A literatura da cisma
JOÃO ALMINO
especial para a Folha
Não veio como uma surpresa o
Prêmio Camões -o principal
prêmio literário dos países de língua portuguesa- para Sophia de
Mello Breyner Andresen. Com 79
anos e frequentemente citada nos
meios culturais lusitanos como a
candidata por excelência ao Nobel, ela é a mais destacada poeta
portuguesa contemporânea.
Nascida no Porto, cresceu num
ambiente aristocrata. Já aos 12
anos, escreveu seus primeiros
poemas. O primeiro livro, publicado em 1944, aos 24, sob o título
de "Poesia", incluía textos escritos
a partir dos 14. Seus muitos livros
de poesia foram reunidos em 1990
na "Obra Poética", publicada pela
Editorial Caminho, em três volumes. Desde então, lançou mais
três livros: "Musa", em 1994; o livro/disco "Signo", no mesmo
ano; e "O Búzio de Cós", em 1998.
Também escreveu dois livros de
ficção, "Os Contos Exemplares",
de 1962, e "Histórias da Terra e do
Mar", de 1984, além de ter-se dedicado à literatura infantil.
Havendo escrito poesia ao longo de toda uma vida, tem podido
explorar muitas formas e uma gama variada de temas. Um dos
mais presentes é a paisagem natural, descrita não à moda realista,
mas mesclada de imagens abstratas, de sensações e de uma visão
metafísica do mundo. Seguindo
uma longa tradição portuguesa,
Sophia é também uma poeta do
mar e das navegações. É a poeta
diante do mar, a contemplá-lo, ou
a poeta a imaginar as viagens e as
ilhas de utopia. Em contraste com
a paisagem natural e com os valores da casa, em sua poesia o urbano é sobretudo caos e desarmonia. Uma exceção é seu poema a
Brasília, "despojada e lunar como
a alma de um poeta muito jovem"
("Brasília", em "Geografia",
1967).
Sophia mora num edifício antigo do bairro da Graça, em Lisboa.
Numa parede das amplas salas,
vários quadros de Almada Negreiros, um retrato seu feito por
Arpad Zenes e uma pintura dedicada por Vieira da Silva. Essa mulher pequena, bonita e vivaz ainda
tem o hábito de caminhar, às vezes longamente, até a Baixa e outros, peculiares, como voltar a
dormir depois de despertar muito
cedo, não tendo hora certa para
almoçar e nem mesmo para escrever. Em geral dorme tarde,
quase nunca antes das 2h, o que
não surpreende que tenha concedido esta entrevista em meio a
uma visita marcada, por sua sugestão, para as 22h15.
Folha - Como brasileiro, tenho
uma certa curiosidade sobre essa ligação da senhora com alguns poetas brasileiros e com
suas poesias, em especial Cecília
Meireles e João Cabral. Por
exemplo, um de seus poucos
ensaios literários é sobre Cecília
Meireles, não é?
Sophia de Mello Breyner Andresen - Foi o primeiro ensaio
que eu fiz. Sabe, eu nessa época
achava que não sabia escrever em
prosa. Eu tinha uma grande admiração pela Cecília, realmente.
Há poemas da Cecília que eu continuo a saber de cor. "Foste tu que
ensinaste aos homens que havia
tempo e para te medir se inventaram as horas."
Folha - E como vocês se encontraram?
Sophia - Aconteceu uma coisa,
que não foi um encontro, foi mais
um desencontro, porque nesse
tempo eu estava muito metida
nas lutas contra o salazarismo, e a
Cecília estava em casa de um escultor que era muito boa pessoa,
mas tinha uma mulher -ela já
deve ter morrido- que lhe disse
que eu era uma perigosa, e isso fez
um bocado de confusão. Eu consegui... organizamos com os melhores escritores portugueses,
com o Casais, o Jorge de Sena etc.,
uma sessão de homenagem à Cecília. E a Cecília não apareceu. E
depois soubemos que lhe tinham
dito que éramos uma organização
de comunistas. E eu fui à sessão e
li os poemas da Cecília com o
mesmo entusiasmo. Quando daí
a dois dias o amigo da Cecília que
lá estava disse a ela que a sessão tinha sido muito bonita, a Cecília ficou arrependidíssima, porque tinha feito uma figura pouco simpática. A Cecília era muito bonita.
Mas era uma mulher muito dominada.
Folha - No sentido de controlada?
Sophia - Sim, mas deixe-me
contar o fim da história. Então,
daí a dois dias, dela recebi um
grande cacho de uvas, pinhas do
Natal e flores. Você sabe que eu
nunca agradeci? Mas todos os Natais eu pus no presépio as pinhas
que a Cecília me deu. Penso que
ela sentiu um certo arrependimento.
Folha - E o encontro com o
João Cabral?
Sophia - Eu nunca tinha lido
nada do João. E então... Ah, foi
uma época maravilhosa! Estavam
cá uns amigos, o José Paulo Moreira da Fonseca e a Ligia, e iam
para Sevilha, convidados pelo
João, iam para a casa do João. Disseram-me: por que você não vem
também? Então fomos. Combinamos nos encontrar em Sevilha, na
Praça Maior, e no meio da grande
confusão encontramos um senhor com um ar muito triste que
me disse assim: "Gosto muito de
sua poesia, tem muito substantivo
concreto". Fiquei muito espantada... porque eu não estava a par
das idéias do João. Depois eu fui
descobrindo a poesia do João. E o
João, eu achava que ele era uma
pessoa encantadora. Foi um maravilhamento. Eu lia a poesia que
ele ainda não havia publicado. O
poema da cabra, por exemplo. E
ele gostava muito de me ouvir ler.
Eu nesse tempo tinha boa voz.
Folha - O que é a poesia para
quem tem dedicado a ela toda
uma vida?
Sophia - Eu acho muito difícil
dizer o que é a poesia. Eu não tenho idéias feitas sobre as coisas e
cada vez tenho menos idéias, sabe? E já digo: eu não penso, só cismo. De maneira que eu escrevo
não pensando na imagem nem na
frase, mas com o sentido literal, ao
deus-dará. Sou um pouco assim.
Mas uma das melhores definições
que eu conheço é do Jorge de Sena, que diz: "A poesia é para mim
a mais profunda responsabilidade do homem, a responsabilidade
de estar vivo".
Folha - Há quem compare Brasília a Washington. Mas sobre
Brasília a senhora escreveu um
belo poema, dando a impressão
de que gostou da cidade. Por
que Brasília não lhe causa a
mesma má impressão que Washington?
Sophia - Washington, a única
coisa que tem de bonito são os
museus, mas lá dentro quase tudo
é europeu, não é?
Folha - E Brasília?
Sophia - Brasília? Ah, é muito
estranho, primeiro uma cidade
que foi construída a partir de uma
idéia, não é? A partir da arte mais
abstrata, que é a arquitetura, não
é? E com coisas lindíssimas. Devem achar difícil para viver, talvez
seja, mas para ver é melhor que as
cidades antigas. Eu gostei imensíssimo, achei lindo. E, depois, havia ao lado aqueles bairros aonde
se ia comer comida brasileira
muito boa. Mas eu também gostei
imensíssimo da arquitetura, da cidade que saiu da cabeça de Júpiter, como Atenas, não é? Gostei
muito, não tem aquela sensação
de peso como Nova York... Mas é
uma cidade apaixonante, não é?
Folha - A senhora é uma jovem
de quase 80 anos que...
Sophia - Não, não tenho quase
80 anos...
Folha - Completará em novembro, não é?
Sophia - 79.
Folha - Então?! Uma jovem
que testemunhou muito do século 20 e que assistirá a esse
momento simbólico da passagem do milênio. Pergunto-lhe:
como encara o futuro da humanidade? Acha que ela está seguindo um bom caminho?
Sophia - Eu tenho medo de que
seja a idade de chumbo, não? Porque está muito sombrio. Quando
se vê a guerra do Kosovo, sem as
regras de moral, em que se perde
até aquilo que os romanos tinham, que era o respeito pelo direito das gentes, dos povos -está
claro que eles não tinham sempre,
mas em si o direito instituíram-,
e esse enorme poder concentrado
num único país, que é muito mais
próspero que os outros e que é capaz de fazer uma guerra sem saber por quê, sem preparação, sem
pensamento, sem nada.
Folha - Sabe de uma coisa que
há no Brasil que não há nos
EUA?
Sophia - Há uma aristocracia.
Na América não há. Eu acho que é
uma coisa diferente.
Folha - Tem a ver com o fato
de termos tido monarquia e não
termos tido uma guerra civil
que eliminasse a aristocracia rural?
Sophia - Para a América foi o
pior da Inglaterra. Já para o Brasil
foi o melhor de Portugal, em muitos aspectos.
Folha - A senhora acha, então,
positiva a sobrevivência aristocrática?
Sophia - Acho positiva porque,
primeiro, em Portugal pelo menos, há uma grande afinidade entre a gente da velha família e um
pescador, por exemplo. Há uma
relação, um certo entendimento.
O americano, como o novo rico,
não sabe nada de nada.
Folha - Com esses comentários
a senhora dá a entender que...
Sophia - Que sou de direita?
Folha - Que sente uma certa
nostalgia da aristocracia.
Sophia - Não, tenho nostalgia
de certas coisas que desapareceram.
Folha - Mas, pensando em Portugal, houve também mudanças
positivas, não é?
Sophia - Havia uma guerra em
que morreram soldados e tudo.
Salazar nunca foi à África. O país
não estava rico com Angola, Moçambique. E os portugueses viviam miseravelmente, quase com
fome.
Folha - A senhora sonhou com
a revolução e viveu intensamente a revolução, tendo escrito
dois belíssimos poemas emblemáticos do 25 de abril. Que balanço faz hoje das conquistas?
Sophia - Eu fiz o balanço num
conto que escrevi, mas ainda não
publicado.
Folha - Pelo visto, um conto
com uma dose de humor...
Sophia - Sim, tem muito humor.
Folha - Não daria para resumi-lo aqui em poucas palavras?
Sophia - Posso resumir, mas
não sei se resumo bem.
Folha - Por favor...
Sophia - Havia um cego que
passava aqui pela minha rua e que
cantava cantigas assim um bocado indiferentes e tudo. Mas num
belo dia passou aqui um filme,
não sei se você viu, sobre a vida do
Toulouse Lautrec. Então havia
uma cantiga horrorosa que ele
cantava, com uma letra horrorosa, que era: "Toulouse Lautrec era
aleijadinho, ia ao Moulin Rouge
empapar-se com vinho". Eu achava isso como uma miséria humana e me fazia muita confusão,
porque o cego era bonito, devia
ter uma mulher em casa que tratava muito bem dele -ou a mulher ou a filha ou uma irmã.
Quando eu descia a rua, ficava um
bocado triste ao ouvir o cego cantar aquela cantiga. Quando veio o
25 de abril, nós ouvimos o cego a
cantar com toda a força: "Avante,
camarada!".
Essa gente aqui deste bairro...
Há um povo quase pequena burguesia, mini-burguesia, que é bastante conservador, não é? No dia
da revolução, meu marido chegou e disse assim: "Ganhou a revolução!". E eu comecei a dar palmas e vi que só lá num cocuruto
qualquer é que alguém deu palmas também. É verdade! Mas, depois das peripécias da revolução,
veio o 25 de novembro, e fazem
uma reconversão. Mas, em todo o
caso, havia outra coisa no sonho
das pessoas. Só lhe digo que, no
dia seguinte, de manhã, o cego
desceu a rua a cantar outra vez:
"Toulouse Lautrec era aleijadinho...".
João Almino é escritor e diplomata brasileiro, autor, entre outros, dos romances "Idéias
para Onde Passar o Fim do Mundo" e "Samba-Enredo" (Marco Zero).
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