São Paulo, domingo, 26 de setembro de 2004

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"Terrenos Vulcânicos" reúne ensaios do alemão Dolf Oehler que abordam a estética de Baudelaire, Flaubert e Delacroix, rebatendo críticas como as de Brecht e Sartre

LIBERDADE VIGIADA

Kathrin Rosenfield
especial para a Folha

Há livros que nos dão vontade de imitar Pierre Ménard: estancam veleidades criativas e nos convidam a simplesmente copiar -palavra por palavra. É um privilégio ter em mãos "Terrenos Vulcânicos", um conjunto de textos inéditos do crítico alemão Dolf Oehler, que a Cosacnaify lança com uma bela tradução a oito mãos. É um privilégio -mesmo para pessoas que normalmente se entediam com sociocrítica. A contracapa anuncia um "livro rebelde", "na contramão de boa parte da crítica e da história literárias". Tanto pior para a história literária, então, pois meia página basta para convencer o leitor da absoluta segurança de juízo, do conhecimento profundo e do dom incomum de síntese desse crítico. Seu estilo sereno, límpido e elegante torna cristalinas as mais intrincadas camadas da interpretação, conciliando os comentários sociocríticos com um raro respeito pela delicadeza da arte. Assim, a gênese da estética antiburguesa de Baudelaire e Flaubert, de Heinrich Heine e Barbier, de Daumier e Delacroix surge com plasticidade ímpar. Deixando intacta a aura poética, Oehler revela as reflexões políticas dos autores e suas estratégias para despistar a censura ou de rebater incriminações graças ao próprio estilo, valendo-se da feitura artística que distingue a obra no seu valor poético. Nem o leitor pouco otimista com a eficácia da caça aos subtextos políticos e sociológicos resistirá às sutis análises das correspondências que o imaginário de Flaubert estabelece entre o cotidiano burguês e a história universal na era civil-burguesa. Desenham-se os vasos comunicantes entre "formas de conduta, processos eróticos e processos político-econômicos, entre neurose individual e coletiva". Contra o consenso maciço da crítica de esquerda, Oehler se distancia das convencionais críticas à suposta "cegueira histórica de Gustave Flaubert", desmentindo paulatinamente a acusação da "sua neurótica falta de senso de realidade". Com tato incomum, ele coloca limites aos desvarios ideológicos até mesmo quando se trata de nomes como Brecht ou Sartre: "Por mais que saiba formular boas questões, Jean-Paul Sartre é muitas vezes um simplificador em matéria de crítica literária. É consternador vê-lo dissertar sobre o século 19 de modo ainda mais burguês que os burgueses que tanto abomina". Por mais reticentes que sejamos, Oehler nos atrai irresistivelmente aos segredos da sorrateira verve que Baudelaire desempenha, por exemplo, no "Salão de 1846", mostrando (e provando!) o elo oculto nas aparentes incongruências da prosa baudelairiana. É preciso ser Oehler para evidenciar que os hiatos de Baudelaire criam sutis linhas de sutura nas quais vem à luz a necessidade surpreendente do acaso.

O ministro e o assassino
Um dos exemplos é um comentário iluminando a nova e original concepção de heroísmo elabora por Baudelaire a partir de duas notícias contíguas do [jornal] "Moniteur" de janeiro de 1844. Uma fala da pronunciação do desdém triunfal de Guizot numa turbulenta sessão da Câmara, a outra, da condenação à morte de um assassino, homem do povo que "declarara guerra à sociedade, sem mais hesitar antes de qualquer crueldade". As duas faces do herói moderno -a do ministro homenageado e a do proletário condenado à morte- evidenciam as secretas analogias entre o "espetáculo da vida elegante" e o cenário "das milhares de existências flutuantes nos subterrâneos da grande cidade".
Se os jornais podem elogiar a arrogância orgulhosa do ministro Guizot -famoso pelo seu proverbial ditado "enrichissez-vous!" [enriquecei-vos]-, é preciso enaltecer também o sangue-frio do assassino Poulman, de quem Baudelaire realça o "sentido firme de dignidade moral". Como um "grand protestant", ele denuncia que "a sociedade mandara um inocente para o cativeiro" -o qual reproduz a violência com selvageria calculada, "sem hesitar antes de qualquer crueldade".
Na hábil montagem de Baudelaire, o orgulho proletário de Poulman adquire um vulto mais impressionante que o do elegante ministro Guizot, que desafiara todas "as cóleras exteriores", já que estas "jamais se erguerão acima do meu desdém". O homem do povo comprova uma audácia legitimamente heróica ao prever e solicitar que a sociedade "responda a seu grito selvagem com a ação enérgica da lei".
Teria muito a falar ainda das reservas judiciosas com que Oehler se distancia dos parti pris ideológicos de Brecht, Benjamin e Sartre ou das ambivalências de Heine. Mais vale, no entanto, concluir com a análise dos sorrateiros retrocessos da imagem da mulher, quando esta se confunde com a alegoria da liberdade na visão de Heine, Barbier e Delacroix: "Eugène Delacroix sintetiza, naquela figura triunfal que até hoje parece ser a própria encarnação do mito, os momentos contraditórios do mito, os medos e desejos manifestamente inconciliáveis que, desde 1789, amigos e inimigos haviam associado a ela". Heine soube apreciar "o corpo belo, impetuoso, um rosto de perfil bravio, uma dor insolente nos traços, uma estranha mistura de jacobina, feirante e deusa da liberdade" e zomba dos partidários do Antigo Regime, definitivamente deixados para trás pelo resoluto avançar da feminilidade livre. Mas o interesse do estudo está nas finas comparações. Apesar da inquestionável superioridade, Heine teve de ceder seu lugar como poeta da revolução a Auguste Barbier, "que ousou dar o passo de ligar a liberdade e o prazer", ao "postular a unidade da potência revolucionária com a sexual". "Salta aos olhos a alegria de Barbier por ter achado um argumento capaz de vexar também moralmente os inimigos da liberdade: se o distinto "libertin" difama a "Liberté", é porque ele é efeminado demais para uma tal mulher. Para responder à grosseria, grosseria e meia: a liberdade, sendo "puta", zomba dos eunucos."

O avesso da moda
Oehler mostra não somente como o poema de Barbier criou uma moda -a do exibicionismo viril que instaura "a idéia de que são necessárias forças de jibóia para possuir a liberdade e fazer bom papel no seu colo gigantesco"- ; mostra também o avesso tristemente reacionário dessa ousadia aparentemente libertária e emancipatória. Pois a alegoria da liberdade sempre veicula um discurso mais que regressivo, verdadeiramente opressor, sobre o papel da mulher e do erotismo. Essa pode se chamar de liberdade, porém se molda segundo a velha imagem masculina e judaico-cristã.
Aparentemente onipotente, ela não passa de produto indefeso de uma atribuição de papéis: "É a primeira mentira a revolução e, ao mesmo tempo, seu pecado original".
É simplesmente admirável o modo como essa crítica comprometida com a causa da emancipação (social, feminina e humana) rastreia também todos os refluxos e retrocessos da conquista da liberdade, seus tristes contra-sensos e suas sorrateiras perversões.


Kathrin H. Rosenfield é professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e autora de "Antígona - De Sófocles a Hölderlin" (ed. L&PM).

Terrenos Vulcânicos
224 págs., R$ 29,80
de Dolf Oehler. Trad. Samuel Titan Jr., Márcio Suzuki, Luís Repa, José Bento Ferreira. Cosacnaify (r. General Jardim, 770, 2º andar, CEP 01223-010, SP, tel. 0/xx/11/ 3218-1444).



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