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São Paulo, domingo, 26 de outubro de 2003

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Casa de Carlyle, 24 de fevereiro [de 1909]

O ônibus passou do ponto. Fui parar depois do aterro, vi umas velas marrons para lá de um depósito de madeira. Suponho que fosse assim 50 anos atrás. Foi assim que os Carlyle conheceram o lugar; mas agora sua casa tem colunas de estuque e os descampados foram esmagados por grandes edifícios municipais de tijolo acinzentado. Imagino Carlyle [1795-1881] perambulando por ruelas lamacentas e sentisse a brisa salgada do rio, quase à sua porta. Chelsea deve ter sido um bairro amplo, com fileiras de casinhas do século 18 separadas por descampados e lamaçais e baixios com barquinhos encalhados ao longo do rio. A sra. Carlyle ainda fala de descer a Westminster "pela água".
Mas Cheyne Row está acabada, e a casa de Carlyle já tem a aparência de algo preservado à força; parece incongruente agora, entre respeitáveis mansões familiares. Entrei, e uma mulher com um forte sotaque escocês me guiou. Por que se faz uma coisa dessas? Não sei o que esperava encontrar -fosse como fosse, alguma coisa menos fria e formal.
No meio dos cômodos, havia caixas de vidro com amostras de manuscritos; de resto, tudo estava bem vazio. Havia retratos da sra. Carlyle que pareciam intrigados com os estranhos, como se ela perguntasse o que haviam visto, afinal de contas: será que achavam que sua casa fora assim? Ela os teria tolerado por um segundo sequer?
Nos retratos, seus olhos são descaídos e têm uma expressão singular, de humor e melancolia dormentes, que produzem a expressão intrigada de que falei; a qualquer momento, poderiam reluzir de paixão ou brilhar de ternura.
Suponho que, quando ela ainda vivia, a expressão deve ter sido quase sempre de zombaria, com um fundo de pathos; um rosto triste, apesar dos olhos brilhantes; as últimas fotografias, que exageram as bochechas encovadas e estendem o lábio superior, são horríveis. Os olhos são a única parte com calor e profundidade; o resto é pele granulosa, repuxada sobre o crânio.
A casa é clara e espaçosa; mas é um lugar silencioso, que só com muita imaginação recobra vida novamente -é preciso mostrar todas as "invenções" dela (1); e ver, de algum modo, a figura esguia e macilenta de Carlyle, sentado ou deitado, de cachimbo na mão; e ouvir os surtos de conversa, tudo com sotaque escocês; e a gargalhada profunda. Suponho que a sra. Carlyle fosse bem empertigada, mas muito frágil, divertida, crítica também, fazendo o relato do dia e açoitando alguma "admiradora" com uma frase ou duas.
Será que sempre se notou uma frieza entre eles? O único vínculo era o briho do intelecto. É o que imagino.
A coisa mais natural era o jardim, com suas bandeirolas e um toco de árvore.

Nota do tradutor
1. Era assim que Carlyle se referia às disposições domésticas de sua mulher.


Copyright: The Estate of Virginia Woolf. Publicado com permissão da Sociedade dos Autores, Londres, como representante literária do espólio de Virginia Woolf.
Tradução de Samuel Titan Jr..


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