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São Paulo, domingo, 26 de outubro de 2003

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Ponto de fuga

O paradoxo e a vertigem

Jorge Coli
especial para a Folha

O lugar do tempo é sem medida, onde cada um de nós toca, simultaneamente, épocas distantes. O fluir aparente, a imobilidade pressentida pertencem à natureza do tempo: é Proust quem se inquieta assim nas páginas de "Em Busca do Tempo Perdido".
As artes "do tempo", como a literatura, a música, o cinema, são aquelas que deixam intuir de modo mais claro a superposição entre todo e fluência. Basta ouvir, mesmo pela primeira vez, o motivo expressivo que emerge no prelúdio de "Tristão e Isolda" para adivinhar o núcleo essencial do drama que deve ainda ocorrer. Quando se conhece a ópera inteira, o tema já concentrou, no que é, aquilo que foi e aquilo que virá.
Paradoxos do tempo formam o eixo da saga "O Exterminador do Futuro", estrelada por Schwarzenegger, que conheceu um terceiro painel neste ano. Os dois primeiros, dirigidos por James Cameron, eram bem diferentes entre si. "Terminator", de 1984, mostrava uma trama estrita, necessária, fulminante. "Terminator 2 - O Julgamento Final", de 1991, deixava-se tomar, de modo esplêndido, pelos novos efeitos digitalizados. Num, era o thriller que comandava, no outro, um formidável sentido do espetáculo. Cada um se sintonizou com o seu momento, e o mote do futuro e do passado que se amalgamam conhecia, assim, uma espécie de progresso. Na terceira versão, "A Rebelião das Máquinas", a volta ao passado, na história, corresponde a uma volta ao passado do próprio cinema, a uma busca de referências nos modos antigos do gênero de ação. O cenário final, refúgio e cárcere, retoma o modo como, em 1965, se podia imaginar os anos 2000.


Bíceps - "Terminator 3" traz de volta o velho e bom robô mecânico, sólido e nada virtual, como os que sonhara Hoffmann, e como Fritz Lang concebeu em "Metropolis". A cena de perseguição com carros e caminhões é formidável, marcada por um sentimento de embate material. Esse caráter físico é forte no filme, mas a ele se acrescenta a angústia de Édipo em conflito com o destino: retificar o que estava escrito, corrigir o que está por vir, negar a profecia. No ciclo de "O Exterminador do Futuro", a necessidade primeira de salvar a espécie se acompanha de outra, mais essencial: salvar o que pode ser humano. O tema clássico do humanismo ameaçado pelas máquinas toma nova espessura, muito complexa, instaurada pelo dever e pela culpa, pela escolha, pela contradição. As angústias ali contidas nascem da misteriosa natureza do tempo, em que conhecido e desconhecido formam o avesso e o direito.
Os três "Terminator" rompem a totalidade temporal da obra para projetá-la num destino inacabado e incompleto, cada vez renascendo em busca da determinação que lhe dá sentido.

Entranhas - Comentário, em deriva diversa, que Antoine Seel envia a esta coluna, retomando o que foi escrito sobre "Caçado", de Friedkin, no "Ponto de Fuga" do último domingo: "Só a violência reina as violências. Violência feia dos massacres, quer dizer, do desequilíbrio: sérvios exterminando albaneses, caçador dispondo armadilhas para lobos, homens de negócio no encalço do cervo, carros ou helicópteros do FBI perseguindo sua presa. Violência feia, sem ritual; violência sobrearmada. Em oposição, a violência do par mestre/discípulo. Violência primeira, ritual, bela. Mas violência ainda mais extrema, mais eficaz, mais violenta. Não é, em minha opinião, Deus que teria sido substituído pelos poderes de um militarismo enlouquecido; é a crueldade e a piedade de Deus, da sociedade, que são ultrapassadas pela violência sem motivo. Na sociedade, na religião, crueldade e piedade vêm juntas: Deus retém Abraão. Mas, no filme, não há sadismo nem religião nem pátria. Essa violência, ao contrário da da Bíblia ou da sociedade, não deixa nenhuma esperança, verdadeira ou falsa, sincera ou hipócrita".

Miolos - Basta afastar preconceitos ou hábitos mentais para perceber a inteligência reflexiva presente no cinema de ação americano. Essa força não depende de intenções expressas. Brota no contar de uma história, no fazer-se espetáculo.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br


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