São Paulo, domingo, 26 de outubro de 2008

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O ciúme é o inferno

SETE ANOS APÓS O SUCESSO MUNDIAL DE "A VIDA SEXUAL DE CATHERINE M.", A CRÍTICA E CURADORA CATHERINE MILLET CONTA, EM "DIA DE SOFRIMENTO", COMO O CIÚME PENETROU EM SEU CASAMENTO

Bettina Rheims/Reprodução
Catherine Millet em seu escritório, em Paris, decorado com fotografias em que aparece nua feitas por seu marido

JÉRÔME GARCIN
E la, ciumenta? Isso é algo que não esperávamos. Catherine Millet, conforme sua própria lenda faz prever, parecia ser tão pouco possessiva, tão generosa com seu próprio corpo, tão disposta a oferecer-se a qualquer pessoa que pudesse lhe dar prazer que não se poderia imaginá-la como tigresa mostrando as garras para impedir rivais jovens de se aproximarem de seu marido.
É preciso recordar o terremoto inacreditável provocado em 2001 por "A Vida Sexual de Catherine M." [Ediouro; será relançado em 2009], do qual foram vendidos mais de 1,2 milhão de exemplares em todo o mundo.
Uma mulher então na casa dos 50 anos, diretora da revista "Art Press", curadora de exposições, especialista em Salvador Dalì e Yves Klein, ela escreveu: "Participei de uma suruba pela primeira vez nas semanas que se seguiram à minha defloração". E acrescentou: "Me pegam e me viram em todos os sentidos que querem".
Num tom propositalmente neutro e lacônico, ela contava como se entregava a "um número incalculável de mãos e de cacetes", "trepava além de toda repugnância", transava com homens anônimos em estacionamentos subterrâneos, em estádios ao ar livre, nos bosques da capital, em cabines de caminhões, em cemitérios, estações, em armários de salas de exposição e até mesmo nos escritórios da "Art Press".
Apesar disso, essa mulher tinha e ainda tem um amor fixo: o escritor Jacques Henric, que conheceu quando tinha 24 anos, ele próprio autor de "Légendes de Catherine M." [Lendas de Catherine M."].
Se ela via suas próprias e maquinais práticas sexuais como anedóticas, por outro lado elevava o casal à altura de um absoluto. Indiferente à higiene, aos preconceitos e mais ainda aos sentimentos, ela deixava homens de passagem dispor de seu corpo, julgando que isso não comprometia sua pessoa, mas reservava para seu marido, que convertera em "um mito", o corpo exclusivo do amor.
Então, no dia em que Catherine descobriu que Jacques Henric, de seu lado, não se privava de ter aventuras, ela desabou. "Jour de Souffrance" [Dia de Sofrimento, Flammarion, 280 págs., 20, R$ 59, a ser lançado em 2009 pela Ediouro] é o relato metódico desse ciúme que nasce quase que por acaso, cresce com a rapidez de uma erva daninha, invade o espaço vital, prospera, sufoca, destrói e jamais se entrega.
À medida que vasculha os papéis do marido, controla suas idas e vindas e avança em sua investigação, Catherine Millet descreve de maneira clínica a aceleração vertiginosa de seu ritmo cardíaco, sua dificuldade em respirar, suas crises de angústia, de raiva, de lágrimas, seus pesadelos recorrentes, os fantasmas que sua desconfiança cria hora após hora ("eu não sonhava mais com minha própria vida sexual, sonhava com a de Jacques"), a extensão de sua confusão, os ansiolíticos que engole em vão, os conflitos cada vez mais abertos com aquele que ela suspeita de "incansáveis façanhas priápicas com outras mulheres".
E, para tentar entender sua dor com a razão, ela busca em sua infância, seu passado, sua vida, a origem obscura de sua dor, a explicação de sua disposição natural em imaginar o melhor com o pior.
Escrito em uma linguagem muito bonita e elegante, "Dia de Sofrimento" explora, de maneira muito singular, uma doença atemporal e universal.
É também uma comovente canção de amor por aquele que, em "Lendas de Catherine M.", escreveu, como se quisesse tranquilizá-la: "Todos os corpos e todas as existências de mulheres que habitam meus romances e meus ensaios foram forjados a partir dela".

 

PERGUNTA - A sra. imaginou por um instante que "A Vida Sexual de Catherine M." seria um sucesso tão grande -mais de 700 mil exemplares vendidos na França- e que seria traduzido para 40 línguas?
CATHERINE MILLET -
Não, de maneira nenhuma. Escrevi esse livro de maneira bastante ingênua, sem por um instante medir o alcance do que estava fazendo. Minha única preocupação era não causar constrangimento às pessoas que vivem a meu redor. Não pensei nem no sucesso nem no contrário: a censura, que teria podido atingir aquele texto propositalmente cru.

PERGUNTA - "A Vida Sexual de Catherine M." tornou-se muito rapidamente um fenômeno social. Em que isso mudou sua vida?
MILLET -
Graças às traduções, a aventura do livro durou três anos, durante os quais eu me diverti loucamente.
Viajei muito, participei de programas de TV inesperados, encontrei pessoas de todo tipo, recebi uma quantidade impressionante de correspondência.
Sobretudo cartas de homens, que me relatavam sua vida sexual em detalhes e profusão.
Mais de homens simples, aliás, que de intelectuais -desde um detento numa prisão num fim de mundo dos EUA até um condutor de trens inglês que encontrou meu livro abandonado num banco do vagão.
O cuidado e o rigor com que me descreviam sua sexualidade mostravam que, de certa maneira, queriam fazer como eu.

PERGUNTA - Ao mesmo tempo em que saía "A Vida Sexual de Catherine M.", era lançado "Lendas de Catherine M.", de seu marido, Jacques Henric. Nele, ele a fotografou nua e explicou porque, por 30 anos, a sra. foi a atriz central não apenas de sua vida, mas também de seus romances. Ele chegou a escrever que "uma mulher livre, sem culpas, é um belo presente para um romancista". "Dia de Sofrimento" é uma resposta dolorosa a essa declaração de amor?
MILLET -
É estranho, porque eu não tinha pensado -ou melhor, não tinha medido- até que ponto o livro de Jacques foi de fato uma declaração de amor. Na época, eu não soube ler o livro com tanta clarividência. É preciso lhe dizer que escrevemos -ele, "Lendas...", e eu, "A Vida Sexual..."- no momento em que a crise terrível que relato em "Dia de Sofrimento" acabava de terminar.
Ele não tinha compreendido essa crise. Ele e eu nos batíamos contra um muro. Ele não captava a violência de meu ciúme, ao mesmo tempo em que estava convencido de que me amava por aquilo que eu era, também por minha liberdade sexual. Talvez eu tenha escrito "Dia de Sofrimento" por uma única razão: para que Jacques finalmente compreendesse.

PERGUNTA - O paradoxo espantoso de "Dia de Sofrimento", que é um livro magnífico sobre o ciúme, é que a sra. espionava e vigiava seu companheiro, Jacques Henric, com a obsessão de uma mulher fiel a seu marido. E é preciso esperar até a página 160 para a sra. admitir a independência de sua própria vida sexual, o número incalculável de seus parceiros, e escrever: "Jacques me remetia a meus próprios casos, ao fato de que eu não tinha deixado de participar de orgias e que, sobretudo, durante longos períodos, meu desejo me levara para outros lugares e me desviara dele".
MILLET -
Sim, foi preciso que Jacques me conduzisse a essa idéia para que eu tivesse uma tomada de consciência súbita.
À época, eu vivia num estado de cegueira total. Sem abandonar a moral libertária que sempre tivera, eu não tomava o tempo necessário para refletir sobre mim mesma e me dizer: "O que você está fazendo, pobre garota!".
Na verdade, mais do que a Jacques, "Dia de Sofrimento" é uma resposta a todos os leitores de "A Vida Sexual...", pois, apesar do tom neutro do livro, acharam que minha vida era uma orgia alegre e perpétua, que fazia a apologia do hedonismo ou até proselitismo.
A esses, digo que assumir uma sexualidade muito livre não nos impede de cair na armadilha assustadora do ciúme e não nos protege de antemão contra a dor que a acompanha.

PERGUNTA - No entanto, em "A Vida Sexual...", no qual orgias imensas se sucedem a encontros sexuais passageiros, a questão do ciúme é tratada brevemente. Chega a escrever, num sobressalto de moral, que seu leito conjugal é tabu absoluto, que não era imaginável que outra mulher se esgueirasse para dentro dele.
MILLET -
Do mesmo modo que eu não teria suportado que outro homem se deitasse nele! O sr. tem razão, o sentimento do ciúme já estava presente em "A Vida Sexual...", mas era cedo para eu conseguir falar dele.

PERGUNTA - A sra. resume muito bem o dilema que a atormenta, definindo-se ao mesmo tempo como uma mulher "constante em seu casamento" e "sexualmente versátil".
MILLET -
Direi ainda mais. Acho que, se pude ter a vida sexual desenfreada que foi a minha durante algum tempo, foi precisamente porque estava muito estável no amor, muito sólida em meu casamento.
É porque eu não tinha nenhuma necessidade afetiva não satisfeita que podia encontrar prazer indo de um parceiro a outro. Eu tinha amor em casa, eu podia buscar apenas o prazer fora dela.

PERGUNTA - Podemos dizer, para resumir, que a sra. tem dois corpos -o do amor, do qual é proprietária, e o do prazer, do qual é locatária?
MILLET -
Sim, foi a fotografia que me revelou isso. Perguntaram-me muitas vezes como eu podia aceitar ser fotografada nua, sem preparativos, de maneira quase improvisada, numa plataforma de estação ou num banco de jardim, e eu sempre respondi que não dava a mínima. São imagens de um corpo, é verdade, mas aquilo não sou eu.
Meu corpo não é minha pessoa. Quando o empresto a outros, posso me retirar dele. É por isso que sou bem menos narcísica do que já foi dito: não tenho absolutamente a preocupação de ficar bela diante da objetiva e, tampouco, a de disfarçar minhas imperfeições.

PERGUNTA - Em "Dia de Sofrimento", descobrimos que, desde o início de sua relação com Jacques Henric, no começo dos anos 1970, a sra. sentiu ciúme, sem razão. MILLET - Ao amor que eu sentia por ele se somava um mistério que o cercava e, de certa maneira, o tornava inacessível.
No início, esse mistério era excitante e, depois, após alguns anos de vida em comum, se tornou opressor. É preciso dizer que Jacques é um homem muito sigiloso -e ainda é.
Eu, por exemplo, mostro-lhe o que escrevo; já ele nunca me mostra seus manuscritos. Quanto mais é secreto, mais o mitifico e me sinto ligada a ele.

PERGUNTA - A crise, como diz, começou no dia em que a sra. encontrou algumas cartas por acaso. A sra. descobriu que Jacques tinha outras mulheres em sua vida, especialmente uma certa L. A sra. então se transformou numa verdadeira detetive particular, na cirurgiã da intimidade dele. Ele, por sua vez, se deu conta disso e a acusou de "ciúme mórbido", de "insistência masoquista na mesma tecla". Ele sabia que a sra. lia suas cartas, que abria seu computador -ou seja, ele não lhe escondia nada sobre suas relações.
MILLET -
Sim, ele me dava o material de meu ciúme. Mas estou certa de que ele não se dava conta das proporções insensatas que esse ciúme iria tomar. O ciúme se tornou, de fato, meu pão de todos os dias. É um inferno. Em dado momento, tanto ele quanto eu pensamos que jamais superaríamos aquilo.
Era prisioneira de minhas construções imaginárias, de minhas fantasias paranóicas, em que imaginava Jacques com outras mulheres. Não conseguia me impedir de tecer essas fantasias, apesar de ter consciência de que me faziam mal.


Assumir uma sexualidade muito livre não nos impede de cair na armadilha assustadora do ciúme

PERGUNTA - A sra. tomava ansiolíticos e reagia, escreveu, como uma bússola enlouquecida.
MILLET -
O sofrimento era tão agudo que às vezes era comparável às pulsões que dominam os assassinos e estupradores seriais.
Depois do ato, dizem que o que cometeram é infame, mas que não conseguiram resistir a essa força que os submergia, como se os dividisse em dois.
Pois era isso o que vivia.
No momento mais violento de meu ciúme, cheguei a me documentar e li depoimentos de criminosos desse tipo para compreender o que me estava acontecendo. Eles sempre diziam: "Eu me vi agir, matar, violar". Eu me via vasculhar os pertences de Jacques, me rebaixar ao ponto de espionar.

PERGUNTA - A sra. não conta no livro o que foi a vida sexual de Catherine M. durante essa crise de ciúme.
MILLET -
Justamente, eu não tinha mais a vida sexual de Catherine M. Tive algumas relações com dois ou três parceiros, relações que se desfizeram -só isso. Minha maior relação, inclusive física, era com o ciúme!
Meu corpo estava possuído, no sentido próprio do termo. Então, para acalmar minha histeria, Jacques fazia amor comigo.

PERGUNTA - A espiral em que se perde é tão grande, então, que, ao final, não vem mais ao caso saber se o ciúme é fundamentado ou não...
MILLET -
Justamente. Estávamos além disso. A prova é que Jacques nunca me confessou amar outra mulher mais que a mim, nem eu jamais pensei que o amava menos porque ele me traíra -nossa relação de amor nunca rachou.
A crise que descrevo é uma espécie de depuração da construção fantasmática própria do ciúme, na medida em que os medos que geralmente acompanham esse sentimento, o medo de não mais ser amada, de ser abandonada, eram praticamente inexistentes.

PERGUNTA - Os fantasmas sempre a habitaram, como descobrimos ao ler seu livro. Desde a idade mais tenra, a sra. faz seu próprio cinema: a masturbação é uma máquina de projeção, uma fábrica do imaginário. A sra. o escreve claramente: "Existe para o ser humano prazer fora da obscenidade? Mesmo quando os corpos estão mais estreitamente em contato, não há um desvio por uma projeção imaginada mais além desse contato -por um espetáculo, mesmo que seja mental?".
MILLET -
Sou uma pessoa que vive primeiramente em minha própria cabeça. Em razão de minha vida profissional, da "Art Press", que dirijo, das exposições que visito ou que organizo, das viagens que faço, dos livros que escrevo, as pessoas costumam me ver como uma mulher hiperativa.
Acontece que tenho necessidade de me refugiar incessantemente em meus sonhos, para melhor ou para pior. Sou de certo modo uma mulher interiorizada. E isso começou na infância.


Se pude ter a vida sexual desenfreada que tive, foi porque estava muito sólida em meu casamento

PERGUNTA - Em "Dia de Sofrimento", a sra. também evoca dois fatos dramáticos: a morte acidental de seu único irmão e o suicídio de sua mãe, que se atirou de uma janela. Em que esses fatos determinaram sua vida?
MILLET -
Acho que o suicídio de minha mãe marcou o fim definitivo de minha vida sonhada, aquela que está ligada a minha infância e adolescência. Naquele momento, pensei que eu deveria renunciar a tudo, inclusive a escrever.
Em relação a minha mãe, uma cena, segundo meu analista, me "salvou": foi o dia quando, ainda criança, a vi beijar seu amante diante da porta do apartamento da família. E outra cena quase me desmontou: foi o dia em que ela pôs um fim violento a sua vida.
"A Vida Sexual de Catherine M." foi criticado por ser destituído de sentimento. Isso foi proposital de minha parte. Eu queria testemunhar que o prazer podia ser independente dos sentimentos.
Em contrapartida, "Dia de Sofrimento" é repleto de sentimento, sem por isso ser um livro sentimental! Ele fala sobretudo de sensações, de emoções.
A exploração do ciúme levou obrigatoriamente à exploração do meu inconsciente. Eu tinha que ir até a origem de minha paranóia, retornar à garotinha sonhadora da periferia parisiense. Somada à análise que eu estava fazendo, foi uma espécie de auto-análise.

PERGUNTA - "Dia de Sofrimento" também pode ser lido como um auto-retrato. A sra. relata seu nascimento na periferia de Paris, de onde saiu aos 18 anos tendo como única bagagem suas leituras, como modelo, a escritora Françoise Sagan [1935-2004].
MILLET -
De fato, ela exerceu um papel determinante para mim, porque era ao mesmo tempo uma figura literária e um modelo social. Escrevia romances brilhantes, tinha liberdade de dirigir automóveis possantes, freqüentava o meio das pessoas importantes, desprezava os tabus.
Eu pertencia à pequena burguesia; meu pai tinha uma auto-escola, minha mãe era secretária, enquanto eu sonhava em ser como Sagan. Adolescente, eu passava meu tempo lendo romances e escrevendo poemas -sabia que estava destinada a ler e escrever.
Em suma, eu já tinha a vocação muito antes de saber sobre o que escreveria. Levei tempo para conhecer meu objeto. O livro que estava inscrito em mim, hoje eu sei, era "A Vida Sexual de Catherine M.".
Mas, antes disso, foi preciso que eu dedicasse um ensaio a Yves Klein e que descrevesse desvios pela arte contemporânea, até chegar ao "meu" livro.

PERGUNTA - No início do livro, a sra. dá a definição de "Dia de Sofrimento", tirada do dicionário: "Janela que se pode abrir dando para a propriedade de um vizinho, sob a condição de guarnecê-la de uma moldura fixa". Como encontrou esse título?
MILLET -
Há de tudo nesse título: a espionagem, a vizinhança e a dor. Você irá rir, mas foi Jacques Henric quem me deu a idéia. Isso revela sua importância em minha vida. É preciso dizer que o melhor título já tinha sido tomado por Robbe-Grillet -"La Jalousie" [O Ciúme].

PERGUNTA - Jacques leu seu livro?
MILLET -
Evidentemente. Ele me disse que foi mais bem escrito que o anterior. É preciso reconhecer que, quanto mais difícil é o tema, mais nos esforçamos. E eu me esforcei muito.
Especialmente na construção, que eu quis que fosse tão cuidada e pensada quanto a disposição dos quadros numa exposição da qual sou curadora.
Aliás, não é impossível que Jacques, por sua vez, escreva seu próprio livro para responder a "Dia de Sofrimento".


A íntegra desta entrevista foi publicada na "Nouvel Observateur". Tradução de Clara Allain .



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