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+Geopolítica
A roda da fortuna
Historiador americano prevê o relativo declínio de Nova York e uma queda acentuada na importância mundial de Londres;
Brasil irá desacelerar, e Venezuela enfrentará colapso econômico e político
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EDWARD LUTTWAK
ESPECIAL PARA A FOLHA
Continuam a existir
grandes incertezas,
evidentemente, mas
algumas conseqüências já se tornaram
inevitáveis -e elas se distribuem de maneira muito desigual entre os diferentes países.
O que parece mais óbvio é
que a nova superestrutura financeira de fundos de hedge,
fundos de capital privado,
emissores de derivativos e seguradoras de derivativos, que
cresceu com tamanha rapidez a
partir do início dos anos 1990,
será drasticamente reduzida.
Muitas empresas estão diminuindo de tamanho, entrando
em colapso ou simplesmente
fechando as portas, e aquelas
que sobreviverem terão receita
muito menor e bem menos
funcionários. Esse declínio estrutural drástico já começa a
afetar o status relativo de diversas grandes cidades do
mundo -e o de economias inteiras, com ele.
A atividade na "economia
real" também está se desacelerando em todo o mundo -o
crescimento da China está
caindo rapidamente ante o ritmo explosivo de 2007 (que
atingiu os 12%), para cerca de
9% neste ano, e é provável que
seja inferior a 7% no ano que
vem.
Fenômeno cíclico
A crise financeira está agravando as coisas, mas a desaceleração continua a ser um fenômeno cíclico, de modo que um
retorno ao crescimento econômico, ainda que lento, é bastante provável em 2010 nos EUA,
com China, Brasil e, por fim, a
Europa voltando sucessivamente a acelerar.
Mas o mesmo não aplica à superestrutura financeira -ela
não tem esperança de recuperação em 2010 ou, mesmo, em
2015, aliás. Boa parte dela simplesmente desaparecerá, com
todas as rendas que gerava.
No entanto teremos uma
queda desproporcional.
Os fundos de hedge, concentrados em Londres e Nova
York, devem encolher muito
mais do que as empresas de capital privado, espalhadas do
Texas à Suécia, mas menos do
que a emissão e o seguro de derivativos, atividades concentradas em Nova York.
Estas não desaparecerão, porém, porque continua a haver
demanda por instrumentos para compartilhar riscos, por
exemplo de parte das companhias aéreas, que desejam garantir preços previsíveis para
os combustíveis.
Londres sofrerá a maior perda relativa em termos de atividade econômica total, entre as
grandes cidades, porque seu setor financeiro é desproporcionalmente grande, e as receitas
que ele propicia, ainda maiores,
como proporção do total de receitas geradas na cidade.
Todos os "efeitos multiplicadores" resultantes agora estão
se revertendo, já que setores de
serviços relacionados também
caem -de atividades como escritórios de advocacia e restaurantes finos à British Airways
(cujos lucros dependiam de tal
modo das viagens de classe executiva e primeira classe que
agora sua capitalização se reduziu a apenas 3 bilhões!).
A demanda por imóveis comerciais em Londres também
cairá na mesma proporção à
medida que empresas financeiras cancelam contratos de locação, deixam de pagar aluguéis,
negociam reduções ou simplesmente desaparecem.
Depois será a vez de setores
de serviços relacionados, o que
resultará em grande índice de
desocupação de escritórios em
Londres.
O mercado de residências de
alto padrão da cidade, que já estava fraco antes da crise -como parte do declínio mundial
nos preços de imóveis, que causou a crise financeira, para começar-, está em queda acentuada, igualmente, ainda mais
porque Londres havia atraído
operadores financeiros e trabalhadores de todo o mundo,
muitos dos quais agora retornarão a seus países.
A crise de Londres deve afetar o Reino Unido como um todo, porque a economia do país
é de longe aquela em que o setor financeiro tem mais peso,
entre as grandes economias,
em proporção muito maior do
que no caso da economia dos
EUA, para não mencionar
França, Alemanha, Itália ou Japão -em parte devido às políticas de "libra forte", que favoreciam os setores financeiros enquanto danificavam as indústrias de exportação do país.
Além disso, os talentos de
gestão britânicos foram absorvidos pela City de maneira desproporcional, o que erodiu ainda mais a competitividade da
indústria britânica, a despeito
dos custos de mão-de-obra relativamente baixos e do mercado de trabalho mais fluido da
Europa.
Ainda que o primeiro-ministro britânico [o trabalhista
Gordon Brown] seja o herói do
momento, a queda de Londres
como centro financeiro decerto reduzirá a influência britânica na União Européia, especialmente se comparada à da Alemanha, um país onde as finanças têm importância bem menor e cujo setor de exportação
continua a não ter rivais.
A França permanecerá mais
ou menos onde está, e a Itália
pode ganhar influência, partindo de sua posição bastante baixa (devido ao processo decisório caótico no país, os italianos
não exercem muita influência,
apesar de sua considerável capacidade econômica).
Por outro lado, devido à peculiar dependência italiana da
exportação de produtos de luxo
(Prada etc.), o declínio cíclico
da economia real provavelmente será muito severo.
Em menor dimensão, outras
economias nas quais as finanças têm papel importante também sofrerão, especialmente a
da Holanda, bem como as dos
microestados que servem de
refúgio a capitais (Luxemburgo, Mônaco etc.).
A exceção será a Suíça, porque a maioria de seus bancos
manteve o foco na gestão de
ativos, uma atividade conservadora (e muito dispendiosa),
em lugar de investir em novas
funções.
Quanto aos EUA, a redução
estrutural da superestrutura financeira certamente deprimirá em medida significativa a
economia na região de Nova
York, com efeitos multiplicadores semelhantes aos de Londres e que se estenderão por alguns anos.
Mas o impacto nacional será
menor do que no caso britânico, porque a superestrutura financeira dos EUA é relativamente menor, em comparação
com a "economia real", e a estrutura financeira tradicional
de bancos comerciais e de mercados de títulos de dívida e
ações em breve se recuperará
-ainda que os preços das ações
não devam fazê-lo.
Declínio relativo dos EUA
Quanto ao impacto sobre a
influência dos EUA na política
mundial, seria possível argumentar persuasivamente que a
morte do Lehman Brothers e
do Smith Barney e a perda de
estatura do Goldman Sachs e
do Morgan Stanley superam o
sucesso militar tardio no Iraque ou a notável capacidade
dos EUA de convencerem os
aliados europeus a combater
no Afeganistão.
Por outro lado, a própria crise serviu para reafirmar a liderança norte-americana, porque
os demais países europeus só
acataram a solução britânica de
injetar fundos estatais diretamente nos bancos quando o governo de George W. Bush também aceitou esse remédio sem
precedentes.
Em teoria, os europeus poderiam ter concordado quanto a
uma solução própria e tê-la oferecido aos norte-americanos,
para que a aceitassem ou rejeitassem sem negociação.
Na prática, muitos países europeus, entre eles a Alemanha,
recusaram a solução britânica
até que esta fosse aceita plenamente também pelos EUA.
Não existe dúvida de que a
crise financeira reduziu o prestígio norte-americano e também a influência econômica do
país, em termos absolutos.
Mas influência política é
sempre relativa, no cenário político mundial, e uma perda absoluta de força só se torna real
caso haja outros contendores
capazes de ganhar influência
como resultado.
Com a Rússia experimentando declínios ainda maiores que
os dos EUA em seus mercados
financeiros e Bolsas de Valores
e também sofrendo quedas de
receita como exportadora de
commodities, o país certamente não conseguirá substituir a
influência norte-americana no
mundo.
O risco da China
A China, em contraste, dispõe do equivalente a US$ 1,3
trilhão em reservas cambiais, e
poderia investir ainda mais na
extração de matérias-primas e
em grandes projetos de infra-estrutura na África, América
Latina e em outras partes do
mundo, reforçando sua presença e influência em um momento no qual a competição ocidental no financiamento e trabalho de engenharia de grandes
projetos certamente declinará.
Mas, com a queda nos preços
das commodities e uma lista
cada vez maior de projetos sem
lucratividade, a China não tem
incentivo econômico para continuar nesse rumo.
Na verdade, a estratégia de
tomar o controle de matérias-primas sempre funcionou mal
(os suíços não têm poços de petróleo, mas sempre dispõem de
todo o petróleo de que precisam), como o Japão aprendeu
muito tempo atrás, e isso pode
valer ainda mais agora que os
valores dos imóveis estão caindo e a economia está em desaceleração na China propriamente dita.
Japão, Rússia, Brasil
Em termos de influência política, a China certamente conquistou muita, mas também
despertou novas resistências,
porque é cada vez mais vista como exportadora "neocolonialista" de produtos industrializados, importando apenas matérias-primas da África e da
América Latina.
Em teoria, este é o momento
em que o Japão (bem como a
China, e também, em certa medida, Taiwan, Cingapura e Coréia do Sul) poderia converter
suas posições de títulos do Tesouro norte-americano e outros instrumentos denominados em dólares em propriedade
de imóveis depreciados e empresas desvalorizadas.
Ao valor de mercado atual de
US$ 3,6 bilhões, até mesmo um
fundo de pensão japonês de segunda linha poderia tomar o
controle da General Motors, e
nem mesmo GE, IBM, Google e
Microsoft estariam fora do alcance dos recursos japoneses.
Em tese, o Japão (e outros
países) poderia adquirir tudo
isso e muito mais, ganhando a
influência que a propriedade
confere. Mas é improvável que
isso venha a acontecer, não
apenas devido à cautela dos investidores mas também porque
certamente haveria resistência,
em diversas frentes, a aquisições muito grandes e de alta visibilidade.
Por fim, existe o impacto da
crise sobre exportadores de
commodities como Brasil, Rússia e os países da Opep (Organização dos Países Exportadores
de Petróleo). É ainda mais um
processo bastante assimétrico.
Como exportador altamente
diversificado de todo tipo de
bens -de aviões e metais ferrosos a soja, de que é líder mundial, passando por carne bovina, suco de laranja, café e muitas outras coisas-, o Brasil vem
sendo atingido em todas essas
frentes, mas de maneira não
muito severa.
O país sofrerá uma desaceleração cíclica, como sua Bolsa já
antecipou ao perder metade de
sua capitalização desde junho,
mas isso é tudo, e uma forte recuperação é certa.
As coisas são muito piores
para a Rússia, que depende de
uma lista muito mais curta de
matérias-primas exportáveis,
especialmente o petróleo, cujo
preço está caindo para a faixa
dos US$ 70 por barril, o dobro
do que valia em 2000, mas metade das alturas atingidas no
ano passado, em lugar do preço
de US$ 250 que Alexei Miller,
da Gazprom, projetava alguns
meses atrás.
É por isso que a Bolsa de
Moscou perdeu 60% de sua capitalização em dois meses.
Quanto aos exportadores de
petróleo, o mais forte impacto
será sentido pela Venezuela,
porque parcela tão grande de
sua receita petroleira foi desperdiçada em empreitadas tolas. O Irã terá sua receita em
moeda forte reduzida para menos que o nível necessário para
manter um orçamento estável,
e o mesmo vale para Arábia
Saudita e Nigéria, enquanto em
Dubai a bolha imobiliária está
para estourar.
Os mercados de ações do
Golfo Pérsico entraram todos
em colapso, mas ninguém passará fome ou começará a atacar
o governo, como bem pode
acontecer na Venezuela e no
Irã, países em que a população
mais pobre já vive sob o ataque
da alta inflação.
EDWARD N. LUTTWAK é especialista em defesa do Centro de Estudos Internacionais e Estratégicos, em Washington, e autor de "Turbocapitalismo" (Nova Alexandria), entre outros livros.
Tradução de Paulo Migliacci.
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