São Paulo, domingo, 26 de novembro de 2000

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+3 questões Sobre biografia

1. Por que as biografias fascinam tanto?
2. Quais são os exemplos máximos do gênero?
3. Quem seria o "biografado" ideal?
Dênis de Moraes
responde


1.
Há uma resposta na ponta da língua: biógrafo e leitor têm o incontornável desejo de devassar a vida de uma grande personalidade ou de um astro. O fascínio costuma apoiar-se na revelação explícita e às vezes polêmica das articulações entre os atos, o pensamento e a obra de uma figura singular. Mas me parece uma explicação insuficiente diante da crescente importância cultural da biografia como gênero literário. Penso que três outras razões devem ser citadas para alargar a compreensão do fenômeno: 1) a biografia situa-se na fronteira criativa entre a literatura e o jornalismo, produzindo um estilo narrativo híbrido, ágil e envolvente, capaz de fisgar leitores dos quatro quadrantes; 2) o rigor da pesquisa documental e o empenho analítico de vários biógrafos têm contribuído para elevar o reconhecimento do gênero por parte da crítica e da intelectualidade; 3) biografias de qualidade extrapolam os limites perceptíveis dos personagens e constroem painéis socioculturais, políticos e econômicos das épocas abordadas, se convertendo, nesse sentido, em fontes alternativas e acessíveis de disseminação de conhecimentos.

2.
Destaco "A Vida de Lima Barreto", de Francisco de Assis Barbosa (1952, ed. Itatiaia), e "Che Guevara, uma Biografia", de Jon Lee Anderson (1997, ed. Objetiva). As duas obras escapam à tentação biografista (explicar mecanicamente a trajetória de alguém por suas convicções ideológicas, políticas ou estéticas), são muito bem escritas e harmonizam, com raro brilho, a reconstituição cuidadosa dos universos biográficos com as circunstâncias decisivas dos mundos em que Lima Barreto e Che Guevara viveram e deixaram marcas.

3.
Quanto mais atribulada a vida e contraditório o personagem, mais rica e interessante resulta a biografia. A grandeza de uma biografia não está na apologia ou na catalogação cronológica de fatos, mas sim na sua capacidade sensível de remontar os cacos de um complexo e imperfeito quebra-cabeça existencial. Não adianta o biografado ser um poço de virtudes e coerências máximas; ficaria faltando o que lhe confere verdadeira densidade humana -os contrastes, as dúvidas, os equívocos e as utopias.

Gerd Bornheim
responde


1.
Porque somos todos ébrios de subjetividade e pela subjetividade. Mas não se esqueça de que o indivíduo é uma invenção. De fato, a biografia encontra o seu pressuposto preciso no advento do individualismo; é ele que gera a biografia em sua própria possibilidade, como também o retrato. Havia antes a biografia? Em sentido estrito, não. Veja-se o exemplo clássico: as "Confissões" (399) de santo Agostinho (354-430). Nesse livro, a rigor, só o primeiro capítulo é biográfico, em que se vê o pagão entregue ao pecado e aos desvios do indivíduo e sua particularidade. Depois se vê um processo de transindividualização, Agostinho começa a se tornar santo assumindo os passos de uma divinização ascendente: o bispo de Hipona se apresenta então na plenitude de um universal concreto. Está justamente nesse tipo de universalização o que se perde na moderna biografia, já que agora o indivíduo constitui a medida de tudo, inclusive de sua possível abertura ao mundo da sociedade e dos elementos culturais, restrito, no entanto, ao plano da pura imanência.

2.
A primeira grande autobiografia é a de Jean-Jacques Rousseau ("Confissões", de 1782), e é importante que se leia o prefácio do livro. Mas a biografia exemplar, situada como que no centro de toda a evolução do gênero, parece-me ser a de Johann Wolfgang von Goethe, "Verdade e Método" (1811-22). Goethe (1749-1832) busca entender o indivíduo, mas isso se verificaria no equilíbrio dialético de certas forças: de um lado a soberania do indivíduo e, de outro, o mundo social e cultural em que ele se situa. Por aí, se o homem constrói o mundo, ele se vê ao mesmo tempo construído por esse mesmo mundo, tudo no âmbito da aventura simplesmente humana.

3.
Entendo que o maior exemplo continua sendo a autobiografia de Goethe, pois ela representa a busca de um equilíbrio que é o principal desafio da cultura moderna. A partir daí, pode-se entender também que a biografia não pode nunca se restringir sem mais ao indivíduo. A figura principal é Pablo Picasso (1881-1973), mas dentro da revolução plástica que ele soube provocar, ou Ernesto Che Guevara (1928-1967) e tudo o que representa seu posicionamento social. Fora disso, o que há está no ócio inútil -ouço que Shirley MacLaine já escreveu três autobiografias. De resto, Nietzsche já alertava para a sandice da "epidemia das biografias".

QUEM SÃO
Dênis de Moraes
É escritor e professor do programa de pós-graduação em comunicação da Universidade Federal Fluminense, autor de "Vianinha" (ed. Record), biografia de Oduvaldo Vianna Filho, e "O Velho Graça - Uma Biografia de Graciliano Ramos" (ed. José Olympio).

Gerd Bornheim
É professor de filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro e autor de, entre outros, "Brecht - A Estética do Teatro" (ed. Graal) e "O Sentido e a Máscara" (ed. Perspectiva).



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