São Paulo, domingo, 26 de novembro de 2000

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Mutações da mulher fatal


Versão de Wilde para tema bíblico de Salomé teve profunda repercussão no Brasil no início do século


Orna Messer Levin
especial para a Folha

Vale a pergunta: por que a "Salomé" de Oscar Wilde se tornou a versão mais conhecida da narrativa bíblica sobre a sedutora princesa da Judéia? Teriam as ilustrações macabras de Aubrey Beardsley contribuído para isso ou a popularidade viria da fama conquistada pela ópera de Richard Strauss, cujo argumento foi extraído da peça? É claro que, para os apreciadores da genialidade wildiana, a dúvida não se coloca, porque nos dois casos a originalidade criativa do texto é que serviu de impulso aos intérpretes, e não o contrário. Ainda assim podemos especular sobre qual teria sido a sorte de "Salomé" sem a série de ilustrações que alimentaram o imaginário decadentista finissecular e sem os acordes que perpetuaram a tragédia musical. Não fosse Wilde, decerto a história da princesa não manteria o vigor juvenil que ainda tem. Por outro lado, não fossem Beardsley e Strauss, talvez hoje não voltássemos a saborear a leitura de Wilde. O fato, porém, é que ele não chegou a ouvir a adaptação operística inspirada na montagem da peça que se realizou na Alemanha. Já os desenhos de Aubrey Beardsley, criados por sugestão do amigo Robert Ross, de imediato não o agradaram, embora tenham sido incluídos na publicação inglesa de 1894. Edição que esteve a cargo de John Lane e foi dedicada a lorde Alfred Douglas. Segundo o relato de Hesketh Pearson, Wilde considerava as ilustrações muito japonesas, enquanto sua peça respirava uma atmosfera bizantina que ele não identificava com as imagens cruéis de Beardsley. Mas, a despeito das concepções diferentes e de o ilustrador ter feito caricaturas animalescas do próprio autor, a associação entre os nomes de Wilde e de Beardsley, a partir da edição inglesa, acabou fixando um padrão gráfico para a sensualidade mórbida da jovem princesa.

Estréia em Paris
É preciso lembrar, no entanto, que a primeira edição de "Salomé" não apareceu em Londres, e sim em Paris, em fevereiro de 1893. O volume era dedicado ao amigo Pierre Lous, que, pelo depoimento do poeta Stuart Merril, foi um dos que sugeriram correções no francês, apesar de Wilde dominar bem a língua. Supõe-se que ele tenha escrito em francês para que Sarah Bernhardt estreasse no papel da protagonista ao final de sua temporada londrina de 1892. Ou, quem sabe, para rivalizar com Mallarmé, às voltas com sua "Hérodiade". Ou, outra hipótese, que Wilde tenha pensado no francês como estratégia para driblar a proibição de montagens com temática bíblica na Inglaterra. Se é que houve, tal plano não funcionou, porque o escritor foi surpreendido pela censura e declarou na imprensa sua intenção de abandonar a cidadania inglesa, fato que o humorístico "Punch" não pôde deixar de aproveitar, fazendo-lhe a caricatura com uma farda de soldado francês. Apenas em fevereiro de 1896 o público conferiu a interpretação da divina Sarah no pequeno Théâtre de L"Oeuvre. Mas, a essa altura, Wilde já estava na prisão de Reading e por isso acompanhou o sucesso da peça só pelos jornais. Em um único ato, o episódio centra-se no banquete de aniversário de Herodes Antipas, casado com Herodias, mulher de seu irmão e mãe de Salomé, que a pedido do tetrarca aceita dançar para os convidados. Paralelamente, a relação incestuosa de Herodias é denunciada aos brados pelo prisioneiro João Batista, aqui chamado pelo nome hebraico de Iokanaan, a exemplo do que havia feito Flaubert. Wilde combinou três passagens do Novo Testamento (Herodes Antipas, Herodes, o Grande, Herodes Agrippa), apontadas por Robert Ross na edição de 1908, e, sem se preocupar com a coerência histórica ou religiosa, transformou a paixão obsessiva e não correspondida de Salomé no motivo do assassinato de Iokanaan, cuja cabeça ela beija depois de recebê-la em uma bandeja de prata.

Capricho sexual
Bem diferente da personagem bíblica, que age conforme as instruções da mãe, a protagonista de Wilde, se sentindo atraída pela beleza física do profeta, dança por vontade própria, decidida a realizar seu capricho sexual. Tem a crueldade mítica da feminilidade fatal, presente no romantismo europeu, conforme mostrou Mario Praz, somada ao encanto da inocência de virgem, que seduziu Herodes e caracterizou o enigma da mobilização dos impulsos eróticos, definindo o cânone decadentista. Esse mistério e essa força do desejo perverso aproximam Salomé e Herodes, ambos levados ao extremo da atração irrefreável e destruidora, tal como já anunciava o romance "O Retrato de Dorian Gray" (1891). O desenvolvimento simultâneo dos protagonistas é marcado pela reiteração de súplicas e promessas que se intercalam, acompanhadas pela força expressiva da Lua, uma espécie de presságio do mal. Se comparado aos outros tratamentos literários e iconográficos dados ao episódio, que a crítica tem indicado como possíveis fontes da peça, a novidade de Wilde está no entrelaçamento estreito da tematização da lascívia com a exposição da luta pelo poder político na última dinastia de Israel. No íntimo de uma relação familiar moralmente corrompida, Wilde cruzou o destino trágico da dançarina com as ameaças ao trono do tetrarca, que, diante do horror, manda matá-la. No Brasil, ainda no início do século, Oscar Wilde conquistou um número significativo de admiradores, como nos revelou o minucioso estudo de Gentil de Faria. O impacto de "Salomé" repercutiu na tradução de João do Rio, primeiramente por meio da revista "Kosmos" e, depois, pela edição da Garnier (1908), que reproduziu algumas ilustrações de Beardsley. João do Rio foi um dos principais cultores do dandismo inglês entre nós. Criou personagens refinadas por meio das quais introduziu o relato de fobias, taras e vícios inspirados no modelo europeu. Outros escritores conceberam heroínas apoiadas na imagem da mulher oriental diabólica.

Fêmea perversa
Gastão Cruls, em seu conto "A Noiva de Oscar Wilde", e Gonzaga Duque, em "Aquela Mulher", são exemplos da prosa contaminada pela ação perversa da fêmea enigmática e misteriosa, que se misturou à voga helenista, pela qual foi reabilitada a figura da mulher-esfinge. Com referências diretas a Salomé ou apenas indicações de corrosão moral, a literatura do período captou os sinais de renovação que o esteticismo decadentista oferecia. Mas nem sempre a sensualidade feminina eletrizante esteve dissociada do universo licencioso da prostituição e dos meandros da ilegalidade do fumo e do jogo. Com isso, a influência de Wilde dos anos 20 em diante predominou em escritores atualmente esquecidos, que produziram um tipo de subliteratura contemporânea ao modernismo.


Orna Messer Levin é professora de teoria literária na Universidade Estadual de Campinas e autora de "Figurações do Dândi" (Editora da Unicamp).



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