São Paulo, domingo, 26 de novembro de 2006

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Dois cineastas on the road

Reunidos em Salônica, na última quarta-feira, Salles e Wenders, que está de volta à Alemanha após morar 10 anos nos EUA, discutem a relação tensa com Hollywood e a influência da música pop

MARCOS STRECKER
ENVIADO ESPECIAL A SALÔNICA, NA GRÉCIA

Depois de dez anos nos EUA, após realizar clássicos como "Paris, Texas", Wim Wenders está voltando para a Alemanha, onde começou sua carreira e produziu a obra-prima "Asas do Desejo". Walter Salles, ao contrário, se prepara para rodar nos EUA seu longa mais ambicioso, "On the Road", filmagem do livro de Jack Kerouac que inaugurou a contracultura.
A Folha reuniu com exclusividade essas duas figuras-chave do cinema contemporâneo na cidade de Salônica, onde estavam para participar do Festival Internacional de Cinema da cidade. Eles discutiram sobre o destino da sétima arte -como tecnologia digital-, a importância da música, o cinema independente, a necessidade dos roteiros, além da morte, na última terça, de Robert Altman, decano do cinema independente norte-americano.
Esse festival é um dos mais tradicionais da Europa e neste ano, em sua 47ª edição, homenageando os dois diretores. Acompanhe a seguir esse momento repleto de significados, quando o cineasta que reinventou a linguagem do cinema a partir dos anos 70 diz que seu "fracasso" nos EUA pode permitir que Salles seja bem-sucedido agora.
Os dois mergulharam na América pelas mãos de Francis Ford Coppola, o diretor de "O Poderoso Chefão", que sonhou ressuscitar a Hollywood dos grandes estúdios. Para Wenders, Coppola "aprendeu" a lição a partir do fracasso de "Hammett" -o famoso filme "malsucedido" de Wenders dos anos 80 e que foi produzido por Coppola.
É a primeira vez em que o diretor de "Buena Vista Social Club" fala abertamente desse episódio e expõe sua frustração por não ter conseguido "se tornar um americano". Para o cineasta alemão, Coppola não é mais o "teimoso" de antigamente e pode ser o produtor ideal para "On the Road" -filme que representa o sonho americano de Walter Salles, brasileiro a quem Wenders vê como seu seguidor.

 

FOLHA - (para Wenders) Os EUA foram um tema fundamental em sua carreira, de "Alice nas Cidades" e seus curtas iniciais até "Paris Texas". Agora você está deixando os EUA, depois de dez anos. Walter Salles faz o oposto: está "mergulhando" no país para fazer "On the Road".
WIM WENDERS
- Fui lá em uma época e com uma idade de relativa inocência. Foi em 1977, eu estava com 32 anos, acho. WALTER SALLES - Você foi o primeiro de seu grupo de amigos a ir para lá... WENDERS - Quando filmei "Alice nas Cidades", alguns anos antes, nos anos 70, isso parecia um privilégio. Quando fui para lá, em 1977, muito jovem, vivenciei grandes experiências, viajei muito, fotografei cidades.
Fui para lá com a idéia ingênua de que os filmes que me eram oferecidos, como "Hammett", me tornariam norte-americano, seriam ótimos.
Depois de um ano ou dois, não filmando nenhum roteiro acabado e não chegando a lugar nenhum, usando um roteirista depois do outro, percebi que nunca encontraria uma saída.
Não tinha nada. Podia olhar a história que tinha sido oferecida para mim e que eu tinha aceitado dirigir ["Hammett", produzida por Coppola] e poderia fazer o melhor para entender as idéias do produtor.
Mas não poderia ser bem-sucedido e demorei algum tempo para perceber isso. Foi doloroso também porque achava que poderia me tornar um americano. Casei com Ronee Blakley, que aparece em "O Filme de Nick".
Vi que não apenas não conseguiria fazer um filme americano mas também nunca me tornaria um americano. Continuava sendo um europeu e permaneceria um alemão. Não havia nada a fazer. Foi uma descoberta difícil, e o filme que fiz ["Hammett"] era vital para Francis [Ford Coppola]. Ele insistia nas suas idéias, enquanto eu insistia nas minhas.
Essa briga prosseguiu até o último corte. Permanecemos amigos, nos respeitamos... No final do filme, Ronee e eu já estávamos separados... Percebi que não poderia voltar para casa, para a Alemanha. O filme que queria realizar ainda não tinha conseguido fazer. "O Estado das Coisas" [filmado na época] permitiu que eu sobrevivesse como artista.
Não tinha a ver com um conflito de identidade, mas com minhas idéias sobre o que era fazer um filme. Eu não podia voltar para casa porque sentia que não tinha nada em minhas mãos. Felizmente pensei em "Paris, Texas".
Ainda bem, o filme conseguiu cumprir tudo o que eu desejava. Permitiu que eu voltasse para casa e deixasse os EUA. Achava que minha aventura americana tinha sido um fracasso, tinha medo de voltar para casa. Os dois filmes que eu tinha feito eram claramente europeus ["O Estado das Coisas" e "O Filme de Nick"].
Apenas quando me reuni com Sam [Shepard] e Ry Cooder e fiz "Paris, Texas" senti que tinha mostrado capacidade de fazer algo nos EUA. Podia, então, voltar para casa e fazer meus próprios filmes. Fiquei em Berlim de 1984 a 1996, antes de meu segundo período nos EUA, que durou mais dez anos.
Dessa vez eu não era mais tão ingênuo, sabia que permaneceria um alemão, que não me tornaria um americano. E "O Fim da Violência", "O Hotel de Um Milhão de Dólares" e "Estrela Solitária" eram filmes de um europeu filmando os EUA. Não tentei fazer filmes americanos.
Entendo sua situação agora [dirigindo-se a Walter Salles]. Por um lado, eu não saberia que conselhos dar a você. Sei que muita coisa se passou, agora é uma época muito diferente, e os EUA também mudaram.
Sei que Francis [Ford Coppola, produtor de "Hammett" e de "On the Road"] não é mais o produtor teimoso que costumava ser. Ele tinha o sonho de ser um grande produtor, recriar os estúdios de Hollywood de antigamente. Eu estava no começo desse processo. ["Hammett"] não fracassou por minha causa, mas porque Hollywood inteira não queria que ele desse certo.
Francis estava interferindo em todo e qualquer aspecto do filme. E ele aprendeu que isso não é possível. Depois nos encontramos quando realizava outros filmes, como "Até o Fim do Mundo" [1991]. Foi no momento em que eu o editava, e ele foi muito generoso.
Sei que ele é uma pessoa muito diferente agora. Acho que a experiência comigo pode tê-lo transformado no produtor ideal para "On the Road".
Por outro lado, os EUA estão vivendo um momento tão difícil... Não saberia que conselho dar agora a você [dirigindo-se a Salles]. Você vê? Acho que seguir seus instintos, já que Francis te chamou. Acho que foi uma grande idéia sua pensar: espere um minuto, deixe eu antes explorar o território e ver o que está acontecendo [a respeito do documentário "Searching for On the Road", que Salles já filmou e está editando].
O pior que pode acontecer é ele ficar melhor do que o filme... (risos) Desejo de coração que você faça ["On the Road"]. Ao mesmo tempo, conheço as armadilhas e espero que você não caia nelas, ainda que algumas já pertençam ao passado.

FOLHA - Como entendem a utilização de gêneros no cinema (drama, western, ficção científica) e a diferença entre ficção e documentário?
SALLES
- Em relação a "On the Road", de alguma forma o filme tem a ver com a história de filhos de imigrantes. Kerouac era filho de franco-canadenses, Ginsberg era filho de imigrantes da Europa Oriental, seus pais eram simpatizantes do Partido Comunista -o que não era muito popular na época. Lawrence Ferlinguetti e Diane di Prima, dois poetas que pertenciam ao coração do movimento beat, vinham de famílias italianas. WENDERS - Você os filmou?
SALLES - Sim... Acho que é a história de filhos de imigrantes que recusaram o papel que lhes estava destinado. O que é interessante para começar a trabalhar. Quando você começa a rodar um filme, especialmente de época, acho que precisa se questionar sobre o que tem a ver com o período atual.
Nesse sentido, senti que a melhor maneira de fazer um filme de ficção era começando por um documentário que contasse o legado da geração beat e de Kerouac. WENDERS - Você vai filmar "On the Road" em preto-e-branco?
SALLES - Essa é uma boa pergunta...
WENDERS - Em "Hammett", eu briguei com todas as minhas forças para filmar em preto-e-branco. Lutei de todas as formas, mas não consegui.

FOLHA - Há uma similaridade entre alguns filmes que vocês realizaram. "Central do Brasil" parece se relacionar com "Alice nas Cidades", enquanto "Terra Estrangeira" parece se relacionar com "O Estado das Coisas", ainda que reflitam sobre conflitos diferentes -a crise política brasileira, em um caso, e a crise do cinema, em outro...
WENDERS
- Eu acrescentaria ainda uma relativa similaridade entre "Diários de Motocicleta" e "No Decorrer do Tempo". Os dois têm a ver com uma jornada de descoberta, de formação. Em "Diários de Motocicleta" há uma compreensão política do mundo, você pode sentir uma transformação acontecendo nos personagens.
Você quase sente a mudança de um jovem que quer se tornar um médico e descobre um outro caminho. É uma jornada de formação, de conhecimento. É o mesmo que acontece com os dois personagens de "No Decorrer do Tempo". Gosto do paralelo entre esses filmes. E deve haver outros.
SALLES - Fico um pouco tímido ao falar disso... Meu desejo de fazer filmes foi de fato influenciado pela experiência de assistir "Alice nas Cidades" e "No Decorrer do Tempo"... Não vejo relação entre "O Estado das Coisas" e "Terra Estrangeira", mas talvez você tenha alguma razão. Ainda que "Terra Estrangeira" seja um filme sobre um tipo de exílio, envolve dois continentes. "O Estado das Coisas" é sobre a imobilidade que é causada por uma forma predominante de cinema.
WENDERS - Mas os personagens [de "O Estado das Coisas", uma equipe de cinema que é forçada a interromper uma filmagem] também estão exilados do potencial deles, de alguma forma.
SALLES - Acho que posso falar sobre o que aprendi assistindo "Alice nas Cidades" e "No Decorrer do Tempo". Em cinema, o que é invisível é mais importante do que é visível...
WENDERS - Acho que essa é a manchete [desta entrevista]... (risos)
SALLES - ... o que se sente é mais importante do que aquilo que se verbaliza. A proximidade que senti desses personagens foi maior do que qualquer outra que já havia sentido em cinema.
Eles eram estrangeiros à minha cultura, e mesmo assim pude me identificar. Eram talvez a melhor descrição dos dilemas de nossos tempos. Representavam todas as crises possíveis. As crises que eu conhecia ou sentia, pelo menos.
Eles refletiam melhor o que eu conhecia. Uma crise pessoal mas também uma crise geral de identidade nos anos 70 e 80, uma época de formação para mim. Sinto ao mesmo tempo uma timidez com essa possível correlação mas ao mesmo tempo não posso negá-la, porque fui tão formado pelo cinema que você dividiu conosco...
WENDERS - Seus filmes têm tanta força na expressão que não devem nada a ninguém. É esse o meu sentimento real... Nem a mim nem a ninguém. E mesmo porque o "road movie" é um gênero tão puro... Acho que estamos todos de alguma forma no mesmo território. Você está seguindo seus próprios caminhos, seu próprio território.
Acho impossível fazer um filme que não se relacione a algo. No mínimo, isso acaba em uma entrevista que algum jornalista fará... (risos)
SALLES - Acho que, quando você começa um filme, você precisa esquecer tudo o que conhece, de uma forma consciente. Tem a ver com ter todas as informações e deixá-las de lado.
Discutimos isso em profundidade no caso de "Diários de Motocicleta". Preparamos o filme minuciosamente. Antes de começar a filmar, decidimos deixar tudo de lado e começar como um grupo, da forma como a história deveria ser contada, de uma forma original.
No primeiro dia, na primeira seqüência que foi filmada, procurei esquecer tudo o que tinha reunido de informações até aquele momento.
WENDERS - Onde essa seqüência foi filmada?
SALLES - Em algumas ruas de Buenos Aires... Estava procurando encontrar o caminho que servisse da melhor maneira para esse filme. Bem, ontem [terça] soubemos da morte de Robert Altman. Sua perda foi sintomática da morte de um certo espírito independente na cena americana.
Não sei se você [dirigindo-se a Wenders] concorda com isso, mas era o caso dele e de David Lynch assim como de poucos e extraordinários diretores.
WENDERS - Sim, claro, mas nós temos origens distintas. Para mim, o cinema americano, como um todo, foi uma enorme influência. De um modo muito diferente, Fritz Lang, que infelizmente não cheguei a conhecer, é para mim o melhor diretor dos EUA.
Aprendi tanto com o cinema americano -com Samuel Fuller, John Ford-, mais do que com qualquer pessoa que eu tenha conhecido. Para mim, ir para lá filmar significava que eu iria para o lugar onde todo o cinema que eu adorava tinha sido feito. E isso no sistema dos grandes estúdios [de Hollywood], onde trabalharam os caras que eu admirava. Bem, Nicholas Ray e Samuel Fuller sempre foram de alguma forma rebeldes, renegados.
Ainda assim, quando fui para lá sentia que ia para o verdadeiro coração do cinema. Não sabia que estava indo para o "coração das trevas" [dupla referência ao filme "Apocalypse Now", de Coppola, e ao livro de Joseph Conrad que o inspirou].
SALLES - É engraçado, porque, para mim, o cinema americano não é formador nesse sentido. Fui mais influenciado pelo neo-realismo, pela nouvelle vague, pelo cinema novo e pelos filmes da Verlag der Autoren... [produtora independente alemã dos primeiros filmes de Wenders] (risos). E pelo cinema cubano de Tomás Gutiérrez Alea, de "Memórias do Subdesenvolvimento".
Esses filmes foram muito mais importantes para mim do que os filmes que mencionou. Eu os admiro, mas não consigo relacioná-los com a minha própria experiência. E Billy Wilder? [dirigindo-se a Wenders]
WENDERS - Gosto muito de seus filmes, especialmente de suas comédias. Mas nunca me influenciou muito. Fui mais influenciado pelos outros. Fassbinder foi influenciado por Douglas Sirk de outra forma...

FOLHA - Vocês já trabalharam em "road movies" sem utilizar roteiros. Quando o diretor deve utilizá-los?
WENDERS
- Sempre que escrevia um roteiro, e não importa a qualidade dele, pensava que ele não era necessário, que seria muito mais divertido trabalhar sem ele. Quando não tinha um roteiro, pensava que seria muito melhor se eu tivesse um... Acho que o roteiro é um pretexto para produzir um filme.
E, quando se está filmando e trabalhando com atores, o material que você ou o escritor imaginou há seis meses ou um ano não pode mais ser tão bom quanto se imaginou.
O diretor está lá, filmando as paisagens, juntando as peças, e é esse o momento em que você enxerga a verdade das coisas. E, como já sei que as coisas são assim, procuro não investir muito em um roteiro. Quero evitar a situação em que esteja preso e não tenha outra alternativa a não ser seguir o roteiro.
Tenho convicção de que é sempre possível melhorar um roteiro quando se está filmando. O pior que pode acontecer é ficar preso na armadilha de seguir um roteiro por pressão de produtores ou distribuidores. Esse é o pior roteiro possível.
SALLES - Em português, a palavra roteiro tem a ver com rota. É o que o roteiro deveria ser -indicar um caminho a seguir. Não deveria encerrar oportunidades, mas ampliá-las. Trabalhei com roteiristas muito instruídos, com os quais a história final era o resultado do que havíamos esboçado no início do processo.
Mas "acidentes" aconteceram "on the road", e também "nas margens" da estrada. Um exemplo é uma seqüência de "Terra Estrangeira" que foi completamente transformada pelo nosso encontro com uma comunidade de angolanos, cabo-verdianos e moçambicanos.
Nem Daniela Thomas [co-diretora do filme] nem eu havíamos visto essas comunidades em nenhum filme português. Mesmo assim estavam lá, presenças importantes e palpáveis diante de nossos olhos. Alteramos o roteiro para incorporar esses personagens à história, porque ela tinha a ver com o exílio -num sentido existencial mas também político.
Esses personagens eram como os brasileiros. Então os incorporamos. A história foi transformada pela experiência da realização. O filme deve ser a grande pergunta cuja resposta você começa a responder durante o processo. E o roteiro deve permanecer como a base que vai permitir responder -ou não- às perguntas no final da jornada.
Por outro lado, um roteiro mais estruturado, como era o caso de "Diários de Motocicleta", escrito por Jose Rivera, era excelente no início...
WENDERS - Mas, nesse caso, era um filme de época.
SALLES - Sim, mas o que percebi é que, quanto mais estruturado ele é, mais você pode ter opções. Um pouco como o jazz, no sentido de que é mais fácil se afastar do bom roteiro inicial, porque você sempre pode achar o núcleo da melodia novamente. Foi um processo libertador, os dois processos foram libertadores.
WENDERS - Há tanto investimento emocional nos roteiros, procurando imaginar o filme bem demais. Por exemplo, alguns roteiristas colocam muitos detalhes no roteiro.
Quando a pessoa se levanta, quando se vira, se está com uma caneta ou tem uma certa expressão, não importa. Odeio isso.
O pior é quando o roteirista coloca "cortes" no roteiro. O roteiro deve ter apenas o diálogo, o lugar, o que se passa. Idealmente, a pessoa que escreve o roteiro deve estar com você no set de filmagem. Se você confia no escritor, não há nada melhor, na minha experiência, do que tê-lo com você no set. Não significa que vá funcionar necessariamente, mas... SALLES - Aconteceu comigo em "Terra Estrangeira" e "Central do Brasil". Em "Terra Estrangeira" porque um dos co-diretores era co-roteirista do filme e acompanhou a jornada até o final. No caso de "Central do Brasil", um dos roteiristas acompanhou todo o filme.
É útil poder reinventar o filme a cada dia, porque as condições que você encontra, especialmente se está rodando "road movies", serão constantemente alteradas. A realidade vai transformar o filme, sua textura, diariamente.
Se não for permeável a isso, o filme vai certamente perder a espontaneidade.

FOLHA - Peter Handke [autor de "O Medo do Goleiro Diante do Pênalti" e de monólogos de "Asas do Desejo"] foi o roteirista com quem você melhor trabalhou?
WENDERS
- Peter nunca esteve num set comigo, nunca quis participar. Queria estar fora das filmagens. As boas relações que tive com escritores foram com Michael Meredith, em "Medo e Obsessão", e com Sam Shepard, em "Estrela Solitária". Neste último, não havia problemas de ego, queríamos fazer o roteiro da melhor maneira possível. Enquanto estava rodando, na maior parte das vezes, quando eu dizia que estava faltando algo, ele apenas sentava e escrevia.
SALLES - "Alice nas Cidades" e "No Decorrer do Tempo" não tiveram um roteiro preestabelecido... Você escrevia à noite o roteiro que seria filmado no dia seguinte?
WENDERS - Sempre escrevia à noite e filmávamos de dia. Em "No Decorrer do Tempo", tínhamos um plano, mas depois de dois dias desistimos. Os que deviam escrever os diálogos estavam cansados demais no final do dia para escrever... Eu assumi e escrevia à noite. E isso não foi ruim.
Em geral o ideal é escrever o roteiro cena a cena, cronologicamente. A mesma coisa vale para "Alice nas Cidades". Exceto que, nesse filme, eu tinha um roteiro, mas nunca o segui. Desviei-me inteiramente dele. Em "No Decorrer do Tempo", não tivemos isso.

FOLHA - Como vocês vêem a importância da música no cinema?
WENDERS
- Você [Salles] já viu "Summer in the City"?
SALLES - Sim, uma homenagem ao The Kinks.
WENDERS - Sempre fui influenciado pelo rock e pelo blues, a música que me atraía. Eu deveria ter me tornado um médico, um advogado ou um padre, mas decidi ser um pintor, músico ou um fotógrafo. Não me tornei nada disso.
Eu me dei conta, mais tarde, de que havia um trabalho que unia tudo aquilo de que gostava -que era ser cineasta. Música e rock, especialmente dos anos 60 -Van Morrison, Bob Dylan e os Rolling Stones-, foi fundamental para a minha geração.
A coragem de contar ao meu pai que não seria médico, mas um pintor, eu tirei das capas de todos os LPs dos Rolling Stones, de Bob Dylan e dos Beatles que tinha... (risos)
SALLES - Gostaria de ter a mesma relação com a música... Até "Diários de Motocicleta", pensava nela só depois que o filme tinha sido rodado. Mas ouvimos tanta música dos anos 50 e música latino-americana que isso realmente alterou a textura do filme.
A ponto de Gustavo Santaolalla fazer a música do filme antes de ele ser rodado. Ao fazer a música após o filme, ela tende a sublinhar as imagens, e o ritmo já foi predeterminado pelas imagens. Ao fazer antes, há um verdadeiro diálogo.

FOLHA - A tecnologia digital é positiva para o cinema?
WENDERS
- É uma coisa estranha. Acabei de discutir longamente sobre o cinema digital em uma palestra [no Festival de Salônica], mas não consegui expressar meus verdadeiros sentimentos sobre ele. Talvez porque eu não ache que seja correto avaliar o digital em oposição à película.
Eu me recuso a fazer isso. Acho as duas tecnologias fantásticas. Não que uma seja melhor que a outra. Depende da história que você quer contar, de qual seja a melhor ferramenta e o melhor vocabulário para contá-la. Trabalhei com pessoas que começaram a trabalhar na época do cinema mudo.
Henri Alekan [fotógrafo de "Asas do Desejo"] começou a trabalhar como assistente de câmera de um dos mestres do cinema mudo. Também trabalhei com atores que atuaram nessa época.
Tive muita sorte de poder trabalhar com pessoas do início do cinema, aprender com as suas ferramentas. Trabalhei com câmeras digitais de alta definição, gosto delas.
Mas, exatamente por gostar tanto delas, valorizo outras ferramentas. Viajo muito e vejo a realidade de jovens, do mundo contemporâneo... Temos que filmar esses meninos numa linguagem que seja própria deles, com ferramentas digitais. Por isso, acho que tendo sempre a filmar mais com o digital, para estar mais em contato com as novas gerações.

FOLHA - Quando você filmou "Até o Fim do Mundo", tinha planos de filmar no Brasil?
WENDERS
- Sim, no roteiro original estava prevista a filmagem em Brasília. Mas o roteiro estava muito grande, e precisamos cortar as partes na América Latina e na África.
Cheguei a pensar em filmar em Salvador, mas não levei adiante a idéia. Bem, filmei há pouco tempo no Rio. Mas isso foi para um comercial, então não conta... (risos)


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