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Dois cineastas on the road
Reunidos em Salônica, na última quarta-feira, Salles e Wenders, que está de volta à Alemanha após morar 10 anos nos EUA, discutem a relação
tensa com Hollywood e a influência da música pop
MARCOS STRECKER
ENVIADO ESPECIAL A SALÔNICA,
NA GRÉCIA
Depois de dez anos
nos EUA, após realizar clássicos como "Paris, Texas",
Wim Wenders está
voltando para a Alemanha, onde começou sua carreira e produziu a obra-prima "Asas do
Desejo". Walter Salles, ao contrário, se prepara para rodar
nos EUA seu longa mais ambicioso, "On the Road", filmagem
do livro de Jack Kerouac que
inaugurou a contracultura.
A Folha reuniu com exclusividade essas duas figuras-chave do cinema contemporâneo
na cidade de Salônica, onde estavam para participar do Festival Internacional de Cinema da
cidade. Eles discutiram sobre o
destino da sétima arte -como
tecnologia digital-, a importância da música, o cinema independente, a necessidade dos
roteiros, além da morte, na última terça, de Robert Altman,
decano do cinema independente norte-americano.
Esse festival é um dos mais
tradicionais da Europa e neste
ano, em sua 47ª edição, homenageando os dois diretores.
Acompanhe a seguir esse
momento repleto de significados, quando o cineasta que
reinventou a linguagem do cinema a partir dos anos 70 diz
que seu "fracasso" nos EUA pode permitir que Salles seja
bem-sucedido agora.
Os dois mergulharam na
América pelas mãos de Francis
Ford Coppola, o diretor de "O
Poderoso Chefão", que sonhou
ressuscitar a Hollywood dos
grandes estúdios. Para Wenders, Coppola "aprendeu" a lição a partir do fracasso de
"Hammett" -o famoso filme
"malsucedido" de Wenders dos
anos 80 e que foi produzido por
Coppola.
É a primeira vez em que o diretor de "Buena Vista Social
Club" fala abertamente desse
episódio e expõe sua frustração
por não ter conseguido "se tornar um americano". Para o cineasta alemão, Coppola não é
mais o "teimoso" de antigamente e pode ser o produtor
ideal para "On the Road" -filme que representa o sonho
americano de Walter Salles,
brasileiro a quem Wenders vê
como seu seguidor.
FOLHA - (para Wenders) Os EUA foram um tema fundamental em sua
carreira, de "Alice nas Cidades" e
seus curtas iniciais até "Paris Texas". Agora você está deixando os EUA,
depois de dez anos. Walter Salles faz
o oposto: está "mergulhando" no
país para fazer "On the Road".
WIM WENDERS - Fui lá em uma
época e com uma idade de relativa inocência. Foi em 1977, eu
estava com 32 anos, acho.
WALTER SALLES - Você foi o primeiro de seu grupo de amigos a
ir para lá...
WENDERS - Quando filmei "Alice nas Cidades", alguns anos
antes, nos anos 70, isso parecia
um privilégio. Quando fui para
lá, em 1977, muito jovem, vivenciei grandes experiências,
viajei muito, fotografei cidades.
Fui para lá com a idéia ingênua
de que os filmes que me eram
oferecidos, como "Hammett",
me tornariam norte-americano, seriam ótimos.
Depois de um ano ou dois,
não filmando nenhum roteiro
acabado e não chegando a lugar
nenhum, usando um roteirista
depois do outro, percebi que
nunca encontraria uma saída.
Não tinha nada. Podia olhar a
história que tinha sido oferecida para mim e que eu tinha
aceitado dirigir ["Hammett",
produzida por Coppola] e poderia fazer o melhor para entender as idéias do produtor.
Mas não poderia ser bem-sucedido e demorei algum tempo
para perceber isso. Foi doloroso também porque achava que
poderia me tornar um americano. Casei com Ronee Blakley,
que aparece em "O Filme de
Nick".
Vi que não apenas não conseguiria fazer um filme americano mas também nunca me tornaria um americano. Continuava sendo um europeu e permaneceria um alemão. Não havia nada a fazer. Foi uma descoberta difícil, e o filme que fiz
["Hammett"] era vital para
Francis [Ford Coppola]. Ele insistia nas suas idéias, enquanto
eu insistia nas minhas.
Essa briga prosseguiu até o
último corte. Permanecemos
amigos, nos respeitamos... No
final do filme, Ronee e eu já estávamos separados... Percebi
que não poderia voltar para casa, para a Alemanha.
O filme que queria realizar
ainda não tinha conseguido fazer. "O Estado das Coisas" [filmado na época] permitiu que
eu sobrevivesse como artista.
Não tinha a ver com um conflito de identidade, mas com minhas idéias sobre o que era fazer um filme.
Eu não podia voltar para casa
porque sentia que não tinha nada em minhas mãos. Felizmente pensei em "Paris, Texas".
Ainda bem, o filme conseguiu
cumprir tudo o que eu desejava. Permitiu que eu voltasse para casa e deixasse os EUA.
Achava que minha aventura
americana tinha sido um fracasso, tinha medo de voltar para casa. Os dois filmes que eu tinha feito eram claramente europeus ["O Estado das Coisas" e
"O Filme de Nick"].
Apenas quando me reuni
com Sam [Shepard] e Ry Cooder e fiz "Paris, Texas" senti
que tinha mostrado capacidade
de fazer algo nos EUA. Podia,
então, voltar para casa e fazer
meus próprios filmes. Fiquei
em Berlim de 1984 a 1996, antes
de meu segundo período nos
EUA, que durou mais dez anos.
Dessa vez eu não era mais tão
ingênuo, sabia que permaneceria um alemão, que não me tornaria um americano. E "O Fim
da Violência", "O Hotel de Um
Milhão de Dólares" e "Estrela
Solitária" eram filmes de um
europeu filmando os EUA. Não
tentei fazer filmes americanos.
Entendo sua situação agora
[dirigindo-se a Walter Salles].
Por um lado, eu não saberia que
conselhos dar a você. Sei que
muita coisa se passou, agora é
uma época muito diferente, e
os EUA também mudaram.
Sei que Francis [Ford Coppola, produtor de "Hammett" e de
"On the Road"] não é mais o
produtor teimoso que costumava ser. Ele tinha o sonho de
ser um grande produtor, recriar os estúdios de Hollywood
de antigamente. Eu estava no
começo desse processo.
["Hammett"] não fracassou
por minha causa, mas porque
Hollywood inteira não queria
que ele desse certo.
Francis estava interferindo
em todo e qualquer aspecto do
filme. E ele aprendeu que isso
não é possível. Depois nos encontramos quando realizava
outros filmes, como "Até o Fim
do Mundo" [1991]. Foi no momento em que eu o editava, e
ele foi muito generoso.
Sei que ele é uma pessoa muito diferente agora. Acho que a
experiência comigo pode tê-lo
transformado no produtor
ideal para "On the Road".
Por outro lado, os EUA estão
vivendo um momento tão difícil... Não saberia que conselho
dar agora a você [dirigindo-se a
Salles]. Você vê? Acho que seguir seus instintos, já que Francis te chamou. Acho que foi
uma grande idéia sua pensar:
espere um minuto, deixe eu antes explorar o território e ver o
que está acontecendo [a respeito do documentário "Searching
for On the Road", que Salles já
filmou e está editando].
O pior que pode acontecer é
ele ficar melhor do que o filme...
(risos) Desejo de coração que
você faça ["On the Road"]. Ao
mesmo tempo, conheço as armadilhas e espero que você não
caia nelas, ainda que algumas já
pertençam ao passado.
FOLHA - Como entendem a utilização de gêneros no cinema (drama,
western, ficção científica) e a diferença entre ficção e documentário?
SALLES - Em relação a "On the
Road", de alguma forma o filme
tem a ver com a história de filhos de imigrantes. Kerouac era
filho de franco-canadenses,
Ginsberg era filho de imigrantes da Europa Oriental, seus
pais eram simpatizantes do
Partido Comunista -o que não
era muito popular na época.
Lawrence Ferlinguetti e Diane di Prima, dois poetas que
pertenciam ao coração do movimento beat, vinham de famílias italianas.
WENDERS - Você os filmou?
SALLES - Sim... Acho que é a história de filhos de imigrantes
que recusaram o papel que lhes
estava destinado. O que é interessante para começar a trabalhar. Quando você começa a rodar um filme, especialmente de
época, acho que precisa se
questionar sobre o que tem a
ver com o período atual.
Nesse sentido, senti que a
melhor maneira de fazer um
filme de ficção era começando
por um documentário que contasse o legado da geração beat e
de Kerouac.
WENDERS - Você vai filmar "On
the Road" em preto-e-branco?
SALLES - Essa é uma boa pergunta...
WENDERS - Em "Hammett", eu
briguei com todas as minhas
forças para filmar em preto-e-branco. Lutei de todas as formas, mas não consegui.
FOLHA - Há uma similaridade entre
alguns filmes que vocês realizaram.
"Central do Brasil" parece se relacionar com "Alice nas Cidades", enquanto "Terra Estrangeira" parece
se relacionar com "O Estado das Coisas", ainda que reflitam sobre conflitos diferentes -a crise política
brasileira, em um caso, e a crise do
cinema, em outro...
WENDERS - Eu acrescentaria
ainda uma relativa similaridade entre "Diários de Motocicleta" e "No Decorrer do Tempo".
Os dois têm a ver com uma jornada de descoberta, de formação. Em "Diários de Motocicleta" há uma compreensão política do mundo, você pode sentir
uma transformação acontecendo nos personagens.
Você quase sente a mudança
de um jovem que quer se tornar
um médico e descobre um outro caminho. É uma jornada de
formação, de conhecimento. É
o mesmo que acontece com os
dois personagens de "No Decorrer do Tempo". Gosto do paralelo entre esses filmes. E deve
haver outros.
SALLES - Fico um pouco tímido
ao falar disso... Meu desejo de
fazer filmes foi de fato influenciado pela experiência de assistir "Alice nas Cidades" e "No
Decorrer do Tempo"... Não vejo
relação entre "O Estado das
Coisas" e "Terra Estrangeira",
mas talvez você tenha alguma
razão. Ainda que "Terra Estrangeira" seja um filme sobre
um tipo de exílio, envolve dois
continentes. "O Estado das
Coisas" é sobre a imobilidade
que é causada por uma forma
predominante de cinema.
WENDERS - Mas os personagens
[de "O Estado das Coisas", uma
equipe de cinema que é forçada
a interromper uma filmagem]
também estão exilados do potencial deles, de alguma forma.
SALLES - Acho que posso falar
sobre o que aprendi assistindo
"Alice nas Cidades" e "No Decorrer do Tempo". Em cinema,
o que é invisível é mais importante do que é visível...
WENDERS - Acho que essa é a
manchete [desta entrevista]...
(risos)
SALLES - ... o que se sente é mais
importante do que aquilo que
se verbaliza. A proximidade
que senti desses personagens
foi maior do que qualquer outra
que já havia sentido em cinema.
Eles eram estrangeiros à minha
cultura, e mesmo assim pude
me identificar. Eram talvez a
melhor descrição dos dilemas
de nossos tempos. Representavam todas as crises possíveis.
As crises que eu conhecia ou
sentia, pelo menos.
Eles refletiam melhor o que
eu conhecia. Uma crise pessoal
mas também uma crise geral de
identidade nos anos 70 e 80,
uma época de formação para
mim. Sinto ao mesmo tempo
uma timidez com essa possível
correlação mas ao mesmo tempo não posso negá-la, porque
fui tão formado pelo cinema
que você dividiu conosco...
WENDERS - Seus filmes têm tanta força na expressão que não
devem nada a ninguém. É esse
o meu sentimento real... Nem a
mim nem a ninguém. E mesmo
porque o "road movie" é um gênero tão puro... Acho que estamos todos de alguma forma no
mesmo território. Você está seguindo seus próprios caminhos, seu próprio território.
Acho impossível fazer um filme que não se relacione a algo.
No mínimo, isso acaba em uma
entrevista que algum jornalista
fará... (risos)
SALLES - Acho que, quando você
começa um filme, você precisa
esquecer tudo o que conhece,
de uma forma consciente. Tem
a ver com ter todas as informações e deixá-las de lado.
Discutimos isso em profundidade no caso de "Diários de
Motocicleta". Preparamos o filme minuciosamente. Antes de
começar a filmar, decidimos
deixar tudo de lado e começar
como um grupo, da forma como a história deveria ser contada, de uma forma original.
No primeiro dia, na primeira
seqüência que foi filmada, procurei esquecer tudo o que tinha
reunido de informações até
aquele momento.
WENDERS - Onde essa seqüência foi filmada?
SALLES - Em algumas ruas de
Buenos Aires... Estava procurando encontrar o caminho
que servisse da melhor maneira para esse filme. Bem, ontem
[terça] soubemos da morte de
Robert Altman. Sua perda foi
sintomática da morte de um
certo espírito independente na
cena americana.
Não sei se você [dirigindo-se
a Wenders] concorda com isso,
mas era o caso dele e de David
Lynch assim como de poucos e
extraordinários diretores.
WENDERS - Sim, claro, mas nós
temos origens distintas. Para
mim, o cinema americano, como um todo, foi uma enorme
influência. De um modo muito
diferente, Fritz Lang, que infelizmente não cheguei a conhecer, é para mim o melhor diretor dos EUA.
Aprendi tanto com o cinema
americano -com Samuel Fuller, John Ford-, mais do que
com qualquer pessoa que eu tenha conhecido. Para mim, ir
para lá filmar significava que eu
iria para o lugar onde todo o cinema que eu adorava tinha sido
feito. E isso no sistema dos
grandes estúdios [de Hollywood], onde trabalharam os caras que eu admirava.
Bem, Nicholas Ray e Samuel
Fuller sempre foram de alguma
forma rebeldes, renegados.
Ainda assim, quando fui para lá
sentia que ia para o verdadeiro
coração do cinema. Não sabia
que estava indo para o "coração
das trevas" [dupla referência ao
filme "Apocalypse Now", de
Coppola, e ao livro de Joseph
Conrad que o inspirou].
SALLES - É engraçado, porque,
para mim, o cinema americano
não é formador nesse sentido.
Fui mais influenciado pelo
neo-realismo, pela nouvelle vague, pelo cinema novo e pelos
filmes da Verlag der Autoren...
[produtora independente alemã dos primeiros filmes de
Wenders] (risos). E pelo cinema cubano de Tomás Gutiérrez
Alea, de "Memórias do Subdesenvolvimento".
Esses filmes foram muito
mais importantes para mim do
que os filmes que mencionou.
Eu os admiro, mas não consigo
relacioná-los com a minha própria experiência. E Billy Wilder? [dirigindo-se a Wenders]
WENDERS - Gosto muito de seus
filmes, especialmente de suas
comédias. Mas nunca me influenciou muito. Fui mais influenciado pelos outros. Fassbinder foi influenciado por
Douglas Sirk de outra forma...
FOLHA - Vocês já trabalharam em
"road movies" sem utilizar roteiros.
Quando o diretor deve utilizá-los?
WENDERS - Sempre que escrevia um roteiro, e não importa a
qualidade dele, pensava que ele
não era necessário, que seria
muito mais divertido trabalhar
sem ele. Quando não tinha um
roteiro, pensava que seria muito melhor se eu tivesse um...
Acho que o roteiro é um pretexto para produzir um filme.
E, quando se está filmando e
trabalhando com atores, o material que você ou o escritor
imaginou há seis meses ou um
ano não pode mais ser tão bom
quanto se imaginou.
O diretor está lá, filmando as
paisagens, juntando as peças, e
é esse o momento em que você
enxerga a verdade das coisas. E,
como já sei que as coisas são assim, procuro não investir muito em um roteiro. Quero evitar
a situação em que esteja preso e
não tenha outra alternativa a
não ser seguir o roteiro.
Tenho convicção de que é
sempre possível melhorar um
roteiro quando se está filmando. O pior que pode acontecer é
ficar preso na armadilha de seguir um roteiro por pressão de
produtores ou distribuidores.
Esse é o pior roteiro possível.
SALLES - Em português, a palavra roteiro tem a ver com rota.
É o que o roteiro deveria ser
-indicar um caminho a seguir.
Não deveria encerrar oportunidades, mas ampliá-las. Trabalhei com roteiristas muito
instruídos, com os quais a história final era o resultado do
que havíamos esboçado no início do processo.
Mas "acidentes" aconteceram "on the road", e também
"nas margens" da estrada. Um
exemplo é uma seqüência de
"Terra Estrangeira" que foi
completamente transformada
pelo nosso encontro com uma
comunidade de angolanos, cabo-verdianos e moçambicanos.
Nem Daniela Thomas [co-diretora do filme] nem eu havíamos visto essas comunidades
em nenhum filme português.
Mesmo assim estavam lá, presenças importantes e palpáveis
diante de nossos olhos. Alteramos o roteiro para incorporar
esses personagens à história,
porque ela tinha a ver com o
exílio -num sentido existencial mas também político.
Esses personagens eram como os brasileiros. Então os incorporamos. A história foi
transformada pela experiência
da realização. O filme deve ser a
grande pergunta cuja resposta
você começa a responder durante o processo. E o roteiro deve permanecer como a base que
vai permitir responder -ou
não- às perguntas no final da
jornada.
Por outro lado, um roteiro
mais estruturado, como era o
caso de "Diários de Motocicleta", escrito por Jose Rivera, era
excelente no início...
WENDERS - Mas, nesse caso, era
um filme de época.
SALLES - Sim, mas o que percebi
é que, quanto mais estruturado
ele é, mais você pode ter opções. Um pouco como o jazz, no
sentido de que é mais fácil se
afastar do bom roteiro inicial,
porque você sempre pode
achar o núcleo da melodia novamente. Foi um processo libertador, os dois processos foram libertadores.
WENDERS - Há tanto investimento emocional nos roteiros,
procurando imaginar o filme
bem demais. Por exemplo, alguns roteiristas colocam muitos detalhes no roteiro.
Quando
a pessoa se levanta, quando se
vira, se está com uma caneta ou
tem uma certa expressão, não
importa. Odeio isso.
O pior é quando o roteirista
coloca "cortes" no roteiro. O roteiro deve ter apenas o diálogo,
o lugar, o que se passa. Idealmente, a pessoa que escreve o
roteiro deve estar com você no
set de filmagem. Se você confia
no escritor, não há nada melhor, na minha experiência, do
que tê-lo com você no set. Não
significa que vá funcionar necessariamente, mas...
SALLES - Aconteceu comigo em
"Terra Estrangeira" e "Central
do Brasil". Em "Terra Estrangeira" porque um dos co-diretores era co-roteirista do filme
e acompanhou a jornada até o
final. No caso de "Central do
Brasil", um dos roteiristas
acompanhou todo o filme.
É útil poder reinventar o filme a cada dia, porque as condições que você encontra, especialmente se está rodando
"road movies", serão constantemente alteradas. A realidade
vai transformar o filme, sua
textura, diariamente.
Se não for permeável a isso, o
filme vai certamente perder a
espontaneidade.
FOLHA - Peter Handke [autor de "O
Medo do Goleiro Diante do Pênalti"
e de monólogos de "Asas do Desejo"] foi o roteirista com quem você
melhor trabalhou?
WENDERS - Peter nunca esteve
num set comigo, nunca quis
participar. Queria estar fora
das filmagens. As boas relações
que tive com escritores foram
com Michael Meredith, em
"Medo e Obsessão", e com Sam
Shepard, em "Estrela Solitária". Neste último, não havia
problemas de ego, queríamos
fazer o roteiro da melhor maneira possível. Enquanto estava rodando, na maior parte das
vezes, quando eu dizia que estava faltando algo, ele apenas
sentava e escrevia.
SALLES - "Alice nas Cidades" e
"No Decorrer do Tempo" não
tiveram um roteiro preestabelecido... Você escrevia à noite o
roteiro que seria filmado no dia
seguinte?
WENDERS - Sempre escrevia à
noite e filmávamos de dia. Em
"No Decorrer do Tempo", tínhamos um plano, mas depois
de dois dias desistimos. Os que
deviam escrever os diálogos estavam cansados demais no final do dia para escrever... Eu assumi e escrevia à noite. E isso
não foi ruim.
Em geral o ideal é escrever o
roteiro cena a cena, cronologicamente. A mesma coisa vale
para "Alice nas Cidades". Exceto que, nesse filme, eu tinha um
roteiro, mas nunca o segui.
Desviei-me inteiramente dele.
Em "No Decorrer do Tempo",
não tivemos isso.
FOLHA - Como vocês vêem a importância da música no cinema?
WENDERS - Você [Salles] já viu
"Summer in the City"?
SALLES - Sim, uma homenagem
ao The Kinks.
WENDERS - Sempre fui influenciado pelo rock e pelo blues, a
música que me atraía. Eu deveria ter me tornado um médico,
um advogado ou um padre, mas
decidi ser um pintor, músico ou
um fotógrafo. Não me tornei
nada disso.
Eu me dei conta, mais tarde,
de que havia um trabalho que
unia tudo aquilo de que gostava
-que era ser cineasta. Música e
rock, especialmente dos anos
60 -Van Morrison, Bob Dylan
e os Rolling Stones-, foi fundamental para a minha geração.
A coragem de contar ao meu
pai que não seria médico, mas
um pintor, eu tirei das capas de
todos os LPs dos Rolling Stones, de Bob Dylan e dos Beatles
que tinha... (risos)
SALLES - Gostaria de ter a mesma relação com a música... Até
"Diários de Motocicleta", pensava nela só depois que o filme
tinha sido rodado. Mas ouvimos tanta música dos anos 50 e
música latino-americana que
isso realmente alterou a textura do filme.
A ponto de Gustavo Santaolalla fazer a música do filme antes de ele ser rodado. Ao fazer a
música após o filme, ela tende a
sublinhar as imagens, e o ritmo
já foi predeterminado pelas
imagens. Ao fazer antes, há um
verdadeiro diálogo.
FOLHA - A tecnologia digital é positiva para o cinema?
WENDERS - É uma coisa estranha. Acabei de discutir longamente sobre o cinema digital
em uma palestra [no Festival
de Salônica], mas não consegui
expressar meus verdadeiros
sentimentos sobre ele. Talvez
porque eu não ache que seja
correto avaliar o digital em
oposição à película.
Eu me recuso a fazer isso.
Acho as duas tecnologias fantásticas. Não que uma seja melhor que a outra. Depende da
história que você quer contar,
de qual seja a melhor ferramenta e o melhor vocabulário para
contá-la. Trabalhei com pessoas que começaram a trabalhar na época do cinema mudo.
Henri Alekan [fotógrafo de
"Asas do Desejo"] começou a
trabalhar como assistente de
câmera de um dos mestres do
cinema mudo. Também trabalhei com atores que atuaram
nessa época.
Tive muita sorte de poder
trabalhar com pessoas do início
do cinema, aprender com as
suas ferramentas. Trabalhei
com câmeras digitais de alta
definição, gosto delas.
Mas, exatamente por gostar
tanto delas, valorizo outras ferramentas. Viajo muito e vejo a
realidade de jovens, do mundo
contemporâneo... Temos que
filmar esses meninos numa linguagem que seja própria deles,
com ferramentas digitais. Por
isso, acho que tendo sempre a
filmar mais com o digital, para
estar mais em contato com as
novas gerações.
FOLHA - Quando você filmou "Até
o Fim do Mundo", tinha planos de
filmar no Brasil?
WENDERS - Sim, no roteiro original estava prevista a filmagem em Brasília. Mas o roteiro
estava muito grande, e precisamos cortar as partes na América Latina e na África.
Cheguei a pensar em filmar
em Salvador, mas não levei
adiante a idéia. Bem, filmei há
pouco tempo no Rio. Mas isso
foi para um comercial, então
não conta... (risos)
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