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Intimistas x realistas
"Uma História do Romance de 30" aborda o elo entre ficção e crítica social em autores como Graciliano Ramos e Dyonélio Machado
ALCIDES VILLAÇA
ESPECIAL PARA A FOLHA
As mais de 700 páginas que Luís Bueno
dedicou a esse estudo dos romances
brasileiros escritos
na década de 30 do século passado podem sugerir, em nossos
dias atropelados, excesso de
otimismo. Talvez seja.
Mas, como a seriedade da incursão histórica no período se
combinou com a ousadia de interpretar no detalhe tantas
obras, das famosas às esquecidas, e tudo flui em linguagem
clara e honesta, há esperança
de que os leitores retribuam
tanto empenho com interesse
proporcional. E a melhor das
respostas é sempre a discussão
-sobretudo no caso de um estudo como esse.
A designação "o romance de
30" já é, de saída, bastante discutível, seja pela forma singular de "o romance", seja pelo
confinamento de "de 30". Como o próprio autor reconhece,
"é sempre algo arbitrária a escolha, pela história literária, de
balizas temporais".
Sua reação ao arbítrio representou-se no compromisso de
ler "toda" a produção dessa
época e mostrar como o chão
das experiências históricas não
apenas dá base a impulsos ficcionais mas é por eles alçado a
um plano em que se figuram a
variedade e a complexidade
dessas experiências.
Historiografia e ensaísmo
Para não fugir a esse desafio
dialético, Luís Bueno articula
com largo fôlego a empreitada
historiográfica e o ensaísmo interpretativo, mostrando-se, a
meu ver, mais fecundo neste último. A assimilação do que seja
o "nacional" (tão cara aos modernistas de 22) parece, num
primeiro momento, constituir
para o autor a ambiciosa postulação histórica a que teriam
respondido, num antagonismo
também interno, tanto os escritores "regionalistas" como os
"intimistas".
Mas Luís Bueno prefere o
exame das obras aos rótulos e
sabe que podem se confrontar
-não apenas numa década mas
num mesmo romancista- forças que empuxam para lados
divergentes.
Não por acaso, é na intensidade e na diversidade dramática dos narradores de Graciliano
Ramos que o ensaísta reconhece a maturação decisiva da
questão que é o eixo do seu estudo: a figuração do "outro".
Simplifico, com o risco de reduzir: Luís Bueno avalia nos romancistas de 30, dos mais consagrados aos desconhecidos ou
há muito esquecidos, a capacidade de constituir e representar a específica distância que os
separa... do próximo.
O lugar do outro
É o critério da forma de atuação dessa alteridade, manifesta
no resultado objetivo da representação ficcional em cada romance, que leva o ensaísta a
matizar e a graduar as diferenças, admitidas como "valores"
que sempre se agregam à significação que uma obra acaba
tendo para cada leitor (embora
alguns prefiram escamotear
esses valores internalizados,
em nome da "objetividade" que
neutraliza o gosto, o ponto de
vista e a tensão crítica).
Luís Bueno sabe (e poderia,
talvez, ter insistido ainda mais
nessa questão) que a identificação de qual seja o lugar do "outro" se prende, antes de tudo, à
identificação do lugar do próprio "eu" -razão pela qual não
se pode levar a ferro e fogo uma
oposição definitiva entre "realismo" e "intimismo". O narrador torturado e "intimista" de
"Angústia", de Graciliano Ramos, é menos "realista" que o
narrador de "Capitães da
Areia", de Jorge Amado? O introvertido amanuense Belmiro
fala menos do mundo que o intimida, ao recorrer à forma de
um diário pessoal?
Luís Bueno examina com
grande proveito a atuação específica dos narradores, porque sabe que é a partir dela que
se constitui e se mostra não
apenas o universo das personagens mas a relação de interesse
entre o ficcionista e o mundo,
entre um "eu" específico e seu
específico "outro".
Na estruturação de seu livro,
essa oposição essencial vincula-se a muitas outras, como já o
indicam alguns sugestivos títulos de capítulos ou de partes de
capítulos: "Norte e Sul", "Utópico e Pós-Utópico", "Novidade e Velharia", "A Instituição
da Divisão" etc.
Na raiz dessas tensões sente-se uma dupla desconfiança do
autor: de um lado, a do limite
de um insight específico diante
da malha intrincada das relações históricas; de outro, a da
insuficiência do quadro panorâmico se se quer distinguir a
sutileza e a particularização da
expressão artística. Como a
desconfiança se mantém o
tempo todo, o estudo se avoluma na estimulação ziguezagueante entre as configurações
gerais e específicas da época e
dos romances tratados.
Na seção que fecha o livro, o
ensaio dá o tom final: Luís Bueno elege e interpreta, muitas
vezes batendo de frente com
juízos já estabelecidos, obras
de quatro autores (Graciliano
Ramos, Cyro dos Anjos, Dyonélio Machado e Cornélio Penna), dadas como exemplares
para a ratificação de posições
assumidas ao longo do estudo.
Análise comparada
A justificativa está nesta formulação lapidar: "A fatura artística pode servir para impulsionar o conteúdo político de
uma obra, mas o contrário é
muito difícil de acontecer".
A fórmula, no contexto do livro, não tem nada de abstrato:
ela nasce de um exaustivo exercício de análise comparada entre dezenas de romancistas,
mais precisamente entre as linhas de alcance de seus discursos, sempre considerado o fundamento da relação entre um
"eu" e seu "outro".
Sendo já uma sólida referência historiográfica e um conjunto orgânico de ensaios interpretativos, o livro em que
Luís Bueno discute tudo a respeito dos romances de 30 precisa, por sua vez, ser amplamente discutido.
ALCIDES VILLAÇA é professor de literatura
brasileira na USP.
UMA HISTÓRIA
DO ROMANCE DE 30
Autor: Luís Bueno
Editora: Edusp (tel. 0/xx/11/3091-4008)
Quanto: R$ 78 (712 págs.)
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